Não sou uma pessoa muito gregária, não sou do tipo militante, não consigo me comprometer nos trabalho de equipe que envolvem muitos projetos e divagações, mas também não sou de ficar quieta reclamando da vida, da violência, do trânsito, da falta de tempo, da poluição e das agruras de uma grande metrópole como São Paulo. Há algum tempo percebi que posso ter uma outra relação com meu bairro além do bom dia boa tarde entre os vizinhos.
Pela minha rua passa gente de todo canto, que também pertence ao bairro, já que passa aqui parte do dia trabalhando. Quando iniciei, com minha vizinha Ana Campana, a horta comunitária City Lapa num pequeno espaço antes habitado por restos de poda grande e sacos de entulho, ouvi barbaridades de todo tipo de alguns vizinhos, como por exemplo que o pessoal da estação não iria respeitar a horta, que iria jogar lixo, que iria roubar as verduras (pra comer), num discurso carregado de preconceito.
Muitas pessoas que chegam de trem são de Barueri, Itapevi, Osasco, Presidente Altino ou às vezes vem de mais longe. São porteiros, recepcionistas, recreacionistas, professoras, guardas, seguranças, cozinheiras, acompanhantes etc. Eu também chego de trem, é bom dizer, e acho um luxo ter uma estação perto de casa que me leva ao metrô em duas estações. Depois que iniciamos a horta, acabei conhecendo muitas destas pessoas, ao menos de vista, de sorrisos, cumprimentos simpáticos e elogios à iniciativa. Eles param, um perguntando se temos guaco, outro oferece chuchu brotado, quer conhecer um pé de boldo, um quer uma folhinha de bálsamo, outro diz que nunca tinha visto vinagreira fora do Maranhão, e assim seguem para o trabalho, deixando a impressão de que vão mais contentes, de que se relacionaram de alguma forma com o caminho por onde passam, agora com flores e ervas cheirosas. Nunca vi jogarem lixo e só de vez em quando pego um papelzinho ou outro no chão perto da lixeira do poste, que deve ter caído no ato do recolhimento pelos garis.
Outro dia, uma moça com uma criança e um bebê veio ao clube e aproveitou para passear pela hortinha. Disse que gostaria de morar aqui e que gostava da horta. Foi só eu dizer que o único problema era a atual seca para a menininha, sem dizer nada, tirar uma garrafa de água da lancheira e ir molhar uma flor. Isto me comoveu.
Se uma simples horta no meio do caminho é capaz de modificar o ânimo daquele que tem o dia todo pela frente, isto já me deixa feliz. Agora, se é possível fazer um pouco mais, por que não? Alguns meses atrás percebi que não estava certo ficar guardando pilhas de jornal pra depois descartar tudo no lixo reciclável. Porque não oferecer para que outra pessoa lesse também ainda no dia? Afinal, ler não apaga a impressão. Marcos e eu lemos o jornal no café da manhã. Por volta de sete e meia, oito horas, quase sempre o jornal já está liberado. Então, resolvi colocar na calçada para que pegassem.
Se eu tivesse simplesmente deixado na porta, poderiam pensar que era lixo e é sempre encarado com certa humilhação pra muita gente pegar aquilo que foi jogado fora (eu nem ligo). E também poderiam pegar como jornal velho para o xixi do cachorro. Agora, se eu colocasse um aviso de que estaria doando, se tentasse recompor os cadernos lidos e se protegesse com o próprio saquinho em dias de chuva, ninguém teria vergonha. Seria como um sorteio, pega quem chegar primeiro. Foi tudo o que fiz, e as pessoas pegam sem pressa ou constrangimento como se fosse o jornalzinho do metrô.
Primeiro escrevi numa lousinha e deixei num suporte que colocava em frente à garagem - funcionou mas dava mais trabalho, porque tinha que ficar colocando e tirando o suporte. E eu acha feio. A segunda criação foi um suporte que achei mais charmoso. Ficou mais visível e as pessoas ficaram menos desconfiadas. Também tinha que colocar e tirar e um dia ele sumiu. Levaram o jornal e o suporte também. Quero acreditar que quem levou o apoio o fez por engano, achando que eu estava doando o conjunto completo. Não desanimei, fiz outro fixo, mais funcional.
Eu conheço alguns dos leitores que passam pela rua em horários diferentes e conseguem se revesar conforme meu horário de término da leitura. Outro dia, uma moça, professora de crianças, passou, pegou o jornal e me contou que todos os dias, em que coincidia de pegar, colocava o suporte na porta da minha casa. Eu já tinha percebido esta gentileza, mas achei que fosse algum vizinho. Disse que percebeu que roubaram o suporte e que aprovou o novo apoio. Contou ainda que não só lê o jornal na escola, mas também lê alguns textos com os alunos. No começo da semana uma outra mulher me contou que mora em Barueri, trabalha como recepcionista de uma imobiliária, e que no serviço outras pessoas leem o jornal, quando calha de ela pegar, e que ainda lê à noite com os netos, para incentivar a leitura.
Mas só estou contando tudo isto porque hoje, na hora em que fui colocar o jornal no atual suporte (um cabo de vassoura pregado num vaso de plástico que pintei com tinta de lousa para deixar o recado de doação), passou uma das simpatizantes da horta, da qual ainda nem sei o nome, só que é cozinheira.
Ela não leva o jornal, o negócio dela é planta. Perguntou se eu havia recebido os almeirões que tinha deixado na minha porta há algum tempo (um dia cheguei e havia um vasinho com bilhete). Respondi que sim, que ela estava diante de um dos exemplares, plantado bem ali na calçada. Os outros, plantei na horta. Ela ficou feliz, perguntou o que era aquele pé de verdura (mostarda), disse que quer sementes depois e foi correndo, que estava atrasada para o trabalho.
Tudo é só pra dizer que se você não pode fazer muito, não pode mudar o mundo, saiba que basta um gesto pequeno para modificar ao menos o humor de quem está à sua volta, seja quem for. E vai se isto se multiplique, vai que isto vire um viral (ou um varal de coisas assim)? A alegria que vai sentir com o retorno, dinheiro nenhum compra, acredite. E o mundo fica um bocadinho melhor.