quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O café da manhã

Às vezes me pergunto como a indústria alimentícia conseguiu convencer toda uma geração de mães e filhos de que comer sucrilhos pela manhã é mais saudável que um copo de leite e um pão com manteiga. Ou uma tapioca, um pedaço de mandioca cozida, uma banana-da-terra assada, um pedaço de bolo de fubá.  E que dá nome a isto de "cereais matinais".  Nos filmes americanos do século passado já me causava espanto aquela imagem recorrente da mãe atarefada com os filhos escolares abrindo o armário, pegando uma caixa e despejando numa bacia aquela coisa seca e barulhenta como um tanto de ração. Um tanto de leite gelado direto da caixa e estava ali a primeira refeição do dia.  Daquilo para uma coisa chamada ração humana seria um passo. Não deu outra -  hoje temos a ração com este nome.

Mas, voltando aos sucrilhos que nada mais são que disfarces de ração, basta dar uma olhada no rótulo para constatar algumas coisas: é formado basicamente de milho e açúcar (cada porção de 30 g tem 12 g de açúcar e 18 g de milho), tem zero de fibras em cada porção, tem tão poucos nutrientes que vitaminas e minerais precisam ser adicionados (é como comprar a comida com atestado de pobreza - você leva aquele produto sem nada e junto vai um tanto de comprimidos de suplementos que servem para dar uma pseudo qualidade à coisa). E o tamanho da porção? Cabe numa mão. Será que alguém come só aquilo?  Bem, se comer mais, azar, pois vai comer o dobro de açúcar, de calorias, de suplementos. Se naquela porção você consegue satisfazer cerca de 25% das suas necessidades em vitaminas, das duas uma: ou você vai se entupir de vitaminas e enfrentar seus efeitos cumulativos tóxicos,  já que no mercado hoje há mais produtos vitaminados do que você possa imaginar, ou você está pagando por um suplemento que não quis comprar mas teve que engolir e que vai todo para o ralo. Como nosso organismo foi moldado ao longo da evolução para assimilar e processar nutrientes complexados nos alimentos, as duas coisas devem acontecer dependendo do aditivo.

Uma porção é isto

Do conhecido, seria mais ou menos isto
Mas nós sabemos que o marketing da indústria alimentícia tem mais poder e dinheiro que aquele gasto pelo Estado com  educação nutricional.  E não é só nesta área. Não fosse a propaganda, patrocinadores não teriam convencido tanta gente do bem (e grande parte da mídia, gente importante e formadora de opinião)  a achar bonito e estimulante ver alguém socando o outro encharcado de sangue ao vivo e nas telas da TV, assim como os bestiais espetáculos de maus tratos de animais nos rodeios. Tudo isto aplaudido em verdadeiras arenas medievais. Com bom marketing tudo se consegue. Mas eu só ia falar do café da manhã...

Então, voltando ao Sucrilho, o que tenho aqui em mãos (comprei para um trabalho que vou apresentar) é de chocolate e ainda assim precisa de sal, aromas artificiais de caramelo e baunilha, corante vermelho allura e azul brilhante etc. E é doce, tão doce...

Outro dia uma amiga me contou que o pai procurou ajuda profissional para emagrecer e desistiu. A dieta receitada era simplesmente impraticável - não só por este modelo de consumo, mas também pelo falta de apelo sensorial. Pelo café da manhã e lanche,  você conclui o resto do dia: 250 ml de leite desnatado Molico Cálcio em pó ou 300 ml de leite de soja light Suprasoy/  2 fatias de pão integral light (torradas) ou 3 torradas Bauduco integral light ou 4 torradas Magic Toast Marilan light ou integral/  Queijo cottage/ cobertura de requeijão ou cream cheese light ou Polenguinho com cálcio e fibras light.  No lanche da tarde: 2 fatias de pão integral light + queijo minas/ 1 fruta + iogurte Activia Zero, 1 fruta picada + 1 colher de cereal/ Vitamina - 1 iogurte Activia zero com probióticos/ 100 ml de leite desnatado. Apeteceu?

Por que será que é tão difícil seguirmos pelo caminho do bom senso, do gostoso, confortável e moderado?  O meu café da manhã é sempre muito frugal: café coado com pouco açúcar (quase sempre o único açúcar que consumo no dia), kefir feito com leite integral batido com alguma fruta, 2 fatias de pão feito por mim (com manteiga ou pasta de amendoim ou geleia - tudo em pequena quantidade) e, quando tem - quase nunca, um pedaço de queijo. No dia-a-dia é isto. De fim de semana pode ter, mas nem sempre tem,  um suco, umas bananas cozidas, umas frutas picadas, panquecas, mingau, cuscuz. Nada de diet, light, zero. E aquelas taxas todas, estão, sim, todas dentro do limite, obrigada. O caminho é a moderação. Mas e o seu café da manhã, como é?

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Nabo selvagem


Você pode até achar que eu roubei este nabo daquela horta que encontrei na calçada do meu caminho. Mas não. Já há algum tempo tinha desconfiado daquela hortaliça com folhas de rabanete, cheiro de mostarda e flores como as de brócolis, que crescia viçosa numa calçada entre capins altos e tiriricas em frente a uma casa abandonada.  Ontem, reparando melhor  a terra ao redor, vi que uma bola redonda e branca buscava espaço como quem quer vir à luz. Era um nabo redondo! O chão coberto, abandonado e úmido, era fértil e fofo e foi só puxar a verdura pelas folhas.

Assim como aquele pezinho de alface solitário que já mostrei aqui, nabos na calçada não são obras da mesma espontaneidade com que se espalham ervas indomáveis como o mentruz, os dente-de-leões, as serralhas e outros matinhos. Simplesmente porque não há mais por aí nabos selvagens que crescem e florescem ao tempo de seu próprio ciclo. Nabos, brócolis e alfaces são hortaliças cultivadas que só escapam ao controle do homem quando uma horta é abandonada à própria sorte. Aí sim, florescem, frutificam e as sementes são carregadas pelo vento ou pelos pássaros. E provavelmente foi o que aconteceu. Talvez, quem sabe, havia ali no quintal dos fundos da casa fantasma uma horta esquecida, cujo descendente foi parar hoje no meu prato.

Salada da raiz, arroz das folhas. Com frango e grão de bico. Nhac!
As folhas, depois de bem lavadas e higienizadas, foram cozidas com o arroz. A raiz ardida e crocante foi picada em cubinhos e virou salada com pepino orgânico comprado, cebola roxa do supermercado, limão-rosa do Seu João da rua de baixo, e cheiro-verde, pimenta e tomatinho do meu quintal. Com grãos de mostarda tostados. Comer assim, engraçado, sabe à alegria do cheiro de terra molhada com a primeira chuva da primavera.

Esta foto foi há algum tempo, quando desconfiei da sua presença

Aqui, seus primos na feira de orgânicos

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Comida de rua: deixe-se contagiar


Ontem o dia estava lindo e aproveitei a companhia da minha amiga Silvinha, que vive em Salvador, para andar um pouco pela manhã. Quando apenas o asfalto e o cinza do cimento imperam, a paisagem segue imutável e monótona. Agora, se cedemos lugar à vida, ao verde, a cada dia é uma novidade estimulante. Nesta época do ano é a folha vermelha de sete copas que cai, o brotinho de nêspera ainda em frutos que desponta empurrando folhas velhas, amoras maduras sujando o chão, a mangueira em bolinhas se preparando para o Natal  e tantos projetos de frutas para a próxima estação. Temos aí uma natureza mutante conforme a intensidade das chuvas e duração da seca,  a inclinação do sol, a jornada da luz, a direção do vento. Mutante também graças à polinização das abelhas e o plantio dos pássaros. E à ação dos homens! De um lado já havia um pomar invejável, feito por morador, com macieira, caquizeiro, parreira de uva, pé de lichia e outros que já mostrei aqui. Mas ontem descobri, quase em frente, como um contágio de vizinhos, uma calçada inteira tomada por horta com tomateiro, beterrabas, alfaces e rúculas, sem atrapalhar a passagem de pedestres que podem passar apreciando. Se vizinhos se comparassem menos em relação ao porte de suas casas e carros e competissem plantando hortas e pomares, talvez esta cidade seria um bocadinho mais humana e acolhedora, né não? Se você tem uma calçada grande, que tal fazer o mesmo?

Jacas

Maçã

Tomate

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Pirão de peixe na folha - continuação do post de ontem (poqueca na folha de caetê)

Antes de ler esta receita, talvez seja bom você ver o post de ontem para eu não precisar me repetir:
http://come-se.blogspot.com/2011/08/poqueca-na-folha-de-caete-no-caete-ou.html

Como tinha dito, resolvi reproduzir a receita, mas fiz a moqueca com postas de corvina. E minha intenção era usar apenas o caldo para o pirão, para comer o peixe separado. Assim foi feito.  Agora, se você quiser, pode usar filés de tilápia, garoupa ou cavala e usar todo o peixe com o caldo para fazer uma poqueca que vale por um prato único.  No meu quintal tenho uma pequena moita de caetê, mas só havia duas folhas boas. O resto, embrulhei na folha de bananeira, que havia sobrado ainda da aula sobre Invólucros no encontro do Paladar. Aqui, o jeito que fiz:

Os dois pacotes diferentes foram feitos com folhas de caetê

Os pirões e o peixe separado
O lado das dobras fica mais claro. E a folha tem um óleo que evita aderência
O outro ganha mais calor e este dourado atrativo. O aroma da folha é bom!


Pirão na folha ou poqueca na folha de caetê (baseada na receita do Denis Dreux Júnior que você pode conferir no post anterior, com pequenas modificações)

Limpe e corte em postas uma corvina com pouco mais de 1 kg.  Soque bem no almofariz 2 dentes de alho, 1 pimenta dedo-de-moça e 1 colher (sopa) de sal. Tempere o peixe, inclusive a cabeça, com esta pasta e deixe em repouso enquanto separa os outros ingredientes.  Numa panela coloque 2 colheres (sopa) de azeite e 2 colheres (sopa) de azeite de dendê puro. Junte 1 dente de alho picado e 1 cebola pequena picada e refogue até começar a dourar. Junte, então, 1 tomate, meio pimentão vermelho e meio pimentão verde picados (na receita do Denis, o pimentão era amarelo em vez de verde).  Assim que os legumes amolecerem, acrescente 2 colheres (chá) de açafrão-da-terra (cúrcuma) e 3 xícaras de água. Tampe e deixe cozinhar até formar um molho (cerca de 10 minutos). Junte o peixe temperado, tampe a panela e mantenha no fogo por cerca de 5 minutos ou até que todos os pedaços estejam cozidos. Coloque 1 xícara de cheiro-verde picado (salsa e cebolinha) e 1/2 xícara de leite de coco. Aqueça por um minuto e desligue o fogo. Retire o peixe com cuidado e use o caldo. Junte ao caldo 300 g de mandioca ralada fina e misture bem. Deixe cozinhar até ficar um creme bem denso que se solta do fundo da panela. Prove o sal e corrija, se necessário. Embrulhe porções de uma concha, mais ou menos, em folhas de caetês (na falta delas, pode usar folhas de bananeira) e coloque sobre uma chapa quente ou frigideira. Quando a folha estiver bem douradinha é sinal de que o pirão estará também com uma pequena crosta dourada. Vire para dourar do outro lado.  Sirva com o peixe que foi separado. Rende uns 10 pacotes

Como preparar a folha de caetê: é só passar por água quente.

Como preparar a folha de bananeira:
http://come-se.blogspot.com/2011/07/tapioca-molhada-na-folha-de-bananeira.html

Para quem não tem uma bananeira por perto:
http://come-se.blogspot.com/2011/08/folha-de-bananeira-quem-vende.html

Ainda sobrou para marmita do Marcos, com almeirão e arroz 

E se comportou muito bem quando aquecido em microondas 

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Poqueca na folha de caetê no Caetê. Ou quinta sem trigo 32



Lembra que eu prometi falar do melhor pirão que já comi, no restaurante Caetês, lá em Paraibuna? Pois estava esperando até o momento de testar a receita, o que fiz nesta semana.  Fomos lá com o amigo João Rural, grande pesquisador da comida e costumes dos povos do Vale do Paraíba.  O assunto "invólucros" da aula do Paladar ainda estava fresco (o efeito residual daquelas comidas embaladas você ainda vai sentir durante várias quintas-feiras) e foi um alento ir a um restaurante com este nome, que combina culinária caipira com a caiçara com todas aquelas influências africanas já indissociáveis da nossa cultura. O proprietário, Denis Dreaux Junior, já foi gerente em outros restaurantes mas agora está assumindo carreira solo num espaço agradável, com janelões, terra para plantar, bananeiras na porta (eu só tiraria aquele balcão enorme de granito, resquício da antiga ocupação do imóvel) e muitos projetos. 

A comida fica aquecida em panelas pequenas num grande fogão de lenha que fica num canto do salão, para quem não quer esperar. Mas você pode também pedir a la carte seu peixe na folha de caetê

Espero que nossos palpites - do João, do Marcos, da minha irmã, do cunhado e meu - não tenham ofendido mas incentivado o Denis a levar o peixe à mesa ainda embalado na folha.  É que, embora a promessa fosse o peixe na folha, à mesa chegou um filé dourado apoiado sobre uma folha bem limpa, só colocada no prato de enfeite. Protestamos. Cadê nossa folha toda queimadinha, dourada? O vapor cheiroso do pacote que sonhávamos embaçar nossos óculos e assanhar nossas papilas nos foi roubado. Cadê? Tarde demais, foi pro lixo. 

Quis ir à cozinha recuperar nossos invólucros. Denis, simpático, me mostrou como fazia. Embalava os filés, dourava na chapa, jogava fora o caetê queimado, dourava o filé um pouco mais na chapa quente e levava à mesa o peixe despudorado, desvestido, bronzeado.  Pois queremos o prazer de despi-lo. Denis nos mandou, então, o peixe pudico, mais pálido e discreto com suas vestes. Ao abrir o pacote, não é o dourado que nos chama mas o vapor de aromas.  O caetê tem um perfume diferente da folha de bananeiras e, sendo a bananeira asiática, era esta a folha de embalo dos nossos antepassados índios. Aliás, João sempre faz questão de afirmar: "... todo mundo fala em folha de bananeira usada peslo índios, mas aqui não tinha bananeira. Os índios mudaram a tradição assim de repente?". Bem, eu gosto das duas, caetês e bananeiras, ambas conferem um perfume muito bom à comida. Só falta agora o Denis adotar um peixe da região em vez do filé do asiático Panga, mais barato que a tilápia regional, mas vamos por parte, que é só o começo. 

O primeiro chegou assim

Cadê nosso caetê queimado? está no lixo 

Ah, agora sim, muito mais elegante!

Aromas quentes e aprisionados são soltos à mesa
Este post não era pra falar do peixe na folha, e sim do pirão na folha ou melhor, da moqueca na folha. Ou, sendo mais precisa, da poqueca. Como quase todo mundo eu achava que moqueca vinha de moquém, que é aquele equipamento  usado pelos índios para conservar pela fumaça e leve calor peixes e carnes. Parece que não.  O moquém não é usado para preparar alimentos, mas apenas para desidratar e conservar. A carne e o peixe moqueados terminam de cozinhar depois,  no momento de servir. Então, a moqueca caipira (esta, tem aqui) vem de poqueca, que é o jeito de cozinhar embalado - no borralho ou na chapa quente do fogão.  

Veja o que diz o João Rural: Sempre li a origem de pokeka, como sendo algo embrulhado ou alimento embrulhado. Sempre achei em dicionário tupy que moquém é uma grelha, feita de madeira, de assar as comidas. Então, a meu ver a evolução de moquém para moqueca fica um pouco fora de sentido. E a pokeka antiga era mais assada na cinza ou brasa, mas também podia ser moqueada. Pode vir daí a confusão. Acho que merece um pouco mais de pesquisa sobre o assunto. 


A moqueca, base para a poqueca ou pirão
As poquecas embrulhadas vão para a chapa só para dourar







Bem, fui pesquisar no Câmara Cascudo e em alguns artigos. Acho que este, da Ana Maria Pinto Pires de Oliveira, do Departamento de Letras, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS, que fala sobre as unidades lexicais classificadas como brasileirismo/ regionalismo por Aurélio Buarque de Holanda, vale uma leitura, caso se interesse por isto. Para ver o texto inteiro e as referências bibliográficas, faça dowload do artigo aqui.  Agora, reproduzo só um trecho:

Por fim, temos a unidade léxica moqueca que, segundo o Dicionário Aurélio, é "prato típico brasileiro, em geral de peixe ou de marisco  ... e que consta de um guisado temperado com coentro ... sobretudo com leite de coco, azeite-de-dendê e pimenta-de-cheiro", tem étimo quimbundo e um sinônimo regional (PA), poqueca.  Registra também Aurélio o  vocábulo moqueca, estruturado a partir de moquear, por influência de moqueca, caracterizando-o como um brasileirismo do AM, decrevendo-o como "o peixe moqueado envolto em folha de bananeira". Já Teodoro Sampaio (1987, p.285) assinala que moqueca é vocábulo de origem Tupi, "apesar de alguns escritores afirmarem que é africano". Esclarece o autor que "o assado de peixe guisado, envolto em folhas de bananeira, feito pelos índios era chamado pokeka, de que se fez moqueca, corruptela de moqué ou po-ké que significa feito embrulho, o embrulhado, o envolvido." Daí o sinônimo regional usado no Pará.  Esta lexia foi dialetalmente marcada como um brasileirismo geral. Também Antenor Nascentes (1988, p.426) atribui-lhe étimo tupi mokeka, significando "feito embrulho". Em meio a esses desencontros Câmara Cascudo (1968, p.236) também menciona a existência de dois tipos de moqueca, uma de origem africana, cujo preparo recorre ao leite de coco, ao azeite-de-dendê, usando peixe ou camarão e outra, a moqueca indígena, mais seca, envolta em folhas de bananeira e assada em fogo lento ou no borralho. Menciona também esse autor que a receita indígena da moqueca é ainda feita pelos índios, mas que já se perdeu completamente no âmbito da sociedade, tendo em vista a preferência pela receita de procedência africana. Encontramos em Beaurepaire-Rohan (1956, p.166) o registro da unidade léxica moqueca definida como "espécie de iguaria feita de peixinhos ou camarões, tudo bem apimentado e envolto em folha de bananeira". Informa ainda esse autor que no Pará o alimento assim preparado tem o nome de poqueca. Explica o autor que, além dessa espécie de moqueca, que é seca, "há também outra feita de peixes ou mariscos, com molho de azeite e muita pimenta". Entendemos que a lexia moqueca tem procedência Tupi e representa uma iguaria preparada de modo diferente, pois usa apenas o peixe e a folha de bananeira para envolvê-lo, costume esse difundido sobretudo na região Norte do país (Amazonas e Pará), área na qual houve grande concentração de vários povos indígenas. A mesma iguaria foi recriada, em termos de ingredientes, sob influência africana que a temperou a seu gosto, transformando-a em alimento feito com peixe e camarão, azeite-de- dendê, leite-de-coco, pimenta e ervas, conforme seu habitual paladar. Parece ter havido alguma confusão em relação ao étimo do vocábulo moqueca e os diferentes modos de preparar essa iguaria. Assim, o preparo desse alimento terá suas variações conforme a realidade sociocultural de cada comunidade. Pela semelhança verificada no preparo deste alimento e, sobretudo, pelo fato de a receita de tendência africana ter sido a mais difundida em várias regiões do país, a iguaria ficou conhecida como um alimento de origem africana. Certamente em razão disso, também a lexia foi considerada, por alguns estudiosos, como de procedência africana.   De: 
Ana Maria Pinto Pires de Oliveira - Alia, São Paulo, 42(n.esp.): 109-120,1998


Um pouco mais na chapa e ele fica dourado como se vê na primeira foto

Dourado ou não, não sobra nada. Com caipirinha de limão rosa então...



E agora uma referência ao moquem dos Tupinambás, no século 16: Quando querem preparar uma comida de peixe ou de carne, que deve durar muito tempo, deitam o peixe ou a carne sobre pequenos paus à altura de quatro palmos acima do fogo, que fazem em baixo, de tamanho adequado, deixando o alimento assar e defumar até que fique completamente seco. Quando mais tarde querem comê-lo, cozinham-no de novo. Chamam a esta comida moquém.    
1554/  Enseada de Mangaratiba, Rio de Janeiro
STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil (1547-1554). São Paulo, Belo Horizonte, EDUSP/ Itatiaia Editora, 1974. p. 164

Ah, sim, eu ia falar do melhor pirão que já comi (e pirão vem de pira, pira é peixe e por aí vai...). Denis ora o chama de pirão, ora de poqueca e, feito com mandioca ralada, em vez de farinha, fica muito saboroso, com uma textura muito macia, como um nhoque quase. Ele primeiro faz uma moqueca com filé e usa todo o preparo para o pirão, mas você pode separar uma parte, como ele complementa na receita que me deu e que você pode interpretar ao seu modo (afinal, estas receitas são feitas intuitivamente aumentando um tempero aqui, diminuindo outro ali). Denis se sentou conosco e foi recompondo a receita que faz de cabeça. E todos os conceitos de moquecas e poquecas estão ali, afinal leva leite de coco e o dendê, influências africanas que foram para a panela com o peixe para fazer a moqueca baiana, e o açafrão-da-terra, asiático, amplamente assimilado por todo o Brasil e é simplesmente dourado na chapa, mas poderia ser também no borralho ou na brasa, pois o pirão já está cozido.  O que importa é que este pirão é de pirar.  A minha interpretação vou deixar para o post de amanhã, que este já está indo longe demais, já está na hora de almoçar e partir para outros trabalhos.
  
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Por enquanto, fique com a fórmula que ele me deu. Se quiser fazer, já adianto que na minha receita usei apenas 3 xícaras do caldo e 300 g de mandioca ralada - ficou diferente da dele, que usa a moqueca toda, feita com filé.  Você faça como quiser que, tenho certeza, nunca ficará como a do Denis (ainda assim vai ficar deliciosa). Agora, o melhor mesmo é se você puder ir comer esta poqueca lá no Caetê. Vale a pena. Ah, e tem caipirinha de limão rosa (com ou sem pimenta). 

Denis e as folhas de bananeira na porta da cozinha

Darly, Marcos e João Rural no salão

Tem também lojinha com ovos caipiradas em cama de folhas

E doces regionais
Restaurante Caetê
Rodovia dos Tamoios Km , 35 - Bairro Caracol - Campo Belo - Paraibuna, SP - Tel. 12 3974-7105


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Trilhas na brasa

Quando as Mullus argentinae aparecem e quando estão bem frescas,  só de imaginar o sabor bom de camarão que elas têm, não resisto. Desta vez comprei-as no Ceagesp, aonde cheguei sem a mínima ideia do que teríamos para o almoço de domingo. Voltei com as trilhas e já fui acendendo as brasas do fogareiro de barro,  que está sempre à mão, se não, dá preguiça. E coloquei para cozinhar na panela elétrica o arroz cateto integral com uma colherinha de gordura de galinha e sal. Fiquei pensando como assaria as trilhas na brasa sem destruí-las já que são tão frágeis. Olhei para um lado, olhei para outro e vi ali no quintal o pé de galanga recém podado com algumas folhas insipientes. Pronto, estava resolvido. Poderia ser também folhas de cúrcuma,  mas não é época.



Foi só temperar os peixinhos com uma pasta feita no pilão com um pouco de alho, um pouco de pimenta ardida, umas gotas de limão e sal. Enrolei as folhas como coeiro de bebê e bastaram dois minutinhos de cada lado para que a carne ficasse se soltando em lascas da espinha.  Enquanto isto, Marcos colheu algumas vagens de orelha-de-padre, já que a planta precisou ser reduzida para dar espaço para a videira que já anuncia os primeiros brotos. Tirei os fiapos do legume, polvilhei com sal e coloquei na cesta de vapor da panela elétrica já no fim do cozimento do arroz. Também dois minutinhos e estavam cozidas. Neste tempo ainda dourei uns cubinhos de alho e pedacinhos de pimenta em azeite, numa frigideira.  Passei aí as vagens e um pouco de cebolinha e nhac com o peixe e o arroz.  E ainda teve salada de almeirão com aqueles tomatinhos do quintal.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A volta do jacatupé


Se você não sabe o que é o jacatupé, melhor ler este post para eu não me repetir.  E também porque foi naquele mês de maio de 2009 que dei uma batata deste feijão para meu amigo Carlos Colombo plantar no Instituto Agronômico de Campinas, onde trabalha como pesquisador.  Neste blog as coisas vão e vem. Pois eu já havia até me esquecido do fato, quando recebo não só uma batata enorme como também as sementes,  que já foram presenteadas.  Ele conseguiu reproduzir a planta através do próprio tubérculo que eu lhe tinha dado. E a batata crocante com gosto de feijão doce dura muito tempo -  acho que já tinha mais de dois meses aqui na minha frente, até que tivemos um encontro com tortilhas e outros pratos mexicanos e achei oportuno levar também uma salada de jacatupé, parente muito próximo da jícama.



Doce, suculenta e crocante, a polpa branca fez um bom contraste com as fatias de nopalitos, que eu tinha aqui em conserva, ácidos, verdes e meio molengas.  De resto, foi só juntar  uns tomatinhos do quintal e uns pedaços de queijo fresco e temperar com pimentas, cebolinha, coentro, suco de limão e azeite. Pensei que poderiam achar a salada meio estranha, mas quando resolvi comer um pouco no intervalo das tortilhas, a saladeira já estava  limpa.  Melhor assim, acho que foi aprovada. Para saber onde encontrar jacatupé, tem lá também no post lincado.


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Omelete de Nazaré Paulista

Neste último sábado almoçamos em Nazaré Paulista, uma cidade perto de São Paulo com uma extensa represa. O tempo frio, com céu cinzento, impediu aquela paisagem de cartão  postal com a água azul contrastando com o verde das montanhas. Mesmo assim, é sempre bom repousar o olhar no horizonte de espelho d´água circundado por colinas neblinosas. E é esta a visão que se tem do restaurante Candinho, de comida caipira e tropeira, considerado o melhor de Nazaré, com o único pecado que é o serviço self-service por peso. Eu e minha irmã Suzana saímos de lá cheias de palpites (quem não os tem?) para que o restaurante aproveitasse o ponto excelente, a vista e as ótimas cozinheiras que tem para fazer pratos simples e bem servidos, que chegassem às mesas bem quentinhos. Afinal, todo o capricho que se tem na cozinha se perde em rechauds ressecantes e no excesso de mexeção dos clientes que buscam no fundo dos grandes recipientes o  melhor pedaço. A comida, para não perder o brilho, quase sempre tem que ser encharcada de óleo num serviço como este, até uma simples abobrinha refogada, que poderia chegar à mesa numa panela ou tigela com tampa, super quente, cozida no próprio vapor  - ao se abrir, a delícia do bafo da salsinha recém colocada e não precisa de mais nada, além de um arroz recém-feito. Mas isto tudo fica no campo do desejo de que estes restaurantes de interior aproveitassem todo o recurso que já tem para serem melhores que muitos restaurantes de São Paulo. O fato é que a comida é boa, o pessoal é simpático, mas implico com self service que deixa a comida feia e fria (e também  me decepciono quando um restaurante no interior não tem caipirinha ou limonada com limão rosa, tão farto no Brasil todo, principalmente nesta época do ano).

De qualquer forma, só pela omelete tradicional, vale uma visita. A receita, criada pelo restaurante, que tem quase 20 anos, ganha forma de rocambole graças à maestria de quem faz, mas também à chapa abaulada de ferro feita a partir da roda de um arado, que vai dando forma ao grande bolo de ovo e queijo.


Utensílio feito com roda de arado

Edilene, que comanda o feitio à frente do cliente, ensinou a técnica. Primeiro é que a receita leva uns 15 ovos e cerca de 300 gramas de queijo meia cura ralado. Tudo bem batido e temperado com sal, cheiro-verde (salsa e cebolinha), cebola, tomate e só.  A chapa bem quente recebe um pouco de óleo e toda a mistura de  uma só vez. Quando começa a dourar embaixo, é só dobrar um pedaço para que a  parte superior, ainda crua, escorra. Quando esta parte que escorreu já estiver dourada por baixo, dobra mais uma vez.  Sempre que se faz isto, empurra-se um pouco o omelete para cima - para fazer escorrer a parte crua. Na última dobra, o omelete ainda fica mais um pouco sobre a chapa quente para terminar de cozinhar. Agora é só cortar em fatias, como um bolo. Você não sabe o quanto isto é delicioso!  Da próxima vez, ficarei só na omelete e na salada orgânica, que é muito boa.

Restaurante, Pizzaria e Choperia Candinho - Rua Cel. Francisco Derosa, 108 - Centro - Nazaré Paulista.

Vista do restaurante


sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Izakaya Issa

Udom, bom para terminar a noite - a  qualidade da foto não faz jus à do prato 
Já ia me esquecendo de contar, mas não é pra exibir, não. É para, quem sabe, ser o seu programa de fim de semana. Você também pode dizer que já sabia. Muita gente já conhece, todo crítico já falou bem, um monte de chef bacana corre pra lá no fim da noite. Mas eu mesma não conhecia e tenho certeza que muitos dos meus amigos tampouco.  Então, não custa dar a dica.

É um bar japonês, Izakaya - termo que significa lugar de tomar saquê, mas onde também se come tudo o que é comida ligeira e gostosa, guiozas, takoyaki, okonomiyaki, sopas de macarrão e otoshis, que são umas entradinhas para acompanhar a cerveja, saquê ou shochu. Mas o cardápio é vasto. A gente fica sem saber o que escolher. Só não tem gohan, pratos com arroz, nem sushis - se não, não seria um Izakaya. E você se senta no balcão ou, se estiver com uma turminha,  num dos ozashikis - espaços reservados com mesa baixa e tatame onde se entra sem sapatos. Até aqui, nenhuma novidade, na Liberdade há outros bares assim.

O legal é que quem está por trás do balcão, além de uma equipe eficiente e simpática só de mulheres, também a própria dona, Margarida Haraguchi, mulher do Masanobu Haraguchi, que saiu do Myabi para montar seu próprio restaurante na rua de trás do Issa - de modo que as duas cozinhas poderão se comunicar.  Fomos, Marcos, Ivana e eu, depois do show da Cida Moreira, que foi ali perto. Fomos conversando e fomos ficando, ficando, até a Margarida vir se sentar com a gente e tomar a saideira. Ô mulher trabalhadeira! Alegre e ainda esbanjando sorrisos,  disse que chega em casa perto das duas da manhã e coloca todos os panos (são limpíssimos, como tudo ali) usados no restaurante na máquina de lavar. Deixa a máquina trabalhar um ciclo completo e deixa de molho até o outro dia com mais sabão e água sanitária. No outro dia, acorda e termina de lavar os panos. "Não pode ter um encardidinho, pra mim tem que estar branquinho", diz ela. Daí tem todas as pendências do Issa para resolver até voltar ao balcão. Quando Ivana a desafia dizendo que duvida que o Masanobu cozinha melhor que ela, Margarida desconversa: "Imagine, o trabalho dele é coisa de profissional, a minha é só uma comida caseira simples". Mas, que comida! E a simpatia da equipe, bem, depois você me diz. Bom fim de semana! (ah, gastamos R$ 160,00 em três e comemos e bebemos muito bem!)

Takoyaki


Margarida e Ivana
































Onde
Rua Barão De Iguape, 89
Liberdade - Tel.: (011) 3208-8819
De segunda a sábado das 18h30 às 23h30 / Domingo das 18h00 às 23h00
(saimos de lá já bem depois do horário de fechamento)

Pudim de coco com gemas. Ou o contrário.

A não ser que eu consiga juntar novamente 17 gemas congeladas, dificilmente vou fazer este pudim novamente. Mas posso adiantar que fica muito bom. Um misto de bolo de coco e quindim.

Na semana passada teve encontro do pessoal da USP-Acrelândia na casa dos amigos Marly e Marcelo. Eu fiquei de fazer as tortilhas, outros levariam recheios. Mas acabei levando também um sopa de tortilhas para montar na hora, uma salada de nopales com jacatupé (parente da jicama) e duas pastas de pimentas que se foram rapidamente. Por isto pude arriscar com a sobremesa. Se desse errado,  não levaria e pronto. Estaríamos salvos com o creme de cupuaçu do Marcelo, que estava divino, feito com a pura fruta do Acre.  Quase deu errado mesmo, pois quando o taxi chegou aqui, eu, cheia de sacolas, acabei derrubando o pudim no chão com prato e tudo. Mas o levei assim mesmo, com o prato em cacos. Chegando lá, veria o que dava para salvar. O pudim só ficou meio baleado, como se vê na foto, mas deu para tirar os pedaços da louça quebrada e desenformá-lo  em outro prato. Despejei a calda de tamarindo e nhac! Combinou com o sabor do coco e da baunilha mexicana que ganhei da Lourdes.

Então, se você tiver gemas sobrando e não quiser fazer um quindim, por ser mais trabalhoso, muito doce e meio enjoativo (opinião pessoal), faça este  pudim e leve a encontro com 17 pessoas ou mais, assim você come só uma das 17 gemas na fatia que lhe cabe e não vem aqui reclamar que exagerei no amarelo dos ovos. Eis a proporção que usei:

Pudim de coco com gemas

300 g de gemas (+-17 gemas)
2 xícaras de leite
150 g de coco fresco ralado (usei fresco congelado)
1 xícara de açúcar
Raspas de uma fava de baunilha  
O modo de fazer é o mesmo que qualquer outro pudim.  Com a diferença que fiz um caramelo com pouco açúcar para colocar no fundo da forma (1/4 de xícara) e servi com uma calda de tamarindo feita a partir da polpa  misturada com um pouco de água e açúcar - levei ao fogo e deixei apurar um pouco.