quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Experiências jenipapais com o pão azul


Pão Azul: diferentes tons de azul jenipapo
Continuando aquele texto de terça-feira sobre experiências com os tons do jenipapo,  vou deixar aqui esta experiência que pode ser útil a mim mesma e, quem sabe um dia, a você. Já que em livro a gente não vai achar mesmo.

Bem, eu queria saber como se comportava o pigmento de acordo com as partes do fruto usadas e o meio.  Sobre o leite azul e a jenipina, já escrevi neste post.  Mas repito aqui a fórmula.

Leite azul para usos diversos

1/4 de jenipapo verde
1 xícara de leite

Bata no liquidificador o jenipapo sem pele (mas com sementes) com o leite até triturar bem. Coe e leve ao fogo para ferver. Ele deve ficar azul. Deixe esfriar.
Como pode ver, eu sempre uso o fruto inteiro, sem casca, mas com sementes. Desta vez quis experimentar as partes separadas. Assim, dilui em leite polpa e semente separadamente. E diluí também em água polpa e semente. Por fim, misturei tudo em água (o fruto inteiro com leite, eu já sabia).

O incrível é que assim que fervi (no post citado, tem também fotos do leite azul com o fruto inteiro), o leite ficou marrom, com apenas uma porção azulada. Mas depois, em repouso, ele foi azulando cada vez mais. Este mesmo leite marrom da foto ficou totalmente azul depois de cerca de 1 hora em repouso. Começou a azular a superfície e aos poucos todo marrom virou azul.

Fiz as massas de pão para comparar. A única que ficou imediatamente azul foi a feita com o miolo com as sementes apenas. Já a polpa pura, mesmo com leite, não deixou a massa azulada de imediato - só no forno.
Para cada 100 g de farinha orgânica branca da Paullinia, 2 g de sal, 40 g de levain fermentado e 80 ml de líquido (dos quais, 65 ml de água e 15 ml do líquido de jenipapo - leite ou água).  Usei técnica padronizada (como aquele pão que já dei aqui, mantendo as mesmas proporções). E assei todos ao mesmo tempo.

O resultado é que o que já era azul (ou seja, leite e miolo com sementes) ficou mais azul. O outro mais azulado foi o feito com leite e polpa. Mas os outros cujas massas foram feitas com água não tinham cor azul e só ganharam o tom depois de o pão ter sido assado.  O bom de usar o leite (e agora eu já sei, o miolo é fundamental mesmo quando uso polpa) é que você já pode controlar o tom quando está fazendo a massa.   Mas dá pra fazer com água também, só que o azul que se dá pela combinação da jenipina com aminoácidos só vai acontecer quando o líquido se junta à proteína na farinha sob forte calor. É um jeito de fazer o pão azul vegano, mas sem muito controle da cor. Às vezes pode ficar muito forte, quase preto.

Quanto ao sabor, nenhum deles revelou o amargor do jenipapo. Mas já fiz pães bem amargos quando usei meio jenipapo para um pão.  Ah, e o único que ficou azul inclusive na crosta foi mesmo o feito com as sementes.


A luz está ruim, mas o azul mais lindo é o com sementes
e leite 
E também o único azul por fora. 






Este, pão grande, com o fruto inteiro com leite. 

Aqui, para confirmar a experiência, duas massas de pães maiores.
Com leite e fruto inteiro (o pão acima) e a feita com água de jenipapo
(em vez de leite, água)
E as duas massas depois de assadas 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Folha-pepino ou erva-de-ganso, uma urtiguinha com sabor de pepino

Salada de pepino em folha
Parietaria debilis na fresta de uma calçada 
Você já deve ter pisado em muita erva-de-ganso por aí e não sabe o que está perdendo. Esta mini urtiga que não é urticante, tem perfume e sabor de pepino e está entre nós entre o inverno e a primavera. Podem ser consumidas cruas ou cozidas e atende pelo nome latim Parietaria debilis, tendo como apelidos folha-pepino, urtiguinha-mansa e erva-de-ganso (sim, patos e gansos adoram,  que não são bobos nem nada). 

Não é  brasileira de origem - é nativa em certas regiões da Ásia, Europa e África - mas se dá muito bem por aqui, assim como em várias partes do mundo, tratadas às vezes como erva daninha, crescendo em local úmido e sombreado. Se bem que é rústica e dá até nas frestas como se vê na foto.   

A salada tem cebola, tomate cereja e folhas de erva-de-ganso. Com sal, azeite e limão. Nhac! 

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Sobre jenipapos verdes e outros papos


Sobre jenipapos verdes e outros papos. Nunca tinha visto ninguém fazer leite azul e pratos azuis feitos com este leite. Tudo o que tinha visto com jenipapo verde levava a fruta inteira sem o leite e resultava algo amargo e de azul marinho quase negro e que só aparecia depois do prato pronto - o pão ia para o forno bege e saía preto. Eu queria um azul mais domável, que eu poderia controlar com o prato ainda cru, controlando a intensidade. Até que fui pesquisar sobre a química do pigmento e aí sim tive a ideia de combinar com leite, pois a jenipina, o pigmento, reage com aminoácidos livres e proteínas, potencializada pelo calor, oxigênio e tempo. Nascia o leite azul - tem post ensinando aqui no Come-se. Mas nem todo o processo está dominado. No meu Instagram uma pessoa me perguntou quão verde tem que estar o jenipapo para que o leite fique azul. Eu sempre uso a fruta quando está bem desenvolvida, com sementes formadas, mas ainda dura, sem cheiro. Se pode usar antes disso, não sei. Isto ainda não tem em livros - se tem, me apresente. O jeito é testar e só vou fazer isto quando tiver em mãos jenipapinhos. 

Então, nem toda resposta de que precisamos vamos encontrar em sites, blogs, livros. Alguns conhecimentos nós mesmos temos que produzir nem que seja a partir de alguma dica ou uma tese de cachola. Às vezes basta um teste. Que experimento, por exemplo, posso fazer pra saber quão diferentes são as farinhas em relação às absorção de água na hora de fazer um  pão? Basta pegar 100 g de diferentes farinhas e fixar um tanto de água. Algumas massas vão ficar mais duras, outras mais moles. Anote os resultados e terá uma informação produzida por você.   Hoje acordei com vontade de saber se:  o pigmento do jenipapo se expressa melhor no leite quando se usa polpa ou semente? O tom de azul é o mesmo? Claro que não vou encontrar estas respostas em nenhum lugar. Mas se tenho a oportunidade de testar, vou gastar menos tempo do que procurar em bancos de busca ou livros. Pelo menos em casos assim.  

A conclusão a que cheguei hoje é que o leite feito com a polpa ganha um azul claro que vai escurecendo com o tempo. O leite feito com o miolo e as sementes se separa de início em uma camada superior  azul e outra marrom. Aos poucos, fora do fogo, a superfície vai oxidando e ficando um azul lindo. O marrom se transforma em azul depois de uma hora. Ou seja, dá pra continuar batendo polpa e semente juntas que dá quase no mesmo. Quando a casca está presente, ela faz talhar o leite. 
É isto aí. Desde que não coloque nenhuma vida em risco, o negócio é desconfiar, se perguntar, testar, comparar. 


quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Cogumelos Yanomami. Coluna do Paladar, edição de 06 de setembro de 2018

Hoje é dia de coluna do Paladar. 

COGUMELOS YANOMAMI

Aproveito o assunto abordado pelo colega Roberto Smeraldi em sua última coluna aqui no Paladar para continuá-lo, já que cogumelo é um tema que me interessa e especialmente os cogumelos Yanomami que têm frequentado minha cozinha ultimamente em vários experimentos.

Certa vez participei de uma expedição para coleta de cogumelos nos arredores de Barcelona. Foi só uma coincidência ter chegado ali em plena temporada quando visitava uns amigos. Era um evento cultural gratuito oferecido pela prefeitura, com zero de afetação e o máximo de seriedade entre os participantes. Para não perdermos o ônibus,  acordamos de madrugada num sábado nublado, gelado e úmido, confesso que torcendo para que alguém ligasse dizendo que devido ao mau tempo o programa havia sido suspenso. Sorte que não, afinal o dia estava lindo para coletar cogumelos e foi uma experiência sensorial tão marcante se deparar com aquela biodiversidade toda num parque público e observar como aqueles catalães conheciam bem seus fungos e plantas, que nunca mais consegui olhar um cogumelo sem curiosidade. Voltei motivada a contar a experiência nesta coluna e pelo feito levei bronca de um leitor que me chamou de pedante e incoerente, pois deveria continuar escrevendo sobre produtos brasileiros genuínos e pronto.   

Mas é justamente experiência como aquela que me dá a rara oportunidade tão necessária do olhar com distância e que me faz ficar ainda mais inspirada e interessada pelas nossas próprias riquezas.  É o caso dos cogumelos Yanomami, mencionados por Smeraldi quando falou em sua coluna sobre o  botânico inglês, Ghillean Tolmie Prance, que em 1968 esteve em Auaris entre os Sanöma, povo Yanomami, para pesquisar plantas mas se deparou com uma realidade que nem desconfiava existir.  Mulheres coletavam e traziam cogumelos  embrulhados em folhas de bananeira quando voltavam da roça.  No XVI Congresso da Sociedade Internacional de Etnobiologia que aconteceu em Belém no último mês de agosto, o pesquisador, hoje com 81 anos e convidado para uma mesa redonda sobre gastronomia e biodiversidade organizada pelo Instituto Socioambiental – ISA e Instituto Atá, reencontrou Resende Sanöma, neto de uma das mulheres fotografadas na época,  causando grande comoção.  Na ocasião, foi apresentado o projeto sobre os cogumelos, uma parceria da comunidade Sanöma com o Isa e Instituto Atá, para produção e venda de um mix de espécies desidratadas. 

São cerca de dez tipos diferentes de cogumelos colhidos pelos Sanöma. Para que se seja viável a comercialização, eles são desidratados e triturados. Em pequenos pacotes, são vendidos no site do Isa (www.socioambiental.org) e no Boxe Amazônia/Mata Atlântica do Mercado Municipal de Pinheiros, com renda revertida integralmente para a comunidade indígena.

Então, quem pensa que coletar cogumelos espontâneos é coisa de europeu, saiba que este é também, desde sempre, hábito dos indígenas nativos desta terra, verdadeiros guardiões  do conhecimento sobre plantas, animais e cogumelos comestíveis da floresta.  E não é só entre os Yanomami.  No começo do século XIX, por exemplo, o naturalista Carl Friedrich Philipp von Martius e o zoólogo Johann Baptist von Spix estiveram entre os Saterés-maués, no Amazonas, e sobre o costume desses índios os viajantes anotaram que quando a mulher descobre que está grávida o casal é submetido a um rigoroso jejum à base de formigas, cogumelos e guaraná.  A informação aparece no livro Viagem pelo Brasil (1819-1820). vol. III, de 1938.

Mas, voltando aos Yanomami, afinal são de sua cultura os cogumelos encontrados no mercado,  são cinco os grupos que formam este povo. São eles:  Sanöma, Ninam, Yanomam, Yanomami e Yaroamë.  Os Sanöma são cerca de 3.000 pessoas divididas em 19 comunidades na região de Awaris, na Terra Indígena Yanomami, que fica às margens do rio Ãsikama u, o Rio Auaris, no extremo Oeste de Roraima (na Venezuela eles são em número parecido). Nesta região, os cogumelos de várias espécies são coletados em áreas de capoeira, onde antes havia plantação de subsistência.  Depois de 2 a 4 anos usada para cultivo,  esta terra é deixada em descanso para se regenerar, restando ali vários restos de troncos de madeira em decomposição.  É neste ambiente que crescem muitos dos cogumelos cultivados e de onde são colhidos geralmente pelas mulheres. Alguns, porém, vêm da floresta, coletados pelos homens. Quando frescos, na época da chuva, são assados embalados em folhas de helicônias, zingiberáceas e marantáceas, por exemplo, para comer com banana verde também assada na brasa. Já na época da estiagem, colhem os cogumelos secos e cozinham em água e pimenta  para fazer caldo aromático engrossado com beiju.

O livro “Ana Amopö: Cogumelos – Enciclopédia dos Alimentos Yanomami (Sanöma)”, lançado pelo Instituto Socioambiental em parceria com a Hutukara Associação Yanomami e ganhador do prêmio 59º Prêmio Jabuti na categoria Gastronomia e Ciências Sociais, é parte deste projeto de pesquisa e divulgação dos cogumelos Yanomami,  com o objetivo de valorizar o conhecimento indígena e gerar renda para atender as demandas das comunidades, tais como ferramentas para as roças entre outras.  

Entre os Sanöma, os cogumelos mais apreciados são das espécies Lentinula raphanica, Favolus brasiliensis e Polyporus philippinensis.  Tentando identificar os cogumelos que encontro no bairro da Lapa, em São Paulo, onde moro, fiquei surpresa ao descobrir que temos por aqui o mesmo Favolus brasiliensis, encontrado também em todo litoral do Brasil, de Norte a Sul, sobre troncos caídos em fase de apodrecimento.  Colhidos na horta comunitária, usei para fazer caldo com pimenta engrossado com beiju de mandioca à moda dos Yanomami.  E ficou delicioso, claro.

Sorte que quando não se tem por perto estes cogumelos frescos, a gente pode recorrer ao mix comprado. Há deles inteiros e em pó. Eu prefiro comprar em pó, pois mesmo quando reidratados aqueles inteiros não voltam a ficar tenros – ficam moles e resistentes. Para quem gosta deles assim, recomendo picar ou quebrar em pedaços menores antes de hidratar. Mas transformados em pó ou já comprados em pó são versáteis na cozinha e conferem um sabor umami impressionante a pratos salgados de toda natureza – o sabor umami é dado pelo  ácido L-glutâmico, um dos aminoácidos que compõe todo tipo de proteína e tem presença livre nos cogumelos secos, funcionando como um realçador de todos os outros sabores.  

Experimente misturar o pó a sal e pimenta-do-reino e polvilhe em abundância sobre uma carne de cordeiro a ser assada, por exemplo.  Ou deixe hidratando em um pouco de água por cerca de 1 hora e junte a refogados de cogumelos frescos ou a cozidos de qualquer carne que leve em seu caldo vinho, tomates, ervas e alho. Nos risotos, massas e sopas, o pó pode ser usado como funghi secchi.  O processo de secagem dos cogumelos envolve uso de calor a lenha, por isto o pó tem um sabor defumado muito bom que pode ser útil para se fazer pratos vegetarianos.  Pode ser refogado junto com cebola, cenoura e salsão para temperar assados e refogados de vegetais como ragu de berinjela, cozido de lentilhas e o que mais lhe ocorrer.  

Gosto de refogar o pó em manteiga junto com cebola, juntar macarrão de massa curta e água para cobrir. Em fogo baixo, cozinho até que a massa esteja macia e sobre um pouco de molho denso. Se precisar, junto mais água quente conforme a massa vai cozinhando, para que não segue e que fique sempre coberta com o caldo. Por fim, junto salsa picada e assim tenho um delicioso prato de macarrão com molho de cogumelos feito numa panela só. 

O fato é que não importa o prato salgado que esteja fazendo, não há outro tempero que se misture tão amigavelmente a vários tipos de ingredientes ao mesmo tempo que realce o sabor tão complexamente como o pó de cogumelos.  Tenha-o sempre por perto e nunca mais precisará usar suspeitos caldos em cubos e outros realçadores de sabor refinados.  

Macarrão de cogumelos Yanomami

20 g de cogumelo Yanomami em pó
2 colheres (sopa) de água
200 g de farinha de trigo
1 colher (chá) de sal
2 ovos

Misture o cogumelo com a água e espere 10 minutos.  Enquanto isto, coloque numa tigela a farinha de trigo (se quiser substitua 35 g por semolina de trigo para que fique mais firme) misturada com o sal. No centro coloque os ovos e o cogumelo umedecido. Com as mãos vá misturando os ingredientes até formar uma massa firme. Se precisar, junte mais água fria ou farinha aos poucos. Sove por cerca de 10 minutos ou até ficar lisa e elástica.  Se preferir, bata todos os ingredientes no processador.  Embrulhe a massa em saco plástico e deixe-a em repouso por 20 minutos. Abra na máquina de macarrão até o nível 4. Corte em talharins com cerca de 20 centímetros e mantenha as tiras estendidas em varal de macarrão até o momento de cozinhar. Ou polvilhe bem as tiras com farinha e faça ninhos sobre um pano.  Enquanto isto, faça o molho – receita abaixo.  Por fim, cozinhe a massa em água fervente abundante por cerca de 2 minutos. Escorra e coloque o macarrão na frigideira, chacoalhe para incorporar o molho delicadamente e sirva.

Molho de cogumelos

½ colher (sopa) de cogumelos Yanomami em pó
4 colheres (sopa) de azeite de oliva
1 cebola média picada
500 g de cogumelos frescos misturados cortados com 1cm de espessura
300 ml de creme de leite
2 colheres (sopa) de galhinhos de tomilho e folhas inteiras, extras, para decorar
1 pitada de pimenta jiquitaia ou pimenta seca em flocos
Sal e pimenta-do-reino a gosto

Hidrate o pó de cogumelo com  2 colheres (sopa) de água fervente e deixe repousar por 15 minutos. 

Aqueça o azeite em uma frigideira grande e funda,  junte a cebola e cozinhe em fogo baixo por cerca de 2 minutos, até ficar macia. Aumente o fogo para médio, adicione os cogumelos frescos e cozinhe,  mexendo de vez em quando,  por cerca de 5 minutos ou até ficarem macios.

Adicione o cogumelo Yanomami hidratado e mexa devagar, mantendo o cozimento por cerca 1 minuto. Acrescente o creme e deixe cozinhar por cerca de 5 minutos ou até que o creme tenha engrossado levemente. Junte o tomilho e a pimenta jiquitaia e tempere a gosto com sal e pimenta preta moída na hora. Desligue o fogo e junte ao macarrão bem quente. Use galhinhos de tomilho para decorar.

Rende: 6 porções


 
Favolus brasiliensis colhido na Horta City Lapa 
Favolus brasiliensis e o livro