FARINHA
DE RASPA
Acabo de voltar do Piauí e a cada viagem que faço por
estes rincões do Brasil descubro, maravilhada, diferentes subprodutos da
mandioca ou nomes regionais variados para um mesmo produto. Aprendo também com
os seguidores virtuais de todos os cantos.
Há dois anos mostrei no meu blog como fazer farinha de
raspa e acabei aprendendo mais com os comentários do que o que eu já sabia. Por exemplo, a leitora Vanilda Fernandes
Firmo contou que em Lagoa Formosa, Minas Gerais, faziam a farinha com as
mandiocas pequenas que eram difíceis de ralar ou com os toquinhos que sobravam
da ralação. Estas aparas eram secas ao sol e depois socadas no pilão. O que restava na peneira voltava para o pilão
e socavam novamente até não sobrar quase nada que não fosse uma farinha finíssima
e polvilhada que podia substituir o trigo em bolos e biscoitos. Quando o processo era feito no monjolo era
mais fácil, mas no pilão dava calo nas mãos.
Outra pessoa, também de Minas Gerais, diz que a mãe fazia esta mesma
farinha a que chamava de “para” ou farinha de apara e com ela fazia pães e
bolos deliciosos.
Já não me lembro de quando foi meu primeiro contato com
ela, mas certamente foi feita por mim, pois nunca achei pra comprar. Mas acho
que o interesse por ela nasceu de uma visita a uma aldeia Guarani anos atrás,
quando comi chipás, umas panquecas grossas e fritas feitas de farinha de trigo.
Fiquei intrigada com o trigo e a gordura e logo descobri que o preparo
tradicional era à base de milho ou farinha de mandioca e em vez de óleo era usado
gordura de yxo, larva, de
palmeiras. A partir daí não foi difícil
chegar ao tipo de farinha de mandioca usada pelos Guarani que sempre tiveram o
milho como alimento principal.
No livro Etnografia de los Guarani del Alto Parana,
de Muller, P. Franz. Buenos Aires: Caea Editorial, 1989, entre os modos de
preparo da mandioca a farinha de raspa está lá: "La raíz de la mandioca,
pelada, se hierve en agua o se asa con cáscara en ceniza caliente, o la mandioca es cortada em trozos y expuesta
al sol para su secado; luego es convertida en harina en el mortero; con
esa harina se preparan panqueques - popi - que son freídos en grasa. La harina
se llama cu-í.". Pela descrição, popi e a chipa que conheci são a
mesma preparação, feita com esta farinha à base de pedaços de mandioca secos ao
sol e transformados em pó no pilão.
Pelo fato de ser farinha crua e integral, já que só
a umidade é extraída das raízes, o amido tem comportamento diferente da farinha
de mandioca de mesa, que sempre é torrada ou cozida nos tachos, com amido já
gelatinizado. A farinha de raspa dá mais
liga à massa, porém sem ser grudenta como o amido puro, pois tem o equilíbrio
das fibras.
Por isto, no passado foi usada para substituir o
trigo, pelo menos em parte, na panificação e daí vem seu outro nome “farinha de
mandioca panificável”. E olhe que esta
farinha já esteve em destaque. Em maio de 2017, a seção “Há um século” deste
mesmo jornal O Estado de São Paulo trazia o seguinte trecho extraído do mesmo
dia e mesmo mês cem anos antes: Mandioca – A questão alimentar em boa hora
posta nos devidos termos pelo diretor paulista da Liga da Defesa Nacional, tem
encontrado estudiosos que procuraram resolvel-a pelo aproveitamento de material
puramente brasileiro. Cabe-nos o prazer de noticiar um processo inteiramente
novo para o fabrico de farinha de mandioca, panificável e de conserva
garantida.”
Se em todas as ocasiões em que a farinha guarani
esteve em alta foi por uma questão ligada ao trigo, mas de cunho mercadológico,
desta vez a farinha volta a entrar em cena também graças ao trigo, mas agora pela
repulsa ao glúten.
Num mesmo momento cronológico em que a farinha de raspa é usada
principalmente como ração, vendida a preços irrisórios atualmente, outro nicho
específico, em outro ambiente, se abre para ela. A farinha de raspa para alimentação animal
coexiste com a cassava flour encontrada
nos mercados nacionais e internacionais de gluten free.
Ou seja, a mandioca desidratada e finamente triturada, muito usada no
passado, pode ser novamente alçada a item de destaque e voltar a ser fonte
importante de renda para muitos produtores da agricultura familiar que ainda
não se deram conta do valioso recurso que têm em mãos.
Por isto sempre que encontro uma cooperativa que produz farinha, tento
convencê-los de que deveriam também produzir a farinha de raspa e mandá-la para
o mercado numa nova roupagem para consumidores de todos os tipos e preferências.
E não apenas para atender este mercado crescente de quem não come trigo como o
diabo foge da cruz. É porque realmente temos muitos portadores de doença celíaca,
que não podem mesmo comer trigo, e porque assim podemos dar uma folga para o
trigo, cereal que o Brasil não produz suficientemente para atender a demanda. E
também assim podemos valorizar os pequenos produtores de mandioca espalhados
por todo o país, já que o produto é gostoso, saudável, nutritivo e versátil e
neste momento teria boa saída. Além disso, não requer grandes tecnologias - uma
peneira ao sol ou um desidratador solar bastam, e um liquidificador faz um
ótimo trabalho de triturar em pó bem fino no lugar do pilão.
A vantagem é que ela de fato pode substituir o trigo em vários pratos e
inclusive tem o mesmo aspecto – fininha e branca. Diferente da farinha de mandioca
de mesa, ela conserva todo o amido original e, melhor que o polvilho que é o
amido isolado, ela conserva todas as fibras sem ser granulada. Para fazer pão, já não é tão fácil, mas um
pão de forma ou pães chatos como tortillas além de massas de biscoito e tortas
podem ser feitos usando a mesma receita de sempre, substituindo o trigo
integralmente.
Talvez você encontre esta farinha nos mercados de produtos sem glúten,
nacionais e internacionais, sob o nome de “cassava flour” ou “farinha sem
gluten” ou “farinha de mandioca crua”. Procure saber como é feita. Se a
mandioca foi seca ou desidratada e triturada finamente, é a farinha de raspa.
No Estados Unidos, uma marca de “cassava flour” faz sucesso e nada mais é que a
farinha de raspa do Brasil.
Se não a encontrar e desde que tenha acesso ao sol, faça em casa. A
minha faço assim: ralo a mandioca mansa (macaxeira, aipim) grosseiramente no
processador, espalho sobre um pano limpo e deixo uns dois dias sob o sol. Vou
virando e revolvendo até secar bem e ficar quebradiça. Depois trituro no
liquidificador aos poucos, peneiro e guardo o pó branco e fino. Para fazer
massas de torta, bolos ou biscoito, basta substituir a farinha de trigo por
quantidade igual de farinha de raspa.
Massa de tortilla
1 xícara de farinha de raspa
½ colher (chá) de sal
1 xícara de água fervente aproximadamente
Coloque a farinha de raspa numa tigela, tempere com o sal e vá juntando
água aos poucos e mexendo com colher até conseguir grânulos úmidos. Espere
amornar um pouco e amasse com as mãos até formar uma massa macia e modelável. Faça um rolo, divida em 10 pedaços e faça
bolinhas. Coloque uma chapa de ferro para aquecer. Entre duas folhas de plástico, abra as
bolinhas com rolo ou numa prensa de tortilla até ficar um disco bem fino. Tire
o disco do plástico de um lado e, com ajuda da mão espalmada, tire a outra
folha e coloque a massa numa chapa quente. Doure dos dois lados e sirva como
tacos com a cobertura que gostar – queijo fresco esmigalhado, abacate, tomate,
carne moída, feijão bem temperado etc.
Rende: 10 tortillas