Hoje tem coluna do Paladar do Estadão. Tanto no jornal impresso como no site do caderno. E tem aqui também:
FORNO
SOLAR - Armadilha de calor
Nos últimos dias estive bastante empolgada experimentando
um jeito diferente de cozinhar com um brinquedo que vai pela contramão das
novidades robóticas na cozinha. Trata-se
de um rudimentar e revolucionário forno solar, que deve ser encarado com a
seriedade que os novos tempos pedem, em nome da sustentabilidade e respeito às
novas gerações.
No começo, encarei mesmo como um divertido quebra-cabeça – são apenas quatro quadrados de 40
centímetros de papelão encapados com folhas aluminizadas, e dois menores para fazer a base, que chegaram pelo correio tendo com remetente
a empresa do Nicolau Francine chamada de Pleno Sol – plenosol.com. Um saco plástico transparente e alguns
prendedores de papel faziam parte do kit. O resto, um suporte metálico e uma
panela preta com tampa, seria por minha conta. Foi mesmo instigante montar uma
traquitana de aparência tão frágil com a promessa de que ela me entregaria em
breve uma comida cozida e quente.
Não quis me demorar em planejamentos e fui logo colocando
para aquecer em uma pequena panela de ferro - que era a única preta da cozinha
em tamanho adequado - algo que não
tardaria a me dar resultado positivo ou negativo, a água. Em pouco tempo ela ganhou temperatura suficiente
para cozinhar batatas, mas tinha em mãos apenas tupinambos que foram pra panela
e não demoraram meia hora para ficarem muito macios. Na empolgação, ainda
coloquei alguns ovos na água quente e, claro, em poucos minutos estavam cozidos. Logo descobri que não precisava adicionar
água, pois os legumes e até os ovos cozinhariam num ambiente combinado de calor
seco e vapor do próprio alimento. Nos
dias seguintes me revezei na torcida por chuva à tarde, por razões vegetais, e
muito sol pela manhã para poder me aventurar nas receitas e me aperfeiçoar na
técnica solar. Cheguei a assar bolo de
carimã e por pouco um pão não ficou totalmente assado antes de a chuva chegar.
É tão libertador poder usar uma energia limpa,
inesgotável e de graça que comecei a levar muito a sério o novo brinquedo.
Pesquisando, descobri muitos outros modelos inspiradores e já tratei de começar
a desenhar um personalizado que ainda não saiu do papel. Enquanto isso, fiquei animada em disseminar a
prática para o maior número possível de pessoas e espero que você também
resolva se aventurar.
Imagine você poder sair de manhã, deixar sua comida na
panela e chegar em casa com um prato pronto quentinho te esperando para o
almoço. É claro que não é um forno para substituir o fogão elétrico ou a gás,
mas sim para ser usado como utensílio complementar, afinal estaremos sempre na
dependência do sol. De qualquer forma, estamos em um país ensolarado na maior parte
dos dias do ano e a economia de recursos é imensurável.
Embora fornos solares não costumem frequentar a mídia
especializada em gastronomia, com a escassez iminente de combustíveis fósseis e
recursos florestais em pauta, cada vez mais o tema vem atraindo jovens pesquisadores
interessados na sustentabilidade das fontes energéticas renováveis. Há alguns
anos, por exemplo, a Escola Politécnica da USP sediou um simpósio sobre o
assunto e vários pratos foram feitos em diferentes modelos de fornos
solares. Ainda assim, os ativistas desta
forma de cozinhar fazem trabalho de formiga mostrando os benefícios.
Pesquisas com captação da energia solar são antigas, mas
o primeiro forno para fazer comida foi criado em 1767 pelo naturalista franco
Horace Bénédict de Saussure, considerado hoje o pai do forno solar. Ele observou que uma carruagem ou qualquer
outro recinto com proteção de vidro esquentava mais que o comparativo sem
vidro. Construiu então uma estufa com cinco caixas de vidros sobrepostas sobre
uma mesa de tampo preto e conseguiu uma temperatura suficiente para cozinhar e
assar a maioria dos alimentos. A partir da primeira experiência, aperfeiçoou o
design para atingir temperaturas maiores e outros pesquisadores seguiram seus
passos. Em 1830, o matemático, botânico
e astrólogo inglês, John Herschel, durante uma expedição para a África do Sul, cozinhou em sua caixa quente feita de madeira
enegrecida e vidro alimentos como carne e ovos. Seus relatos são um dos poucos existentes
na época sobre os resultados da técnica e contam como cozinharam adequadamente
e ficaram saborosas as comidas feitas na caixa, que incluíam carnes, ovos e até
um ensopado muito elogiado pelos companheiros de viagem.
Já mais recentemente, no início da década de 1970, as
americanas Bárbara Kerr e Sherry Cole projetaram um modelo de caixa feita de
papelão. Em 1987, sob inspiração e iniciativa destas duas pesquisadoras, foi
criada a organização a SCI - Solare Cookers International, que conta hoje com uma plataforma on line comprometida
com a pesquisa, divulgação e apoio a projetos ligados a promoção de fornos
solares especialmente para população em estado de vulnerabilidade social, mas
também para pessoas comprometidas com a causa ecológica – segundo a SCI,
estima-se que um forno solar usado por uma família que normalmente usa lenha
para cozinhar preserva mais de uma tonelada de madeira por ano.
O modelo CooKit desenvolvido por pesquisadores
apoiados pela organização é feito de papelão, tem custo baixíssimo e pode ser feito
em uma hora por qualquer pessoa – o molde deste modelo e centenas de páginas
com informações sobre o assunto estão disponíveis na wiki abrigada pela
organização: solarcooking.fandom.com/wiki/CooKit . Ele é um híbrido simplificado
entre o forno de caixa e o parabólico e inspirador de vários modelos atuais de
fornos de painéis espalhados mundo afora, inclusive do que ganhei da Pleno Sol.
Aliás, Nicolau também ensina a fazer o modelo que tenho em sua página de
instagram: @nicolauplenosol. E ainda vende outros tipos.
Atualmente
os fogões solares são muito usados em países da África e em campos de
refugiados mundo afora, tanto para cozinhar quanto para pasteurizar água. Há vários projetos para incentivar o uso na
Índia, China, Senegal, Afeganistão, Quênia e outros. No Brasil seu uso ainda não é muito
difundido, mas seria uma solução ao desmatamento no Semiárido, por exemplo,
onde o sol é abundante e a vegetação para lenha, ainda muito usada para cozinhar,
é escassa. Sem contar a economia de
tempo para a coleta de lenha, a diminuição de risco de incêndios e acidentes
com crianças e o impacto positivo no efeito estufa eliminando fumaças de
queima.
Para
quem tem curiosidade de saber como funciona, é muito simples, os fornos são
como armadilhas de calor. Os raios de sol batem nos painéis refletores e a luz
reflete na panela no centro do forno em forma de calor. Por ser preta, ela
retém este calor rapidamente cozinhando o que está dentro dela. A função do
plástico transparente ou da cúpula de vidro que pode ser feita com duas tigelas
acopladas é permitir que a luz do sol passe facilmente para a panela e impedir
que o calor aprisionado faça o caminho de volta.
Em termos de resultado dos fornos solares, podemos compará-lo ao das panelas elétricas de cozimento lento ou crock pots, como são conhecidas. O cozimento lento realça o sabor dos alimentos, já que vários compostos aromáticos são voláteis e se perdem sob altas temperaturas, o mesmo valendo para alguns nutrientes. Tem a vantagem adicional de dispensar o uso de óleos, manteigas e outras gorduras, pois a comida é cozida no vapor e não gruda. Não é preciso adicionar água em alimentos frescos e úmidos a menos que queira fazer um ensopado ou cozinhar grãos. E não precisa ficar cuidando, pois o máximo de erro que pode acontecer é cozinhar demais. Queimar, jamais.
Finalmente, para quem já se convenceu de que vale a pena
ao menos tentar cozinhar de forma limpa, algumas dicas: tente se programar para
o almoço por volta das 9 horas, assim aproveitará a melhor potência e inclinação
do sol, que vão até às 14 horas; use sempre panelas finas e pretas por fora e
certifique-se de substituir por madeira qualquer puxador ou cabo não metálico
que possam derreter - panela preta de ágata é uma boa opção; a panela deve
estar sempre tampada para reter a umidade do alimento; se o dia estiver muito
nublado e quiser arriscar o pouco sol, é bom que esteja por perto para
transportar a panela para o fogão convencional se for necessário; o melhor céu
para o uso do forno solar é aquele azul de brigadeiro; a temperatura atingida
gira em torno de 120º graus nos fornos de painéis, suficiente para a maior
parte dos alimentos, lembrando que a temperatura da água ou de alimentos que a
contenha não passa de 100 graus mesmo no fogão convencional; se a tampa da
panela receber bastante raios do sol e ficar bem quente ela servirá de fonte de
calor suficiente para encurtar o tempo de cozimento e até dourar o alimento; o
tempo de cozimento pode variar de acordo com o tipo de fogão solar escolhido -
os parabólicos atingem temperaturas bem altas rapidamente, os de painel são
mais lentos e os de caixa ficam no meio termo, com resultados parecidos com os
de um forno convencional; use sempre um saco plástico transparente alimentício
para reter o calor – é importante ter um apoio ou pedestal para elevar um pouco
a panela de modo que ela não encoste no saco plástico. Ah, por questão de segurança microbiológica,
só cozinhe carnes se você for ficar em casa para ter certeza de que o sol está
forte o suficiente para cozinhá-la em vez de amorná-la apenas, o que poderia
favorecer o crescimento de microrganismos patogênicos.
E então, que tal aproveitarmos o patrimônio energético
mais antigo do planeta para cozinharmos de maneira mais amigável?
Arroz
com feijão fradinho e repolho
1
xícara de arroz branco
1
xícara de feijão fradinho pré-cozido ainda firme (cozinhe em fogo convencional
ou um dia antes no forno solar)
¼
de repolho cortado em pedaços de 2 centímetros
2
tomates picados
2
colheres (sopa) de salsinha e cebolinha ou folhas inteiras de salsa-do-líbano
Meia
cebola ralada
1
colher (chá) de sal ou a gosto
1
colher (sopa) de azeite
1
colher (chá) de cúrcuma em pó ou a gosto
1
colher (chá) de páprica defumada ou a gosto
1
xícara de água
Em dia de muito sol, entre 9 e 10 horas da manhã, misture todos os ingredientes dentro de uma
panela preta e tampe para que fique bem vedada. Separe um saco plástico
transparente de uso para alimentos que suporte com folga a panela. Coloque um
descanso de panela de metal dentro do saco para que a panela não grude no
plástico. Coloque a panela, prenda o plástico (ou dispense o plástico se quiser
usar uma cúpula de vidro) Depois de 1 hora e meia confira e veja se precisa de
mais tempo para que o arroz absorva toda a água.
Passe o arroz para uma travessa, regue com azeite,
polvilhe páprica defumada e espalhe por cima ervas frescas. Sirva com peixe
frito.
Rende: 4
a 6 porções