Hoje é dia de coluna no Paladar. Tanto no jornal impresso como no site. E aqui também:
Mugunzá é bom do doce e do salgado
Por muito tempo eu mesma generalizava o Nordeste como um
território único em costumes e saberes, assim como ainda há quem acredite que
nordestino é sinônimo de paraíba. Felizmente a gente cresce e aprende. E viajar
é uma forma eficaz de descobrir na prática porque se diz que toda generalização
é burra. Não existe um Nordeste coeso e
homogêneo como costuma ser apresentado. Basta
rodar cem quilômetros e tudo muda – o modo de vida, os ingredientes, o nomes
das coisas, as técnicas. Assim como em qualquer região. Que a canjica da parte Sul do Brasil seja
chamada de mugunzá mais ao nordeste, a
gente já sabe. Porém não imaginava que baianos da capital que apreciam o milho
canjicado com caldo grosso formado por leite de coco, açúcar, cravo e canela,
praticamente desconheçam a versão salgada do mugunzá, a alegria de festas
juninas, reisados e festas populares no interior do Ceará, só para citar o
lugar onde estive e pude comprovar.
Recentemente andei pela região do Cariri, no Ceará, conhecendo
várias iniciativas da Fundação Casa Grande, criada por Alemberg Quindins, como
os museus orgânicos que funcionam nas casas ou oficinas de mestres que têm o
que mostrar. Em visita ao Museu Casa do Mestre Antônio Luiz, no sítio Sassaré, em
Potengi, vimos a apresentação do Grupo Reisado de Couro no terreiro do casal, Antônio
Luiz de Souza e Rosa Pereira, que moram ali há pelo menos trinta anos, entre
máscaras dos brincantes, objetos familiares catalogados e uma provisão de
feijões de corda armazenados em garrafas pets. Havia muita gente da comunidade
que estava ali não só pelo espetáculo admirável de se ver, mas também para
apreciar o lanche – uma panelada de mugunzá de milho amarelo com fava branca,
servida no quintal. Dona Rosa explicou
que aquele levava um pouco de peito de frango desfiado além de 1 kg de fava para
cada 5 de milho, mas que poderia ser
feito também com carne de porco e feijão de corda no lugar da fava.
Tradicionalmente pode ser engrossado com nata, mas ela usou creme de leite de
caixinha, que parece ser a opção mais frequente.
O milho usado para cozinhar deve estar desprovido da
película e germe ou demoraria horas na panela. Tradicionalmente, nas roças
Brasil afora, o jeito de extrair a película é socando no pilão forrado com
palha - que é para os grãos não
espirrarem pra fora. Era assim que minha
mãe fazia quando era criança no Paraná. Em Piracaia, aqui pertinho, na Serra da
Mantiqueira, também era feito da mesma forma, já me contaram moradores antigos.
Hoje acham mais fácil comprar pronto.
No livro da Ana Rita Dantas Suassuna, Gastronomia
Sertaneja, a autora descreve o processo usado no sertão: “o mugunzá (também
apelidado de chá de burro) é milho desolhado, isto é, o grão sem a palha (ou a
pele que o envolve) e sem o amido que fica em uma das extremidades”. E fala do pilão: “Para realizar esse
procedimento, colocar no pilão algumas palhas do próprio milho e um pouco de
água, de modo a reduzir o atrito (do milho) na madeira, além de ajudar a manter
o grão o mais íntegro possível. Quando se termina, o milho é sacudido na
urupemba e lavado e, se preciso for, retorna ao pilão, até ficar completamente
sem palha.”
O milho usado pode ser do branco ou do amarelo. E a forma
de preparo, varia conforme a região. Doce ou salgado, havendo uma preferência
em se usar o amarelo em prato salgado e o branco, no doce, embora não seja uma
regra.
Depois que voltei do Cariri já cozinhei o mugunzá salgado
com complementos variados. É uma forma de se oferecer um prato gostoso e
nutritivo, feito com economia de tempo, dinheiro e energia, muito apropriado
para grandes encontros, já que combina leguminosa, cereal e proteína num só
preparo. E então, de repente, já nesta fase da vida, me apaixonei pelo milho
sem olho, especialmente o feito assim, com sal. Só não fiz ainda a versão
apresentada no livro de Ana Rita, o mugunzá com mão de vaca e linguiça. Lembrando
ainda que perto de nós, na Argentina, temos o prato chamado Locro, de preparo
bem similar.
Quando era criança, era o único alimento que não me
passava. Minha mãe sempre fez com leite de coco e amendoim, o que ajudava a
formar um caldo delicioso e era só o que colocava no prato – o caldo. Os milhos brancos sem o germe me assustavam
por terem formato de dentes e por isto não gostava da consistência e da aparência.
Carreguei isto para a vida, mas nunca é
tarde para aprender e mudar. Depois de me apaixonar por aquele mugunzá da Dona
Rosa, que comi e repeti, tanto faz, o doce ou o salgado, gosto dos dois modos. E tampouco importa o ingrediente que leve ou o
nome que carregue. Canjica, mungunzá, munguzá, mugunzá, pururuca, cada quem com seu moquém. O que faz falta
mesmo é termos mais opção de milhos crioulos, não transgênicos. Aí ficaria perfeito.
E só para esclarecer, o termo mu’kunza, origem das variações do
nome mugunzá, quer dizer, em quimbundo, milho cozido. Já kandjica na língua quimbundo quer dizer milho verde ralado e cozido
com leite ou leite de coco, temperado com açúcar e polvilhado com canela, o que
condiz com o que se chama canjica em vários lugares do Nordeste. Agora, porque
por aqui chamamos mugunzá de canjica e a canjica de curau, perguntemos ao fiscal.
A seguir, minha versão de mugunzá, seguindo mais ou menos o que Dona
Rosa ensinou.
500
g de milho de canjica (milho seco, sem pele e sem o gérmen)
250
g de feijão de corda seco
2
dentes de alho
1
colher (sopa) de sal rasa
2
litros de água
2
folhas de louro
1
kg de costelinha de porco cortada em pedaços
2
colheres (sopa) de óleo
Folhas
de coentro a gosto
Pimenta-do-reino
a gosto
Lave bem o milho e o feijão separadamente. Deixe cada um,
em tigelas separadas, coberto com bastante água de um dia para outro ou por
cerca de 12 horas. Soque o alho com o
sal, tempere a carne e deixe na geladeira por cerca de 12 horas para pegar o
tempero. Despreze a água de molho do milho e coloque na panela de pressão com os
2 litros de água limpa e as folhas de louro.
Tampe a panela, leve ao fogo médio. Depois que a válvula começar a
chiar, abaixe o fogo e deixe cozinhar por meia hora. Enquanto isto, coloque o óleo numa panela ou
frigideira grande e doure a carne de todos os lados. Desligue o fogo da panela, espere acabar a
pressão, abra a panela e coloque o feijão escorrido e a carne dourada. Junte mais água quente se for preciso. Tampe
novamente a panela e deixe cozinhar por mais 20 minutos. Abra a panela e veja
se a mistura está macia. Confira o sal e corrija, se necessário. Espalhe por
cima a pimenta-do-reino e folhas de coentro e sirva como prato único.
Rende: de
8 a 10 porções