quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Farinha de babaçu. Coluna Nhac. Edição de 18 de janeiro de 2017

Hoje tem coluna Nhac no caderno Estadão. Para quem é assinante, pode ver no site do caderno. Mas também está no Estadão impresso e aqui no Come-se. 

Aproveito para deixar aqui a matéria que a Bela Gil escreveu para a TPM contando a viagem  a Altamira em detalhes . 

E também o vídeo feito pelo Isa sobre o projeto: 


FARINHA DE BABAÇU AMAZÔNICA

Não é exatamente um produto novo para mim ou para alguns leitores.  De um jeito ou de outro, ganhada de presente ou comprada em feiras de produtores, sempre tive farinha de babaçu na despensa, geralmente vinda do Maranhão, o maior produtor.  Mas confesso que nunca havia me dedicado verdadeiramente a entender melhor o ingrediente. 

Só agora, depois de uma imersão ao universo-babaçu graças a um convite da ONG Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org), posso dizer que ela passou a ser ingrediente indispensável, destes coringas que fazem a vida de qualquer cozinheiro ou cozinheira bem mais fácil.

O convite era para que a cozinheira e apresentadora Bela Gil e eu desenvolvêssemos algumas receitas com o produto para apresentar a merendeiras, nutricionistas e gestores educacionais de Altamira e Vitória do Xingu, no Pará, como forma de incentivar seu uso e melhorar sua aceitação na merenda escolar. Municípios como Uruará, Vitório do Xingu e Altamira já compram o produto das associações extratistas da Terra do Meio - área de floresta composta por um mosaico de terras indígenas e reservas extrativistas entre os rios Iriri e Xingu.

Sabemos como é difícil substituir a onipresente farinha de trigo, mesmo cientes de que o Brasil não produz o suficiente para a demanda. Ao mesmo tempo desconhecemos as inúmeras outras farinhas que poderiam substituir o trigo, todo ou em parte, em diversas situações onde o glúten não é tão necessário. O glúten é a proteína do trigo responsável por aprisionar o gás carbônico da fermentação em suas redes elásticas quando fazemos pão. Em outros preparos, como tortas, bolos, molhos, panquecas, biscoitos, o glúten pode ser dispensável. E nestes casos, aí sim, podemos usar outras farinhas como a farinha de raspa ou fubá de crueira (de mandioca, seca e não torrada, e triturada), a de banana verde, de araruta e a de babaçu, entre outras.  E mesmo no pão, cerca de 10% do trigo pode ser substituído por outra farinha, sem prejuízo no resultado final e com a vantagem de incrementar alguns minerais, vitaminas e fibras.

Foi isto que mostramos nas oficinas que demos. Desenvolvemos receitas para a merenda escolar, como biscoitos, tortas salgadas, mingaus e até no vatapá. Algumas dessas receitas foram demonstradas e as merendeiras sairam entusiasmadas para testar outras possibilidades. Embora seja o babaçu um fruto tão corriqueiro naquela região da Transamazônica tomada de cocais, sua farinha ainda não é tão utilizada fora das comunidades produtoras. 

Como parte de nossa expedição de trabalho, visitamos uma das várias miniusinas de processamento da farinha na região. Chegamos à comunidade Rio Novo depois de um longo percurso pelo rio Iriri de margens deslumbrantes. Ali na casa de Dona Chagas e seu Aguinaldo, no alto da beira do rio, toda a família trabalha na coleta e processamento de castanha-do-pará e do babaçu.  Conhecemos a comunidade, a miniusina e a floresta que está ali ao lado. É por entre caminhos estreitos e úmidos que se passa pelo roçado e depois se adentra a floresta onde todo cuidado é pouco para não ser atingido por ouriços de castanha que despencam aqui e ali quebrando o silêncio da mata e talvez o cocuruto de desavisados.  Quando encontramos a região dos cocais com aglomerados da palmeira Orbignya phalerata, os grandes frutos espalhados aos pés das plantas já não estavam tão frescos para a extração da farinha, mas perfeitos para se extrair o óleo. Coletados, logo encheram um paneiro feito de cipó ambé também tirado da floresta.

Antes da miniusina, uma conquista recente da comunidade,  toda adaptada às normas sanitárias para processamento de alimentos, a farinha de babaçu era feita no pilão, um processo trabalhoso que foi substituído pela facilidade de um triturador super potente que transforma a massa seca do fruto em pó finíssimo como talco.  Mas mesmo com a diminuição do trabalho graças à tecnologia, grande parte do processo ainda é artesanal.  Os frutos colhidos são lavados e descascados manualmente para se retirar o pericarpo fibroso. O mesocarpo, que é a parte amilácea usada para fazer a farinha, é retirada com alguma dificuldade batendo-se no fruto com um pedaço de madeira. Sai em lascas gordas. O que resta é o endocarpo, uma parte lenhosa muito dura, usada para artesanato ou carvão. Dentro dele temos ainda as amêndoas, de onde se extrai o óleo, o produto de maior valor agregado, pois tem aproveitamento não só na alimentação mas também na indústria de cosméticos. Das castanhas se tira ainda o leite, mais usado como ingrediente local e esporádico – quando há castanhas e babaçus, que produzem na mesma época, a preferência parece ser o leite de castanha, mais fácil de extrair.  Aliás, depois da noite tranquila dormida em redes no barracão coberto de palha entre o rio e a mata, foi muito bom ter no café da manhã mingau de babaçu no leite de castanha, um luxo da floresta para quem vem da cidade.
  
Tradicionalmente, para tirar a amêndoa do babaçu, um machadinho é apoiado com os pés da pessoa sentada ao chão. Apoia-se o fruto na lâmina e bate-se com um pedaço de pau. Um a um, com muita atenção.  Outro subproduto do babaçu que também fica restrito ao consumo local é o gongo ou larva que se alimenta da amêndoa e portanto tem gosto da amêndoa. O bicho vivo é suculento e tem sabor de coco. Frito na própria gordura é quase como um coco crocante pra comer com farinha branca. E, claro, no caso de ter gongo, não tem amêndoa, que foi toda comida e substituída por ele. 

Agora, voltando ao meio do fruto, o mesocarpo sempre foi usado como fonte de energia por comunidades indígenas e ribeirinhas do Cerrado e Amazônia, nem sempre na forma de farinha, mas também de massa fresca usada para fazer mingau assim que é colhida e socada no pilão. Para a farinha, as lascas são secas ao sol antes de triturar e assim duram muitos meses.  Esta pequena camada amilácea representa aproximadamente de 17 a 22% do fruto e é composta basicamente de amido – cerca de 70%, além de fibras, proteína, lipídio, vitaminas e minerais. É ainda fonte importante de tanino, um poderoso antioxidante que no fruto o protege herbívoros.   Entre os coletores, há quem se orgulhe de saber coletar coquinhos com menos tanino, que travam menos, dizem.  É que esta substância se liga a proteínas na boca e as precipita produzindo sensação de adstringência e secura. Mas nas preparações cozidas o efeito do tanino desaparece e se dilui com a mistura de outros ingredientes.

De tantos testes que fiz ultimamente com a farinha, percebi que seu maior potencial na minha cozinha é como espessante substituto para o amido de milho, que traz o símbolo do T dentro de triângulo nas embalagens, identificação para produtos feitos com ingredientes transgênicos, especialmente o milho no caso da maisena.  Quando substitui o trigo nos molhos e outros pratos, atende ainda às necessidades de pessoas que não podem ingerir glúten. Ela realmente substitui parte ou totalmente estas farinhas citadas, com a vantagem de não ser amido puro ou farinha refinada e sim a polpa integral do babaçu, tendo o amido complexado com outros nutrientes. E não recebe venenos na produção nem aditivos durante o processamento. É puro como o coco tirado da floresta. Só perdeu água para virar pó. O sabor é neutro, ligeiramente amendoado com lembranças de buriti. A cor acastanhada pelo tanino faz lembrar chocolate e em preparações com este ingrediente, pode substituí-lo em parte.

É chamada também de farinha de mesocarpo de babaçu, mas percebemos que o próprio nome pode ser um entrave na sua utilização, por isto já durante a viagem passamos a chamá-la simplesmente de farinha de babaçu. Assim, não é preciso a todo momento explicar a anatomia do fruto para justificar o nome.  O que importa é que a farinha é extraída da polpa do babaçu e que há técnicas para sua correta utilização. A forma não adequada de uso também pode contribuir para que seja experimentada e abandonada, afinal não é produto pronto para se comer de colherada e achar gostoso.  Não é pra ser comida crua, em sucos, por exemplo, porque é um amido rico em taninos que pode ser indigesto sem cocção. É, sim, um ingrediente amiláceo que deve ser consumido cozido como outros tipos de amido. É ingrediente para ir ao fogo, quando revela a que veio – dar volume, engrossar, espessar, dar cremosidade, brilho.  E, claro, nutrir.

Ao usar para engrossar mingau ou espessar manjar e chocolate quente, por exemplo, basta substituir integralmente nas mesmas medidas que usaria de amido de milho. Lembre-se sempre de diluir em água fria antes de adicionar ao líquido quente, sem parar de mexer, até a mistura ficar cremosa. Nos pratos à base de farinha de trigo, substitua todo ou parte dele por farinha de babaçu, ajustando o líquido da receita, já que esta absorve mais água. 

Se nos lembrarmos que nesta região ao redor de Altamira, onde estivemos,  o desmatamento reina, usar e incentivar o uso dos produtos da floresta é uma forma de apoiar a economia dos povos extrativistas indígenas e ribeirinhos e contribuir para a manutenção da floresta em pé.  No Mercado de Pinheiros, junto com outras preciosidades, ela pode ser encontrada no Empório Biomas Mata Atlântica e Amazônia.

A receita a seguir, testei usando a farinha de babaçu integralmente, mas ficou meio seca a massa. Por isto, substituí apenas parte da farinha de trigo.  Panquecas finas e bolos com mais ingredientes podem ser feitas integralmente com a farinha de babaçu.  E que mais municípios se animem a incluir na merenda escolar produtos nutritivos da agricultura familiar com valores social e ambiental agregado.




Panquecas doces com farinha de babaçu

Para a massa
3 ovos inteiros
¾ de xícara de açúcar (135 g)
1 colher (sopa) de mel
100 g de farinha de trigo branca
50 g de farinha de babaçu 
2/3 de xícara de água (180 ml)
1 colher (chá) de fermento químico em pó

Para a calda
¼ de xícara de melado de cana
Raspas de um limão
1 colher (sopa) de suco de limão

Faça a massana batedeira, bata os ovos com o açúcar e o mel até espumar.  Com a batedeira ligada no mínimo, junte as duas farinhas peneiradas juntas aos poucos, alternando com a água misturada com o fermento.  Bata até a massa ficar homogênea.  Passe um guardanapo de papel com um pouco de óleo na superfície de uma frigideira antiaderente e deixe aquecer no fogo baixo. Despeje uma porção equivalente a uma colher de sopa cheia no meio da frigideira e deixe cozinhar até dourar – quando aparecem bolhinhas na superfície da massa. Vire com uma espátula e deixe cozinhar do outro lado, sem deixar dourar.  Vá empilhando as panquecas até terminar a massa.
Faça a calda:  Misture tudo e sirva junto com as panquecas.

Rende: 30 panquecas

Obs: Se quiser, pode usar molde de silicone para panquecas ou apoie sobre a frigideira forminhas para tarteletes com fundo removível (sem o fundo) – unte por dentro e apoie sobre o fundo da frigideira também untado, depois basta virar o conjunto com uma espátula e tirar as forminhas. Assim, terá uma borda mais clara e poderá fazer uma máscara e polvilhar açúcar de confeiteiro imitando um coco babaçu cortado ao meio.



3 comentários:

Maria de Lourdes Simas Fernandes disse...

Consumo o óleo há 2 anos, desde que retornei à Brasilia, em bolos e no preparo de alguns legumes p cocção. Vc recomenda o aquecimento desse óleo?
Adorei a dica do uso da farinha! Só se tem a agradecer pelo seu trabalho, parabéns!

Clara disse...

Dica maravilhosa! Obrigada por compartilhar! :)

Jim Rhodes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.