Pimentas e mandioca puba |
Hoje tem coluna no Paladar, do Estadão. O texto está no site do Caderno, no jornal impresso e também aqui.
Arubé. O molho do Brasil
Com a impossibilidade de bater perna
fisicamente nessa quarentena, a gente refaz mentalmente as boas viagens,
revisita detalhes dos lugares e valoriza ainda mais aquilo que já não se pode
ver e ter com facilidade. Agora sei com
certa sofrência que se eu quiser repor meu estoque de arubé, vou ter que
prepará-lo em casa. E já que temos aqui esse espaço, podemos fazer juntos.
Já conhecia de nome o arubé desde que o chef
de cozinha Ofir Nobre de Oliveira o apresentou em um evento do Slow Food em
Brasília, do qual participei há mais de dez anos. Era um creme liso com cara de mostarda tal
como a pasta que conhecemos mais comumente.
O sabor, ácido e picante, maravilhoso.
Desde então só tinha notícias desse molho por
bibliografias diversas, com as definições mais variadas possíveis. Faça você mesmo a experiência e procure a
definição de arubé em buscadores na internet
- prefira o Google Acadêmico. Em
minhas poucas viagens pela Amazônia nunca tinha encontrado para comprar. E olhe
que eu sempre procurava por ele. Mas as
Amazônias são várias e a gente vai aprendendo a se livrar das generalizações.
Calhou, então, de eu ter que fazer um
trabalho no começo de 2019, em Lábrea, Sul do estado do Amazonas. Assim que
entrei no Mercado Municipal, templo a ser visitado em primeiro lugar em
qualquer cidade por onde passo, me deparei com várias bancas vendendo arubé em
garrafas pet, sempre junto de feijões, pimentas e tucupis. Diferente de todo o meu imaginário sobre
arubé, que fui construindo a partir do primeiro contato e de quase todas as
descrições que tinha lido, ali arubé era um molho fluido, de coloração salmão
e, em repouso, separado em duas fases.
Nos bares, nos restaurantes, nas mesas do mercado onde se comem peixes
frescos assados na brasa, o arubé era presença constante. Só não trouxe mais na mala porque o avião de
pequeno porte com apenas nove lugares que faz o trajeto até o aeroporto de
Porto Velho não comportava grandes volumes.
A sorte é que o molho é tão comum em Lábrea, que muita gente sabe fazer
e não se importa de ensinar. Das explicações
que ouvi, duas eram idênticas e permitiram a repetição por aqui com resultado
bastante similar ao que provei por lá. Hoje é esse o tipo de arubé a que me apeguei
e que deixo aqui a receita. Mas se for procurar saber mais, vai se deparar com
informações às vezes conflitantes.
No livro Panorama da Alimentação Indígena –
Comidas, bebidas e tóxicos na Amazônia brasileira (1974), o autor Nunes Pereira
se refere ao arubé como uma “espécie de mostarda – é feito com tucupi, tapioca
e pimenta triturada, ganhando consistência pastosa. Seu nome é arubé. Como o
primeiro molho, referido aqui, nada fica a dever às criações, em matéria de
mostarda, que devemos a franceses e alemães”. Já no livro O Naturalista no Rio Amazonas, com
registros do explorador inglês Henry Walter Bates, que esteve em viagem pela
Amazônia recolhendo material zoológico e botânico para o Museu de História
Natural de Londres, entre 1848 a 1859, o
tempero que se servia com os peixes é descrito como “um molho, em forma de
pasta amarela, inteiramente novo para mim, chamado arubé, feito do suco
venenoso da raiz da mandioca, fervido antes da precipitação do polvilho ou
tapioca, e temperado com pimenta malagueta. É conservado em vasilhas de pedra
durante algumas semanas, antes de ser usado, e é apetitoso condimento para o
peixe.”
Outras descrições sequer mencionam a
pimenta. É o caso do catálogo A Arca do
Gosto no Brasil (Slow Food Editore, 2017) que elenca alimentos, conhecimentos e
histórias do patrimônio gastronômico no país. Nele, o arubé é descrito como “um concentrado
de tucupi (sumo da mandioca) usado pelos indígenas para conservar as caças e
que, com o passar dos anos, foi deixando de ser produzido e consumido na
maioria das tribos. É conhecido, inclusive, também como mostarda indígena”. Mas na grande obra do Luiz da Camara Cascudo,
História da alimentação no Brasil: cozinha brasileira (1983), o arubé aparece
junto com o tucupi como dois molhos de destaque no extremo-norte do Brasil e em
sua composição aparece a pimenta malagueta – “o arubé contem malagueta, sumo da
mandioca fervido, sal e outras substâncias aromáticas, bem trituradas. O arubé
em massa, também chamado arubé-de-sauvataia, além desses ingredientes contém
tanajuras torradas e em pó”. Outra
descrição, agora em artigo de 1929, do Hermano Stradelli, Vocábulos da Língua
Geral Português-Nheêngatu e Nheêngatu-Português, citado na própria obra do
Cascudo, o molho é descrito como “massa de mandioca puba curada ao sol com
pimenta malagueta, usada como tempero de comida” e cita ainda variações de
grafia: arumé, arumbé e arubé.
Como podemos ver, e aqui só registrei algumas
das citações, o que as variações de arubé têm em comum é mesmo a mandioca, que
pode ser mansa ou brava, pubada (deixada em água até amolecer) ou fresca ou
ainda na forma de manipueira, o seu sumo ou o tucupi já pronto. O acréscimo de
pimenta parece ser uma derivação natural e surge como parceria quase que obvia,
já que as duas espécies coexistem em boa parte das culturas indígenas na
América do Sul.
Embora não seja um molho tão comum como o
tucupi, feito a partir da manipueira fermentada e temperada com pimenta,
alfavaca, alho e coentro-de-pasto, o arubé pode ser encontrado em alguns
mercados na região Norte. Em São Gabriel da Cachoeira, o arubé se parece com o
que conheci, com a diferença que há a opção com saúva. Na última vez que estive
em Manaus, estava no aeroporto, numa loja de lembranças, e me deparei com arubé
industrializado, em embalagem plástica como as bisnagas de mostarda. Não
resisti e comprei para provar. Um creme amarronzado, muito picante e saboroso.
Na lista de ingredientes: massa puba, alho, polpa de tomate, cebola, sal,
especiarias, pimenta murupi, conservante sorbato de potássio. Pra mim foi uma novidade especialmente o
tomate e o sorbato, já que o que se diz do arubé e o que pude comprovar é que
depois de pronto não estraga nunca. Os meus, tanto os comprados em Lábrea
quando o que fiz em casa, duraram muitos meses sem nenhuma alteração no aspecto
ou no sabor. As duas vendedoras com quem
conversei, Maria das Graças Marques e Raimunda de Souza, não me passaram a fórmula
exata, pois não há, já que quem faz pode ir dosando a ardência com proporções
diferentes de pimentas ardidas e mansas e corrigindo a consistência com mais ou
menos puba. Mas, com generosidade, me contaram exatamente como faziam e o que
fiz em casa ficou muito parecido. Lá é
feito com mandioca mansa, conhecida simplesmente por macaxeira, pubada - os
pedaços são deixados imersos em água em temperatura ambiente por vários dias
até amolecer. Pode ser em potes de barro, tanques ou no rio, dentro de sacos,
em água corrente. Para não ficar muito forte, mistura-se um tanto de
pimenta-de-cheiro ou cheirosa com outro tanto de pimenta ardósia, nome genérico
para as pimentas ardidas. Elas são picadas e aferventadas em água com alho. O
líquido então é triturado e despejado ainda quente sobre a massa de mandioca
fermentada que vai sendo escaldada e pressionada sobre a peneira. Depois de pronto, nas garrafas, o aspecto é
de um molho bifásico, com a massa de mandioca no fundo. Na hora de servir, basta chacoalhar. Porém, conforme o molho vai acabando, sobra
na garrafa a parte mais densa e a consistência pode ser bem cremosa. Há quem
coloque na hora do preparo, junto com o caldo das pimentas um pouco de água de
urucum pra ficar um molho mais vermelho. Pode-se ainda deixar umas pimentas
inteiras dentro da garrafa. Geralmente é
um molho de mesa e acompanha qualquer tipo de prato salgado, mas é
indispensável para acompanhar peixes assados ou fritos. E, claro, serve para
temperar sopas, caldos, cozidos, refogados de qualquer natureza. Tabasco é bom até, mas prefiro Arubé.
Arubé à moda de
Lábrea
2
xícaras (230 g) de pimentas variadas
ardidas e mansas (pimenta-de-cheiro, pimenta malagueta, pimenta murupi,
dedo-de-moça etc)
1
litro de água (pode usar opcionalmente a
água fervida com grãos de urucum e peneirada)
2
xícaras (300 g) de pedaços de mandioca (macaxeira, aipim) puba enxaguada - descascada e deixada imersa em água, em
temperatura ambiente, até amolecer
2
dentes de alho (opcional)
Sal
a gosto
Faça em local aberto para evitar o vapor
irritante das pimentas. Coloque as mandiocas, que devem estar bem amolecidas,
sem os pavios, sobre uma peneira apoiada em uma tigela. Reserve. Lave bem as pimentas,
tire os cabinhos, coloque numa panela com a água (e o alho, se for usar) e leve
ao fogo até que amoleçam (cerca de 3 minutos). Bata aos poucos no
liquidificador. Enquanto o líquido ainda está bem quente (se for preciso, volte
ao fogo até ferver), despeje-o aos poucos sobre a mandioca, banhando toda ela,
amassando bem com uma colher conforme vai escaldando. Espere esfriar, misture bem e coloque garrafas
PET pequenas, deixando espaço de 3 centímetros até a tampa. Aperte a garrafa
até o líquido chegar na boca e feche bem. Deixe em temperatura ambiente e quando
a garrafa estiver dura, estofada, desrosqueie devagar e deixe escapar o gás.
Aperte de novo a garrafa e feche bem. Repita o procedimento por 3 a 4 dias ou
até não formar mais gás. Se formar uma natinha branca por cima enquanto
fermenta, não tem problema - basta chacoalhar para homogeneizar. Quando parar de formar gás, pode misturar bem
e passar para vidros limpos (ferva e deixe secar ao forno ou ao sol para maior
garantia). Feche e use como molho de mesa ou como tempero para pratos cozidos. Mantenha em temperatura ambiente, em local
fresco, por prazo indeterminado. Ou guarde na geladeira pra ter certeza de que
vai durar para sempre.
Rende: 1,2 litros