De Bárbaras Eliodoras já bastam as que pipocam no eixo Rio-São Paulo. Portanto, limito-me à canjiquinha. E, claro, alguns elogios à peça Um Boêmio no Céu (direção de Amir Haddad), que estreou no Sesc Vila Mariana na sexta-feira. Afinal, nem o mais embrutecido dos homens consegue ficar indiferente às engraçadas malandragens confessadas a São Pedro pelo boêmio de alma Malasarte (José Mayer), recém-chegado ao céu. E também porque o lindo anjo em corpo de índia é vivido pela minha amiga Kátia Brito (índia perfeita, descendente de marajoaras) que, apesar da pouca fala, tem presença marcante do começo ao final do espetáculo.
Mas não fosse pela canjiquinha não estaria falando da peça aqui, que não é o meu papel. Há um mês já tinha visto no Rio, no último dia, com casa cheia. A canjiquinha não me chamou tanto a atenção, já que tudo era para mim a excitação da surpresa: o delicioso texto inédito do nosso poeta do sertão nordestino,
Catullo da Paixão Cearense (1863-1946), ele próprio um trovador boêmio e extravagante.
E o José Mayer cantando e tocando, e muito bem, quem poderia imaginar? Agora, na estréia em São Paulo, prestando mais atenção, impressiona a atualidade. À primeira vista os diálogos soam até como uma adaptação à época atual, mas não. O roteiro é fiel e cai, aqui e agora, como uma profecia, já que o texto tem mais de 60 anos. E, o melhor: é engraçadíssimo. (numa semana em que vi na 31ª mostra de cinema tantos filmes de chorar – não de ruins, mas de tristes mesmo, foi um alívio poder chorar de rir). Pois bem, falo da canjiquinha. É isto que me interessa aqui, principalmente porque ando na fase de resgatar pratos brasileiros esquecidos ou desconhecidos (aliás, a mulher do Zé, a Vera Fajardo, também resgatou este texto do Catullo, nunca antes encenado). É que em certa altura do texto, entre os prazeres da vida mundana, o Boêmio lista as delícias servidas na festa de São Pedro: ".. os doces, a vinhaça, o leitãozinho com a farofa amarela bem tostada, tendo na boca um túmido limão. E a batata assada na fogueira, a cana assada, a tenra macaxeira, o bolo de São João, o sarrabulho e a panelada. E a canjiquinha? (pergunta São Pedro, vivido por Antonio Pedro Borges). Doce e perfumada preparada por velhas e matronas. E o gostoso e mimoso arroz de forno estrelada de belas azeitonas....”
Certamente a canjiquinha citada é o prato que conhecemos no sul e sudeste como curau ou mingau de milho verde que, na região nordeste, ainda leva coco. Nada a ver com a nossa canjica – milho sem pele e sem o gérmen, branco ou amarelo – ou com a canjiquinha ou quirera - o milho sem pele ou germe, quebrado em pedacinhos como grãos de trigo de quibe. Mesmo assim foi esta canjiquinha salgada que fiz para minha amiga Kátia no almoço de sábado. Com costelinha e ora-pro-nobis refogada. E uma caipirinha de uvaia, que ninguém é de ferro.
Como não tirei foto no dia ou sequer medi ingredientes, refiz hoje o prato no almoço para registrar tudo direito e fotografar. Com pernil em vez que costelinha; e taioba, em vez de ora-pro-nobis. Mas, tanto faz. Mudo sempre, vão se acostumando. Não respeito nem minhas próprias criações. Aliás, que criação? é conhecimento ancestral refogar e cozinhar as coisas, botando nelas algum alho e pimenta. Foi o que fiz. Mineiros gostam de canjiquinha molhada, com a costelinha junto. Eu gosto assim, feito arroz, com a costelinha à parte. Às vezes cozinho até na máquina de arroz, na proporção de 1 parte de canjiquinha, para 2 de água. Mais sal, cebola e manteiga. É uma alternativa ao arroz de todo dia. E também vai bem com feijão, frango com quiabo, carne ensopada.
Outros pratos citadosSarrabulho: é o mesmo que
Sarapatéu: picadinho de vísceras e de sangue talhado.
Panelada: cozido de mocotó e vísceras.
Cana assada: era servida também no São João baiano. Parece que sumiu, pois minha amiga baiana e consultora para assuntos nordestinos Silvia Lopez, sua mãe Dona Solange e sua empregada do interior, desconhecem tal iguaria. Assim como a amiga de São Luiz do Maranhão, Márcia Manir, que também ignora. Fiquei curiosa para saber se ainda existe e como é feita. Se alguém souber, por favor me fale. Se não, vou testar no sítio no próximo feriado do jeito que achar melhor:
rodelas finas embrulhadas em folhas de bananeira, assadas na brasa.
Cajiquinha ou quirerinha Ingredientes 2 colheres (sopa) de banha de porco (ou azeite, se a culpa o atormenta)
3 dentes de alho bem picado
Meia cebola bem picadinha
Meio pimentão verde picadinho
Meio pimentão verde picadinho
2 xícaras de quirerinha lavada (ou canjiquinha, milho quebrado)
2 colheres (chá) rasas de sal
4 xícaras de água quente
Modo de preparo: numa panela de barro ou de ferro, aqueça a banha e frite nela o alho e a cebola até dourar. Junte os pimentões e refogue até murchar um pouco. Adicione a quirerinha e refogue com o o sal. Coloque a água quente e abaixe o fogo assim que começar a ferver. Tampe a panela e cozinhe em fogo baixo por cerca de 30 minutos ou até que a água seque e a canjiquinha esteja cozida e macia. Deve ficar com consistência de um risoto cremoso.
Rende: 6 porções
Para a costelinha
Ingredientes
2 kg de costelinha de porco
5 dentes de alho socados com 1 colher (sopa) de sal e 2 pimentas dedo-de-moça sem sementes e suco de 1 limão.
3 xícaras de água
Modo de preparo: misture todos os ingredientes, incluindo a água, e deixe numa tigela para pegar gosto, por mais ou menos 3 horas. Coloque tudo numa panela e deixe cozinhar até a água secar. Deverá formar no fundo da panela uma camada de gordura, que deverá ser suficiente para dourar a carne. Deixe dourar, salpique alguma erva por cima (alecrim ou cebolinha, por exemplo) e sirva com a quirerinha e alguma verdura refogada.
Rende: 6 porções
Nota: esta forma de cozinhar carne de porco aprendi com uma mineira e dá muito certo porque, enquanto a carne cozinha, um pouco de sua gordura derrete e serve para dourar a carne quando ela já está bem macia. Se precisar, é só ir juntando mais água quente, aos poucos. Hoje estava com pressa e fiz pedaços de pernil na panela de pressão, do mesmo jeito, só que com menos água. Foi rapidinho.
Ora-pro-nobis ou taioba refogada para acompanhar
As folhas inteiras de ora-pro-nobis, refoguei-as no azeite com alho e sal.
As de taioba, piquei-as e passei em água fervente salgada por 1 minuto (tem ácido oxálico e pode picar um pouco se não fizer isto) antes de refogar no azeite com alho. Simples assim.
Tenra macaxeira (mandioca aqui no Sul e Sudeste), descascada e cozida na feira do Ceagesp Batatas-doces assadas na fogueira, com amendoins torrados, de Fartura
Serviço
Um Boêmio no Céu
Teatro Sesc Vila Mariana
Rua Pelotas, 141. Telefone: 5080-3000.
De 19/10 a 18/11. Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h
De R$ 7,50 a R$ 30,00