Aqui está o mais recente texto publicado no caderno Quarentena . Paladar. Estadão. E me acompanhe no Instagram: neiderigo (tenho ficado mais por lá ;)
Soluções improvisadas para uma cozinha dinâmica
Neide Rigo
Está certo que no final da pandemia vamos ter que reunir
as mentes mais brilhantes desse planeta para tentar resolver, se é que isso será
possível e se é que teremos tempo hábil, a questão do mar de lixo e de espuma
no qual estaremos mergulhados. Nunca se
consumiu tanta embalagem de sabão e produtos desinfetantes, nunca se embrulhou
tanto em plástico, nunca se comeu tanto em pratos descartáveis. E,
infelizmente, num modelo de desenvolvimento e felicidade baseado no consumo e
na interdependência, com a doença viral em movimento e em alta velocidade,
nenhuma outra solução foi apontada de última hora, especialmente para o setor
de alimentação, para evitar o colapso total dessa estrutura de maneira mais
acessível e sustentável, sem perda de postos de trabalho – cai uma peça, todas
caem. Então, dá-lhe delivery!
Por outro lado, também nunca se cozinhou tanto em casa e
podemos dar nossa contribuição na redução do lixo. Está sendo um tempo para
aumentar o repertório de técnicas, ingredientes e receitas, tempo dos blogs,
dos cursos online, das lives e podcasts de comida. O que tenho visto é muito mais interesse não
só em fazer pão caseiro, pãodemia da quarentena, mas todo o tipo de preparo
antes delegado para a indústria, produtores especializados ou restaurantes. É gente fazendo tofu, queijo, linguiça, grãos
germinados, kimchi e fermentados de todo tipo. Gente desidratando cúrcuma,
secando tomates, plantando ervas comestíveis no jardim, conhecendo Panc, aprendendo
receitas novas. Pratos internacionais e inusitados vão se alternando com a
cozinha circunstancial e necessária do dia-a-dia ou são colocados em prática
nos finais de semana, com mais tempo para os hobbies. E isso porque a casa
passou a ser um espaço mais frequentado e quintais e varandas, mais explorados.
Desta forma, esses processos podem ser acompanhados mais de perto, seja pelo
tempo disponível ou pela busca do prazer que a sensação de novos desafios na
cozinha nos dá, já que outras fontes estão sendo adiadas.
Seja qual for o tipo de interação com a cozinha, é natural
que a expansão do repertório culinário venha acompanhada da necessidade de instrumental
apropriado. Então é momento de colocar a cabeça pra funcionar e botar em
prática nosso dom de criar e buscar soluções improvisadas. Podemos, com isso, repensar sobre a real
necessidade de termos em casa certos apetrechos para paixões que não duram mais
que uma quarentena e logo estarão no lixo junto de todos aqueles plásticos que
tanto criticamos ou no fundo do armário, esquecidos para sempre.
Acho curioso quando alguém que não me conhece começa a me
acompanhar no Instagram e me pergunta onde comprei algo que aparece na foto –
às vezes está lá no fundo e só aparece quando se dá um zoom. Sou obrigada a
responder a verdade – que aquele varal de macarrão era uma tábua furada, resto
de construção, que achei numa caçamba e o marido completou com pau de poleiro. Como
diz o ditado, quem não tem cão, caça com gato, e gosto de usar gato mesmo tendo
cão, só pra mostrar que é possível.
Não sou daquelas que persegue o objeto de desejo nem
sonha com determinado gadget de
cozinha. Mas também não posso dizer que
tenho gavetas e armários vazios. Em
minha defesa, tenho a dizer que eu já tive mais de meio século para acumular
apetrechos de cozinha, com a vantagem de que eles não se desgastam como
sapatos, dos quais não faço questão. E muitos utensílios chegam aqui por acaso
– por herança de amigos e parentes ou porque encontrei num mercado de pulgas,
feira, brechó ou comércio popular. Claro, alguns deles comprei deliberadamente,
paguei caro pela raridade, mas tem uso garantido na cozinha, que afinal é meu
local de trabalho. Além disso, sou vidrada não só na funcionalidade do
instrumento, mas também no desenho, na engenharia, na dinâmica e isso não tem
nada a ver com o valor, marca ou tendência.
Às vezes me apaixono pelo desenho do suporte de um coador
de pano ou por uma grade de arame para torrar pão que custa mais barato que um sourdogh. A minha sorte é que quase
sempre as peças baratas e populares são as que mais me chamam a atenção e
compro pela oportunidade – sou muito mais atraída por uma feira popular em
Caruaru do que uma loja asséptica trabalhada no brilho de shopping. Agora, para
as peças caras, últimas novidades, marcadas e datadas, tento logo encontrar
substitutos improvisados e é nesse desafio que mora a graça. Tenho tanto prazer
nesse processo que gosto de inventar mesmo não precisando.
Está certo que também acontece o contrário. A gente tem o
equipamento muito antes de descobrir qual é a sua utilidade. É o caso do spätzle maker, um instrumento que abrevia o trabalho de produzir
nhoquinhos de farinha de trigo tradicionalmente feito no Leste Europeu. A técnica original consiste em colocar a massa
pegajosa na tábua e empurrar com uma faca direto sobre a água quente. Hoje há
vários modelos desse instrumento vendido como nhoqueira e eu já testei várias
soluções para substituir o instrumento mesmo tendo o meu há décadas. Sim, minha
mãe comprou de um mascate durante a minha infância com a promessa de que com
ele faria nhoques mais rápido para os cinco filhos. Porém o vendedor não
explicou que não era aquele nhoque de batatas a que ela estava acostumada. O
aparelho morou debaixo da pia durante anos até que eu o carregasse comigo,
ainda sem uso, quando fui morar sozinha. Um dia vou descobrir a utilidade
disso, pensei. Poucos anos depois uma colega
alemã, de faculdade, fez um spätzle na aula de técnica dietética usando o apetrecho.
Fiquei tão feliz de ter descoberto e hoje gosto tanto de fazer este tipo de
macarrão a jato, que já inventei sabores e cores diferentes para ele, incluindo
o de folhas de capuchinha que publiquei aqui (https://paladar.estadao.com.br/noticias/receita,spatzle-de-folhas-de-capuchinha,10000012347)
e
já improvisei até frigideira esburacada com furadeira só pra dar de presente
para quem não tinha. Até determinado tipo de ralador de mandioca serviu de spätzle maker por aqui.
Tento imaginar a evolução natural dos novos equipamentos
e me inspirar no arsenal tão rico e mega eficiente da cultura indígena e
comunidades mais isoladas que fazem tanto com tão pouco. Antes do liquidificador
e processador, moedores manuais precedidos por pilões. Antes dos pilões, pedras
escavadas naturalmente. Antes dos pinceis, pelos de bichos ou paninhos
enrolados. Antes das peneiras, folhas tramadas. Antes das tigelas, gamelas de
madeira, cabaças e cuias. Antes de filme plástico, papel alumínio e papel
toalha, folhas de bananeira, de caeté, de sororoca. Antes da pandemia, viagens de
aprendizado e inspiração.
Recentemente estive entre os Kayapó, na aldeia Pykany,
estado do Pará, e fiquei impressionada de ver a variedade de pratos que conseguem
preparar usando basicamente cestos de palha para carregar a colheita e a lenha,
cuias pra pegar água, um facão para múltiplos usos, raladores para mandioca e
folhas de bananeira para embalar o alimento que é assado entre as brasas da
fogueira e as pedras quentes que vão por cima. Sem lixo e sem pratos para
lavar. Cada um pega um pedaço de folha, coloca seu alimento e no final tudo
volta para a terra. Já o arsenal de utilitários para se fazer farinha parece
ser mais rico e complexo – o mecanismo de pressão em estado de repouso do
tipiti para espremer mandioca é de uma engenharia invejável.
Mas fico feliz quando sei de tanta gente inventiva por
aí. Vira e mexe alguém me manda uma
gambiarra que inventou pra fazer alguma receita que mostrei no blog ou no Instagram.
Outro dia uma pessoa me mandou foto da forminha feita com pote de margarina que
foi todo furado para escoar o soro da receita de queijo de minha mãe. Então, a ideia é esta - quando for fazer uma
receita nova e não tiver o material necessário, olhe ao redor e certamente vai
encontrar uma solução não convencional que atenda à circunstância. Criar é prova de vida. Agora é a sua vez.
Se
quiser começar a praticar a arte do improviso, aqui vão algumas ideias
. Kits de germinação podem ser substituídos por peneiras,
garrafas pet furadas, vidros cobertos com pano, peneiras, pratos de barro para
brotos de chia etc.
. Desidratadores elétricos podem dar lugar a secadores
solares, peneiras e até por uma antena parabólica sem uso coberta com
mosquiteiro – ótima para secar cúrcuma que depois deve ser triturada para
guardar.
. A base da cafeteira elétrica pode ser usada para
cozinhar bananas com casca, esquentar um lanche embalado ou até fazer
panquecas.
. Cozinhar no vapor sem cuscuzeira é fácil – basta usar
um prato e um pano amarrado e emborca-lo sobre uma panela de água fervente sem
que um encoste-se ao outro.
. Dá pra fazer desenho na massa do pão usando como
máscara um ralo novo com algum desenho interessante.
. Quando quiser pulverizar só uma chuva fininha de pó
numa superfície, use uma meia de nylon (sem uso, claro) para fazer uma trouxa
de farinha.
. Faça uma nhoqueira ou spätzle maker usando uma frigideira de alumínio furada com
furadeira – basta colocar a massa pegajosa sobre a superfície furada e pressionar
com uma espátula para que fiozinhos caiam sobre a água quente.
. Se quiser fazer picles e fermentados que peçam airlocks, saiba que dá pra fazer um
eficiente selo d´água usando mangueirinhas de soro acopladas à tampa do pote ou
garrafa – o gás formado sai, mas o oxigênio não entra. Uma luva ou bexiga de
látex com um furinho de agulha também funciona.
. Bannetons para crescimento de pão são lindos, mas nem
sempre acessíveis e podem ser substituídos facilmente por chapéus, cestinhas
baratas e até pequenas fruteiras de plástico.
. E pra quê varal próprio para macarrão quando temos
cabides, cadeiras, pés de mesa?
Olhe ao redor!