Hoje tem coluna Nhac no jornal impresso, no site do caderno Paladar e também aqui.
CARIMÃ
Por muito tempo, minha mãe acreditada que pão caseiro só
ficava bom se fosse assado em forno de
lenha, como se fazia no sítio dos meus avós, no Paraná. Os primeiros pães de que tenho lembrança eram
de torresmo e a gente levava a massa para assar na padaria do bairro, no forno
de lenha, claro. Como nossa vizinhança
aqui em São Paulo não tinha tradição de fazer pão, ela deve ter descoberto com
alguma cliente de costura que poderia, sim, usar para isto seu forno doméstico
e foi se arriscando na empreita para alegria da filharada que passou a comer
pão quente com chá mate no chá da tarde.
Isto é só para comparar ao que acontece ainda hoje com
nossas técnicas ancestrais que muitas vezes se perdem por continuarem restritas
à forma, ao ritual, aos equipamentos e à
dimensão, nem sempre compatíveis com a vida urbana. Gosto de adaptar estes preparos para as
circunstâncias de nossas cozinhas. Trazê-los para a atualidade ajuda a manter
viva a tradição que muitas vezes é substituída por alimentos ultra-processados.
A mandioca, que não canso de saudar e endeusar, é um caso emblemático, pois não conheço outra
espécie vegetal que nos dê tanto subproduto. Só de tipo de farinha, são tantas as variações
que certamente há um tipo para cada dia do ano, com dizem os franceses em
relação aos queijos. Durante séculos de
evolução, os donos dessa terra tiveram tempo para aperfeiçoar técnicas que
infelizmente vamos morrer sem conhecer ou vão desaparecer sem que antes
pudéssemos ter o privilégio de saber – caso também da alta densidade
linguística original que cai dia a dia, para preocupação de ativistas e antropólogos. Com um repertório indígena tão rico, é triste saber que a mandioca sobrevive entre
nós basicamente como legume, farinha e o
beiju de tapioca que se popularizou recentemente. É triste também saber que
mesmo com a moda, o conhecimento tradicional não acompanha, por isto não é raro
encontrarmos quem se espante ao descobrir que a tapioca úmida do mercado é o
mesmo que polvilho molhado, que tapioca é o nome do amido da mandioca ou que o
disco chamado de tapioca é um tipo de beiju e que beiju é o pão chato indígena
e pode ser de tapioca, mas também de massa e ainda de tantos outros
jeitos.
E aí é que entram os equipamentos domésticos que podem
nos incentivar a dar seguimento, se não à técnica original, ao menos à adaptação,
sem nunca esquecer nossas referências. É claro que ninguém vai ficar na cozinha
do apartamento socando lascas de mandioca para fazer farinha de raspa, mas um
liquidificador, para quantidades
familiares, e se for um super liquidificador ou um Termomix, melhor ainda,
resolve esta parte do processo. Não
vamos ter um riacho de águas limpas na porta de casa para deixar uma cesta com
mandioca para fermentar e amolecer, mas um pequeno pote com água na soleira da
janela resolve. Um processador pode
adiantar o processo de amassar de forma bem uniforme a mandioca amolecida
quando não se tem tempo para amassar com as mãos. Com aparelhos que costumamos ter em casa é
possível incorporar à nossa dieta tradições que aprendemos com povos
tradicionais e assim torná-la mais acessível, local, sustentável e nutritiva.
Todas as vezes que viajo me surpreendo com as formas que
a raiz e seus derivados adquirem conforme o sotaque e, a cada descoberta, uma
nova paixão me acomete. Nos dois últimos
meses viajei para a Amazônia e para o Nordeste e o produto recorrente foi a
carimã, cujo nome pode variar se estamos no Norte ou Nordeste e que nada mais é
que a mandioca, mansa ou brava, fermentada e amolecida dando origem a vários
preparos. É uma forma tão genial de
transformação que não resisto a comparação ao milho nixtamalizado dos mexicanos
– o tratamento com cal e calor facilita a extração da película e torna o milho
mais nutritivo e flexível para fazer tortilhas.
A mandioca brava, que não serve pra ser comida como legume, com a fermentação se torna mole e pode ser
descascada com facilidade, perde a toxicidade, mantem quase todo o amido, pode ser esmigalhada em vez de ralada, e pode ser consumida na forma de farinhas,
bolos, beijus. Ela pode ser descascada
também, mas não precisa. Conversando com um produtor do sul da Amazônia, ele me
disse que costuma deixar a casca quando faz a pubagem em água de igarapés, pois
a casca protege de manchar com terra. Se fermenta em caixas, já prefere
descascar, pois ficará mais branquinha. Enquanto
no Norte a mandioca pubada costuma ser a brava e segue principalmente para
fazer farinha d´água (nomeada assim porque a mandioca fica na água), no
Nordeste a mansa também é usada, pode ser chamada de carimã e é comercializada
fresca ou seca para se fazer bolos, mingaus e preparos como o grolado – a massa
é levada ao fogo em frigideira de ferro com manteiga e mexida até formar
pequenos grumos cozidos e é tão delicioso como um cuscuz.
Em Fortaleza |
Em Fortaleza, no Mercado São Sebastião, há carimã fresca
para comprar durante o ano. Quando chega a época das festas junina, o consumo é
tão grande que vendem também a farinha que foi sendo produzida ao longo do ano,
para atender a demanda para papas, bolos como o pé-de-moleque etc. Ali a
mandioca usada é a mansa, também chamada de aipim ou macaxeira (em São Paulo,
chamamos simplesmente de mandioca porque não temos da brava - lembrando que ambas são da mesma espécie, Manihot esculenta, sendo que a brava tem uma
quantidade maior, acima de 100 ppm, de glicosídeo cianogênico, a substância que
lhe dá o caráter tóxico quando não fermentada).
No Sul do Amazonas a massa fermentada, antes de virar farinha, se
transforma também em arubé, juntando-a com pimentas socadas e isto será tema
para outra coluna, de tão viciada que estou. Que tabasco, que nada, todo
restaurante tinha que ter arubé!
Em São Paulo, no Mercado da Lapa, também tem puba para
comprar, mas lembro de uma vez ter ligado para o produtor do Ceará e ele
misturava puba e massa fresca. Eu
prefiro usar carimã pura, que é lisinha, rica em amido, com a fibra toda
desfeita. Em Goiânia comprei uma vez
bolinhas de carimã – é a massa transformada em bolas e secas ao sol. É assim
que se faz a farinha de carimã: a mandioca fermentada e mole é lavada, bem
escorrida e passada em urupema para tirar o pavio e fiapos, que podem também
ser tirados com as mãos. A massa é então espremida em pano ou saco de nylon e transformada
em bolinhas que são secas ao sol. Podem ser guardadas assim ou piladas ou
trituradas pra virar farinha. A
diferença desta para outras farinhas de mandioca é que ela é crua e integral,
enquanto a que usamos como farinha de mesa é torrada. Esta e outras cruas como
farinha de crueira e a de raspa – chamada internacionalmente de cassava flour,
conservam o perfume da mandioca, são brancas, fininhas e ricas em amido,
características que as fazem perfeitas para substituir o trigo em vários
pratos. O mingau de carimã costuma ser o preparo mais citado quando cito o
ingrediente, conservando a ancestralidade das papas nem doces nem salgadas. Bolos ancestrais mais rústicos, assados na
palha de bananeira, ganharam acréscimos
de ingredientes exóticos de cozinheiras portuguesas, como manteiga, açúcar e
leite. Em compensação, o famoso bolo pernambucano Souza Leão nasceu do processo
inverso, incluindo a massa de carimã no lugar da farinha de trigo. E o pé-de-moleque é outro que ninguém deixa
de lembrar quando se fala de puba. Leva especiarias, castanhas e o preparo pode
variar conforme a região. Em comum, a mandioca fermentada e o invólucro de
folha de bananeira.
O fato é que podemos fazer carimã em casa com a mandioca
mansa que compramos na feira ou no supermercado, como fazemos kefir, kombucha
ou coalhada, de modo muito simples que pode se adaptar a qualquer estrutura de
cozinha. Até mesmo com aquela que já vem descascada. E por falar nisso, uma vez
esqueci na geladeira por uns três meses um saco com mandioca, desses que vêm
com água, e quando abri ela estava totalmente derretendo, com cheiro agradável.
Passei tudo pelo processador, usei a
massa para fazer bolo e ele ficou divino. Depois pensei que nem precisava ter
passado antes pelo processador. Bastava bater as próprias raízes moles pelo
liquidificador junto com os ovos, leite de coco e manteiga derretida. Às vezes faço mingau assim também. Bato um pedaço de mandioca puba junto com o
leite e levo ao fogo para espessar.
Uma prática comum em relação à massa de carimã é enxaguar
as raízes várias vezes depois de escorrer a água fermentada que costuma ter uma
nata branca de fungo por cima. Se a
água, que não é trocada durante o processo, está muito fermentada, o cheiro será
forte e esta operação é fundamental. Para isto, usa-se um saco de pano. Lava-se
e deixa escorrer o excesso de água, como se escorre uma coalhada. Nem sempre há necessidade. Se as raízes estão
bem limpas e se são retiradas da água assim que ficam mole, basta um enxague em
água limpa.
Ainda que esta técnica indígena seja mais amplamente
difundida no Norte e Nordeste, podemos encontra-la mesmo em São Paulo. No Vale
do Ribeira, comunidades quilombolas e população rural também a aplica para no
feitio do bolo em forma de cilindro embalado em folha de bananeira, chamado coruyá
ou coruja. É salgado, massudo, ligeiramente ácido e tem a cara de um
provolone. Atualmente quase não usam
mais a folha de bananeira, que lhe dava tanto sabor quanto graça no
invólucro. Para fora do país, a técnica de pubagem também parece não ter
viajado muito. Nas vezes em que estive no Senegal quase não vi mandioca senão
como legume, mas na beira da estrada
vendiam um grande cilindro embalado em folha de bananeira, à semelhança da
coruja e me contaram que era feito de mandioca fermentada, fato que não pude
comprovar - pelo sabor ácido esperado
daria para saber. Mas em uma loja de
produtos africanos em Paris comprei um rolo parecido e este sim era feito com
mandioca fermentada. Não consegui descobrir
se era o mesmo do Senegal.
Mas vejamos como fazer a sua própria carimã em casa e
assim agradecer sempre esta grande herança indígena que não podemos deixar
morrer.
Carimã:
como fazer em casa
A massa pode secar espalhada, em bolinhas ou bolachas - depois basta triturar |
Compre no mercado mandioca de cozinhar (aipim,
macaxeira), corte em pedaços, descasque e coloque numa tigela de vidro ou
cerâmica e cubra com água fria. Proteja a tigela com um pedaço de folha de
bananeira, de plástico ou pano e deixe em temperatura ambiente, sem trocar a
água, até que a mandioca amoleça – ao pressioná-la entre os dedos ela se
desfaz. Isto pode durar de três a 15 dias a depender da temperatura. Quanto
mais quente, mais rápido. Escorra a
água, lave os pedaços umas três vezes e deixe escorrer bem. Tire os pavios (o fiapo duro do centro) e
amasse os pedaços com as mãos ou passe tudo por ou urupema (a peneira de fibra
natural). Outras opções: passar pelo processador, passar pela centrífuga, socar no pilão ou bater no liquidificador
diretamente com outros ingredientes caso vá fazer um bolo ou mingau, por
exemplo. A massa deverá estar como uma
massa de bolo densa. Coloque num saco de pano e deixe escorrer como se fosse
fazer coalhada seca, depois esprema bem e use.
A massa, desta forma, já pode ser usada para vários fins e pode ser
guardada na geladeira por até uma semana. Se quando for usar ela estiver muito
ácida, basta lavar novamente – coloque numa tigela, jogue água por cima, espere
a massa assentar, escorra a água e esprema de novo num saco de pano para secar
mais. Se quiser secar, pegue porções da
massa, faça bolinhas ou discos achatados, espalhe sobre um pano limpo ou
peneira de fibra e deixe no sol até secar bem.
Basta, então, guardar em vidro fechado – devem estar bem secas, se não poderão
mofar. Quando quiser usar, basta diluir
as bolinhas ou bater no liquidificador com os outros ingredientes caso do mingau, por exemplo. Ou, se preferir,
já triture as bolinhas no liquidificador e guarde na forma de farinha.
Mingau
de carimã
1 colher (sopa) de farinha de carimã ou 50 g de mandioca
pubada ou a mesma quantidade em massa
1 colher (sopa) rasa de açúcar ou mel
1 pitada de sal
1 xícara de leite de coco ou leite de vaca
Misture todos os ingredientes ou bata tudo no
liquidificador (se estiver usando o pedaço pubado) e leve ao fogo baixo,
mexendo sempre apenas até engrossar.
Coloque numa tigela, polvilhe canela em
pó se deseja e Nhac!
Rende: 1
porção
11 comentários:
Neide,
Sua generosidade me emociona. Você é a própria arca do gosto brasileira em pessoa!
Gratidão por seu trabalho fantástico.
Que maravilha ler isso, sempre gostei de bolo de puba mas não tinha ideia de como fazer, obrigada por ser tão generosa.
Que fantástica
publicação.
Grata por compartilhar.
Já seguindo aqui deixo
Bjins de domingo
CatiahoAlc.
Obrigado por compartilhar todo esse conteúdo com a gente, muita generosidade sua nos passar este conhecimento. Foi um leitura ótima!
Parabéns pelo trabalho, poderia fazer uma coluna com a caiçuma?
Neide que coisa incrível, quanta cultura e que emocionante ler e ir descobrindo tantas maravilhas a cada linha. Cultura indígena deveria ser matéria escolar. Sigamos saudando a mandioca!
Carol
Gosto de fazer tipo beiju, misturo com coco ralado fresco, pitada de sal e preparo como tapioca. grata por compartilhar tanto conhecimento!
Very useful video sharing with us,thanks for sharing.
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Adorei ler essa matéria!!! Você tem um texto extremamente palatável, a quantidade de conhecimento que oferece só pode vir de uma pessoa muito especial. Parabéns você manda muito bem!
Marcus Milério
Quanta generosidade numa só pessoa!
Muito obrigado por mandar-me de volta à minha infância em fortaleza-CE, minha mãe preparava bolos e mingaus que matavam a nossa fome, minha e de meus oito irmãos.
Seu texto é prazeroso, consegui sentir os gostos, aromas como se estivesse na casa de meus pais, que saudade imensa. Gratidão, fique em paz e mantenha esse espírito. Grande abraço!
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