A coluna de hoje está no site do Paladar, no jornal impresso e também aqui:
Pimenta rosa para além da estética
Quem anda observando as árvores
de São Paulo deve ter notado que nesta época do ano as aroeiras pimenteiras plantadas
nas ruas e praças como plantas ornamentais estão carregadas de frutinhos
vermelhos do tamanho de grãos de pimenta-do-reino. Tão caras no mercado, tão fartas nas rua. E,
apesar do
nome, estes pequenos frutos da
aroeira-pimenteira não têm nada de picante. Guardam
como semelhança com a pimenta-do-reino apenas o formato e o tamanho.
A pequena baga é do tamanho do
fruto de pimenta-do-reino, de cor que pode variar do rosa pink ao vermelho bem
vivo. Ela se parece com uma bolinha vermelha oca. Quando apertada, nota-se que
a parte vermelha é uma película fina e
quebradiça, que envolve uma semente ligeiramente adocicada e resinosa.
Até a semana passada eu vivia
repetindo que esta era uma especiaria que não me apetecia muito, talvez pelo forte
perfume de terebintina – as folhas rescendem ainda mais à substância e daí o
nome da espécie, Schinus terebinthifolia.
Acontece que me deparei com aroeiras exuberantes em seus cachos vermelhos
na entrada de Piracaia e no nosso próprio sítio naquela cidade, onde há várias
árvores crescendo espontaneamente na beira das estradas de terra, e então resolvi
dar uma nova chance às mimosidades. De
repente o sabor resinoso me fez lembrar do mastique, pepitas de seiva
endurecida da árvore Pistacia lenticus,
muito usado como especiaria em doces árabes, e assim a característica que antes
me incomodava começou a ganhar novo significado e despertar outros interesses
para possíveis combinações.
O incrível é que com com tanta
aroeira-pimenteira, árvore brasileira espalhada por todo o território, grande
parte da pimenta rosa vendida nos mercados, em passado bem recente, vinha da França, que
importava do Brasil, embalava e nos devolvia rotulada como baies roses ou poivre rose
para ser vendida em mercearias de produtos finos. Acho que pouca gente ainda
cai nessa atualmente, mas não custa avisar que embora a planta esteja espalhada
mundo afora, Brasil e Madagascar são os maiores produtores. Portanto, melhor
comprar a produção local não viajada.
Se bem que devemos aos franceses a
popularização de seu uso alimentício – a planta é tradicionalmente usada por
suas propriedades fitoterápicas, está entre as espécies medicinais elencadas
por naturalistas que percorreram Minas Gerais no século 19, como Carl FP von
Martius (1794-1868) e Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) e figura na
primeira edição da Farmacopeia Brasileira em 1929. Como especiaria, os frutos
começaram a ser usados na França no começo do século passado, mas sobretudo a
partir do avanço da nouvelle cuisine
na década de 1970 - mais por afetação que por suas características gustativas,
diziam os mais ranzinzas. O fato é que boa parte do mundo passou a conhecê-la e
abusar de sua beleza. Nos Estados Unidos, em 1982, a importação da França, que
comercializava os frutos do Brasil, chegou a ser proibida com a alegação de que
seu consumo não era seguro e poderia causar alergias e outros males, como
acontece com espécies da mesma família das Anacardiáceas como manga ou caju,
por exemplo. A proibição durou pouco tempo, mas foi suficiente para dar o que
falar, aumentando ainda mais a curiosidade.
Acontece que realmente todas as partes da
aroeira-pimenteira podem causar alergias em pessoas mais sensíveis, mas o uso das
bagas como tempero é considerado seguro. De qualquer forma, deve-se sempre empregar
em doses de especiaria, sem exagero nem assombros, lembrando que noz moscada,
cravo-da-índia e anis-estrelado também contém componentes tóxicos e podem fazer
mal se consumidos em grandes doses. Nada de fazer, portanto, dieta da
pimenta-rosa, e no aparecimento de qualquer sintoma suspeito pós-consumo,
deve-se suspender o uso.
O mesmo conselho vale para as bagas das outras
duas espécies encontradas por aqui, a Schinus
lenticifolius, que ocorre mais na região Sul, e a S. molle, originária dos países andinos e usada como árvore
ornamental sob o nome de aroeira-salsa – esta, com frutos mais amarronzados. As aplicações medicinais das três
espécies também são semelhantes e as
folhas são diferentes morfologicamente mas sempre cheirosas – usadas para
extração de óleos aromáticos usados na perfumaria.
Tudo bem que muita gente já não aguenta mais comer
salmão com pimenta-rosa, mas experimente misturar as bagas vermelhas com os
grãos de pimenta-do-reino em diferentes estágios de maturação e triturar todas
juntas. Ou passar pela peneira grossa e recolher apenas a pele fininha do fruto
que pode ser misturada em manteiga com umas gotas de limão, ou ainda ser acrescentada
à mostarda ou em caldas de sobremesa, por exemplo. As sementes, uma por baga,
se forem frescas, devem ser desidratadas por 10 minutos a 100 ºC para que
possam ser guardadas em vidros sem mofar. Na hora de usar, basta triturar como
pimenta-do-reino. Como aromatizante de
vinagres ou kombuchas, as baga podem ser acrescentadas ao líquido inteiras e
deixadas até conferir aroma. Elas ainda podem ser usadas como mastique ou misk
em sobremesas à base de leite como sorvetes, musses, pudins, bolos, biscoitos e
cremes. O sabor resinoso harmoniza bem com beterraba e creme de leite, daí a
receita que me colocou no grupo das pessoas que adoram pimenta-rosa para além
da estética.
Beterrabas
gratinadas com pimenta-rosa
300 ml de creme de leite
1 colher (sopa) de pimenta-rosa
1 dente de alho com casca amassado
2 folhas de louro
Sal e pimenta-do-reino a gosto
800 g de beterrabas vermelhas e amarelas (ou
só vermelhas)
1 pedaço de 100 g de pão de fermentação
natural duro ou amanhecido
1 colher (chá) de manteiga
1 colher (chá) de azeite
1 colher (sopa) de vinagre de vinho tinto
Preaqueça o forno a 180 ºC. Coloque numa panela o creme de leite, metade
da pimenta-rosa, o alho, as folhas de louro e uma pitada de sal. Deixe ferver em fogo baixo por 10 minutos.
Coe e reserve o creme perfumado.
Descasque e fatie as beterrabas bem finamente (se quiser, use mandolim
ou processador) e arrume as numa frigideira
de ferro ou forma refratária. Tempere com sal e pimenta-do-reino a gosto e
cubra com o creme perfumado. Cubra com papel alumínio e leve ao forno
preaquecido. Deixe assar por cerca de 1 hora ou até a beterraba ficar macia.
Enquanto isto, passe pelo processador o pão junto com metade da pimenta-rosa
reservada, além da manteiga e do azeite – ou rale o pão e misture tudo. Espalhe
o vinagre sobre as beterrabas assadas e em seguida cubra com a farofa de pão.
Deixe no forno, sem o papel alumínio, por cerca de 25 minutos ou até dourar.
Espalhe o restante da pimenta-rosa por cima e sirva como acompanhamento.
Rende: 8 a 10 porções