A coluna de ontem no Paladar foi sobre essa cozinha de circunstância que a gente tem que enfrentar quando está em casa fazendo café da manhã, almoço e janta. Sorte que é tempo também de aprender a cozinhar, tantas lives legais por aí, incrementar o repertório e aí sim sair por aí dançando conforme a música. Bem, minha coluna do Paladar saiu ontem no caderno "Na Quarentena" do Estadão. Está no jornal impresso, no site e também aqui, na versão bruta.
COZINHA
CIRCUNSTANCIAL
Mais do que nunca, estamos vivendo em massa a necessidade
de voltarmos à cozinha de circunstância e muita gente tem se dado conta disso
agora, no isolamento, a duras penas.
Lembro que durante alguns períodos nesta minha trajetória
profissional, fiz atendimento clínico como nutricionista. Geralmente quem me
procurava queria emagrecer e eu sempre hesitei em dar cardápio pronto. Preferia conversar, entender as rotinas, as
preferências, os hábitos e mostrar que dieta tem prazo pra começar e terminar,
que ninguém aguenta por muito tempo por ser antinatural. E por isso não
funciona. Queria mostrar que comer com consciência é exercício prazeroso para
uma vida inteira e isso envolve respeito a cultura familiar, memórias afetivas,
sazonalidade, meio ambiente e produtores. Agora, o difícil é mostrar o quanto a
cozinha é dinâmica e por isso cardápios assim não são sustentáveis em nível
doméstico.
O que mais me pediam era uma dieta semanal com
quantidades exatas e supostamente milagrosa, que tinha que ser variada e
equilibrada, atendendo às exigências para o perfil quanto a calorias,
proteínas, fibras, vitaminas e minerais. Muitas vezes ouvi frases assim: “Não
quero ter que pensar. Diga o que tenho que fazer, que faço”. De preferência, queriam receitas e lista de
compra. Queriam colar porta da geladeira e seguir à risca porque achavam mais
fácil. Era só pedir para a cozinheira e pronto, não precisava se implicar. E quando
não tinha cozinheira, era só eu passar tudo detalhadamente, que prometiam
seguir. Muitas vezes cedi, mesmo sabendo
que isso não funcionava. Hoje, jamais faria o mesmo. Sorte que agora há de um
lado pessoas mais em paz com seus biotipos e mais dispostas a entender que
mudanças de hábitos não têm prazo pra terminar e, de outro, há profissionais
fazendo coro a uma linha de atuação mais realista e demonstrando que relação
saudável com a comida não tem a ver com a funcionalidade dos ingredientes e a
ingesta de nutrientes. É muito mais. E esse entendimento chega sempre à cozinha
doméstica e dinâmica. Pensar, agir e
interagir são atitudes inerentes ao ser humano como é o ato de cozinhar.
São sobre esses aspectos que tenho pensado muito nessa
quarentena. Sem diaristas, cozinheiras e empregadas, que continuam recebendo,
mas foram para o recato de suas casas, muita gente acostumada a comer fora ou a
chegar e encontrar a comida pronta foi obrigada a aprender a lidar com esta
cozinha nada estática, onde no cotidiano o cardápio vai estar sempre fora da
porta da geladeira. O constante no dia a
dia é a cozinha circunstancial. Isso vem sendo assim desde que no mundo há
comida, e especialmente nesse momento de isolamento isso ficou evidente.
Diante das circunstâncias econômicas incertas e pouco
promissoras, quem tem juízo anda prestando mais atenção naquilo que deveria ser
a prática na cozinha cotidiana, que é conseguir aliar os hábitos e a
necessidade à sustentabilidade, à economia e ao aproveitamento sem
desperdícios. Para pessoas mais velhas, especialmente as que passaram por períodos
de escassez e dificuldade, não há novidade alguma em ficar em casa e aproveitar
de tudo até o talo. A resiliência já está incorporada nessa gente. Quem mais sofre
e tenta se adaptar a essa nova realidade são os mais jovens, de uma geração que
já cresceu com pai e mãe trabalhando fora, que não aprendeu a ligar um forno ou
a lidar com o improviso, que depende de um repertório que não se tem.
Claro, há aqueles cozinheiros de fim de semana, que fazem
a lista de ingredientes para um prato geralmente com sotaque internacional e vão
às compras em busca dos itens importados. Em casa fazem a mise en place e a mise em scène
– seguem à risca uma receita, usam
balança e termômetro, respeitam o diâmetro da frigideira e a panela é de grife,
abrem um vinho e não raro exibem o prato para sua rede. Está valendo, mas tal atitude não é de muita
serventia na cozinha de que falo.
No dia a dia, só ou com a família em casa, tem café da
manhã, almoço e jantar. E se há crianças e adolescentes, ainda tem lanche da
tarde e uma boquinha antes de dormir, com direito a dois ou mais preparos a
cada mesa posta. Nem todos podem ou
querem pedir comida por aplicativo, moda nesses dias, tendo como escolha se
rebolar para dar conta de cozinhar de forma saudável, variada, sustentável e recorrendo
o mínimo possível ao mercado. A saída é a cozinha dinâmica e circunstancial que
abusa da coleção de técnicas que se conhece para usar os ingredientes
congelados, armazenados, gelados e os que sobram e aparecem. E isso é para quem tem intimidade com a
cozinha. Preparar a própria comida deveria
ser tão natural quanto cuidar da própria higiene, mas a terceirizamos de tal
forma que num momento como esse é que percebemos que não há tutorial que dê
conta de programar no mínimo três refeições por dia sem repetição. E não estou
nem falando de saber reconhecer espécies comestíveis ou de plantar parte do que
se come. Em um cardápio escrito jamais
veremos preparos repetidos. Já na cozinha circunstancial, se você cozinhou
lentilha no jantar, certamente ela vai aparecer também no almoço e talvez
novamente na refeição seguinte. Está
pela ordem natural das coisas.
Imagine a seguinte situação. Você faz um cardápio para a
semana, prega na porta da geladeira, programa as compras e na primeira ocorrência
fora da ordem, é obrigado a mudar. É uma geleia que acabou no café da manhã e
você resolve aproveitar o fundinho para fazer um molho agridoce para a salada -
que era pra ser de batatas, mas a rúcula está começando a querer murchar. Você programou a lentilha para quatro porções,
mas alguém da família comeu mais pão do que o estimado e acabou sobrando os grãos
que no jantar teve que entrar na sopa. Nem era pra ser sopa, mas não dava pra
desperdiçar a lentilha. E já que tem sopa, aquela mandioquinha que era para o
purê de amanhã acaba indo pra panela de véspera. Uma amiga resolve te fazer uma
surpresa e te manda uma travessa de lasanha que acabou de fazer. E pronto, a massa
com frango fica para amanhã. O frango do
cardápio era com molho de tomate, mas uma vizinha trouxe do sítio uma sacola de
banana verde, maracujá e limão. Então teremos frango com purê de banana verde e
já não combina mais com o macarrão. O limão vai para o molho da salada e o
maracujá para o suco que no cardápio era pra ser de acerola que está congelada
e aguenta mais um pouco. E assim segue.
Pode ser que eu esteja falando para o outro, mas se você
se viu nesse cenário, saiba que nunca é
tarde para começar a tomar pé da situação. Vou
deixar aqui, não um manual a ser seguido, mas algumas das técnicas que uso em
minha própria cozinha que em qualquer época é sempre dinâmica, viva e adaptável
às conjunturas. Quem sabe elas não te levem a soluções mais apropriadas às circunstâncias
da sua cozinha.
Vidros
com restinhos de geleia, mel ou mostarda. Faça dentro deles seu
vinagrete convencional. Junte azeite,
vinagre e sal e terá um ótimo molho para salada que pode ser guardado na
geladeira por dias pra servir com qualquer folha.
Folhas. As
de mercado mesmo, todas podem ser refogadas no alho. Doure alho em azeite e
óleo e adicione a verdura fatiada fininha (coloque uma folha em cima da outra e
fatie). Mexa rapidamente até murchar, tempere com sal e pimenta-do-reino e está
pronta.
Sobrou
salada, verduras refogadas, picadas. Num vidro com tampa,
coloque uns dois ovos, junte o tempero verde que tiver, pedaços de queijos duros
ou mole, sobras de verdura, sal, pimenta e cebola, se quiser. Tampe o vidro,
chacoalhe bem e frite em duas porções em frigideira antiaderente quente com 1
colher de sopa de azeite.
Azeites,
óleos e gordura. Não é só azeite, óleo e manteiga que você
pode usar para fritar omeletes e refogar verduras e legumes. Se você refogar ou
assar pedaços mais gordos de frango, como a sobrecoxa, ou qualquer outra carne
mais gordurosa, ao final do preparo pode coar e guardar a gordura que soltou e
usar para fins diversos - fritar omeletes, refogar arroz etc.
Arroz. O
arroz de todo dia pode acomodar aquelas sobras que você quer consumir, mas não quer fazer um prato específico para
elas. Então, acrescente cenoura picada, pedaços de batata doce, de abóbora,
pimenta cambuci, folhas verdes e grãos como ervilhas cozidas. Refogue junto com a cebola e o alho e faça o
arroz como de costume.
Ervilhas,
feijões, lentilhas, grão de bico. Estes grãos demoram mais
para cozinhar, por isso, quando fizer, já cozinhe quantidade suficiente para
congelar, já temperados ou não. Podem entrar depois numa sopa, num molho de
macarrão, junto com o arroz ou na salada.
Deixe ao menos uma noite de molho para diminuir o tempo de
cozimento.
Pão. Se está sobrando pontinhas de pão, vá juntando na geladeira e quando tiver
uma quantidade boa, deixe de molho em leite, esprema bem e junte na omelete. Ou
combine com molho de tomate, fazendo um tipo de purê. Ou simplesmente torre,
coloque no prato e despeje um caldo quente por cima para fazer uma açorda.
Bem, poderia ficar falando sobre isso dia a dia, conforme
as circunstâncias que vão mudando, mas agora é com você.
Deixo aqui minha receita momentânea de geleia de jabuticaba
– amanhã já pode ser outro sabor.
Molho de geleia para salada