Este texto não tem nada a ver com comida, mas comigo. E no Come-se a chefe sou eu, que abro eventualmente espaço para elogios públicos e agradecimentos.
Na minha vida nada acontece por acaso. Pelo menos, não de uns tempos pra cá. Nem mesmo romper parcialmente ligamentos de joelho. Entrei hoje, pelo quarto dia consecutivo, na sala de fisioterapia, disse um boa tarde vago, já que nunca ninguém responde (nem aos meus tchaus) e um homem, desta vez, me perguntou: Como é seu nome? Imediatamente o reconheci. Era o Doutor Paulo Afonso de Castro, já com seus cabelos brancos. Abracei e beijei. E quase pedi benção.
Quem me conhece já me ouviu falar dele e do medo que eu tinha de nunca mais encontrá-lo para poder agradecer pelo que sou hoje. Imagino que ele não sabia de toda esta importância. Mas precisava saber. Muitas pessoas fazem diferença nas nossas vidas, além de nossos pais, e somos a soma de muitas delas. Só que algumas chegam, viram o botão da sua trajetória e você toma um rumo nunca previsto. E a única pessoa que fez isto foi este meu chefe.
Com 17 anos eu já ia para o meu terceiro emprego. Depois daquele trabalho num escritório pequeno, fui escriturária "A" na administração das antigas Lojas Arapuã. Alguma amiga de lá que estava feliz com seu cargo veio me perguntar se eu não queria me candidatar a uma vaga para secretária no Departamento Jurídico do Metrô. Eu quis e fui na hora do almoço. Da Rua Sergipe até a rua Augusta era um pulinho. Quando cheguei, conversei brevemente com o futuro chefe e ele me disse que o teste de seleção incluía uma prova de datilografia, que avalia tempo e erros. Até aí tudo bem, pois sabia e ainda sei datilografar de olhos fechados. O único problema era que eu nunca tinha visto na minha frente uma máquina elétrica (o auge da tecnologia naquela época - era 1978) e eu deixei isto claro. Veja lá se alguém é capaz disso: como era hora do almoço, ele disse que sairia para comer e, enquanto isso, eu poderia ficar ali treinando na máquina. Quando voltasse, faríamos o teste. Uma pessoa me mostrou os comandos e também saiu. Fiquei ali sozinha, num salão enorme cheio de mesas vazias e processos. Uma tecla errada que apertava, o carro do rolo disparava sozinho. Outra tecla e a folha era expulsa rolo acima. Datilografava a e saía mil vezes a. A hora de almoço passou rápido e no final já havia dominado a pressão dos dedos e os comandos de mudança de linha, tabulação etc. Fiz o teste - ele ditando a petição que eu já tinha ensaiado; pedi demissão no outro trabalho, onde também tinha um chefe muito querido, e logo comecei no emprego novo.
O trabalho era tranquilo. O que mais fazia era datilografar as petições do Dr. Paulo. Ele era inteligente, tinha estudado na São Francisco, escrevia muito bem e com veemência - foi aí que comecei a aprender a escrever. E era um homem justo, corajoso, falava alto e brigava com a própria Companhia quando discordava de algum acordo de indenização. Sempre defendendo o certo. Cada dupla de advogado do departamento tinha uma secretária e, pra falar a verdade, mal me lembro do outro chefe. Acho que ficava pouco por lá - do paletó alinhado na poltrona, eu me lembro. Acontecia às vezes de algum advogado, e eram uns dez, fazer trabalhos particulares e usar as secretárias do departamento para datilografar longas petições em letras ilegíveis. Ele nunca fez isto. Se queria algum trabalho particular, pagava por isto. E uma vez ainda brigou com uma colega por ela ter pedido o favor para mim. Anunciou para todos que se eu não tivesse trabalho do Metrô para fazer, que usasse o tempo ocioso ao meu favor. Depois disso, me mandou ficar às tardes, quando não houvesse trabalho, estudando na mesa dele, de porta fechada, enquanto ele estivesse no fórum - as secretárias ficam num salão coletivo e os advogados em salas fechadas. Por causa dele, comecei a ficar tão encantada com a profissão de advogado, que prestei vestibular para Direito quando terminei o colégio. Aliás, o colégio foi um caso à parte - ia do trabalho direto para a escola, onde dormia apoiada na carteira por ter acordado muito cedo. Nem amigos eu tinha de tanto que dormia, inclusive na hora do intervalo. E odiava todas aquelas matérias chatas, todos aqueles professores. Não tive aulas de física, química, biologia, história, geografia, matemática, literatura (talvez algumas para cumprir o programa, mas eu não me lembro de nada além de matemática financeira, administração, contabilidade 1, 2, 3...). Não passei no vestibular, claro. Ainda bem, pois teria sido uma péssima advogada, com uma formação básica lastimável. Comecei a fazer cursinho no outro ano.
Ganhava no Metrô o dobro do último emprego e minha única despesa grande era a mensalidade do cursinho além de ajudar um pouco em casa. Um dia aconteceu a virada. Doutor Paulo chegou de manhã, me chamou sério na sala dele. Não pensei em bronca, porque ele sempre me tratou com gentileza, mas fiquei assustada. Pediu para que eu me sentasse e perguntou: O que você faz com seu salário? / Ah, eu pago o cursinho, separo dinheiro pra condução, dou dinheiro em casa, compro roupa, vou na lanchonete com as amigas, faço a unha, compro revistas ... Coisas assim, de extrema importância. Ele foi anotando no papel. No final, eu tive que me esforçar para demonstrar gasto para todo o meu salário (certamente, mais do que ganho hoje). E quanto você guarda para os estudos, para o futuro? / Nada, ué! / Então você vai começar a guardar hoje. Ele é um homem forte, grande, que impõe respeito. Levantou-se e pediu para eu o acompanhasse. Foi comigo até o banco que ficava na parte de baixo do prédio. Chamou o gerente e explicou o que queria (ele queria). A partir daquele momento eu iria fazer um investimento compulsório. Todo mês 1/3, ou cerca disso, do meu salário ficaria retido por um ano, sem que eu pudesse mexer. Foi um choque, pois fiquei sabendo junto com o gerente. Mas foi aí que o botão virou.
Voltanto um pouco, mesmo depois de começar a trabalhar e conhecer algumas poucas pessoas formadas, nunca achei que pudesse um dia fazer faculdade (só de pirraça, fiz três - uma completa), tanto que cursei secundário técnico para ter uma profissão e não para preparar para o vestibular. Na infância, nunca conheci, além dos professores e talvez médicos e dentistas, alguém que tivesse feito faculdade. Na família, ninguém. Na vizinhança, ninguém. Em minha casa (e, por favor, não estou apelando para a cultura do coitadismo) não havia livros, jornais ou revistas. Então achei que minha vida poderia ser um pouco melhor bastando que estudasse um curso técnico. Meus pais também deveriam achar, embora eu sequer tivesse pedido a opinião deles. E, pronto, pararia aí, estava bom. Pra que guardar dinheiro? Não sabia o que aquilo significava. Só no Metrô descobri o que era faculdade e como se fazia para cursar uma.
No cursinho que fiz à noite, também só dormia. Até tentava estudar durante o dia na sala do Dr. Paulo, mas não entendia nada daquelas apostilas resumidas de matérias básicas que eu nunca tive. Não passei em nada no fim do ano, mas também não era pra ser: prestei Direito, Arquitetura e Agronomia! Foi quando resolvi que precisava estudar de verdade e, graças àquele homem, tive dinheiro suficiente para pagar à vista um ano de cursinho de manhã e todas as minhas outras despesas, incluindo cinemas. Não precisei pedir um centavo para os meus pais durante este tempo. Foi neste ano que me apaixonei pela botânica, que entendi um pouco de gramática e literatura, descobri a matemática e ainda encontrei um amor maduro.
É que de outro canto de São Paulo surgia o Marcos, que tinha feito uma trajetória parecida. Também de família pobre, também começou a trabalhar com 14 anos, também estudava à noite, também deixou um emprego para fazer cursinho de manhã, que também pagou à vista com seu próprio dinheiro, também pela segunda vez. Nos encontramos, nos apaixonamos e vivemos felizes.
Só muito depois me dei conta do que significou o gesto generoso daquele mineiro de Campanha, que estudou na São Francisco, e me passou alguns dos valores que guardo até hoje. E da necessidade de um dia poder agradecer. Hoje o fiz. Daqueles agradecimentos que não cabem em palavras. Conversamos enquanto ele cuidava do pé virado e eu, do joelho roto. Ele disse que o mérito foi todo meu, mas eu sei exatamente o tamanho da sua influência em tudo o que se seguiu.
Faz tempo que não tenho chefes, mas só recebo notícias de prepotentes e desequilibrados (as) que maltratam e humilham seus funcionários, que os chamam de burros, que os fazem chorar. Eu só quero chorar de emoção.
Que todos tenham um bom fim de semana e a sorte de encontrar um anjo deste por aí.