sexta-feira, 26 de junho de 2009

Come-se numa praia deserta

Na viagem a Florianópolis ficamos numa pousada à beira mar. Era só abrir o portão e dar de cara para o mar. Acordei no domingo assim que se fez luz e fui dar uma espiada. Naquele silêncio de gente ou motores (afinal, todos dormiam). Só um bem-te-vi aqui e acolá, um sabiá fazendo graça, uma garça lá longe e aquela música de vento e ondinha quebrando na areia gelada. Nada pra fazer além de olhar o barquinho com dois pescadores jogando e recolhendo a rede que parecia subir meio vazia. Além disso, restava passar os olhos na paisagem e descobrir o que teria ali para eu comer se aquela fosse a praia de uma ilha deserta. E eu, uma náufraga.

Serralhinha, serralha-brava ou pincel-de-estudante. Em saladas ou cozidinha na água do mar a Emilia sonchifolia é gostosa, enganaria a fome e ainda me protegeria graças aos flavonoides que contém. E, além de me suprir em muitas vitaminas (especialmente pró-vitamina A ou carotenoides) e minerais, ainda me serviria de remédio, já que tem atividade febrífuga e as folhas amassadas fazem ótima compressa para curar machucados na pele.
Serralha, serralha-branca, serralha-lisa: Estas ervinhas de nome Sonchus oleraceus estão por toda a parte. São ricas em óleos essenciais, taninos, substâncias amargas e também seriam usadas cruas ou em sopinha com caldo do mar. Refogada em óleo de peixe e temperada com o sal marinho, receberia ainda, para perfumar e enfeitar, umas bolinhas de pimenta-rosa ou aroeira.
A mesma serralha em variedade pigmentada com antocianinas - talvez tenha que ver com o PH do solo. Certamente este pigmento protegerá meu coração no lugar do vinho tinto que não beberei. Faria com ela e as folhas de outras cores e formatos salada verde variada. Quando for primavera, talvez complementem e alegrem o prato algumas flores amarelas do cacto.
Dente de leão, amargosa, chicória-silvestre. É sempre uma felicidade encontrar por aí o Taraxacum officinale, pois contém taraxicina, um princípio amargo que poderá, quem sabe, proteger meu fígado das ervas venenosas que experimentarei. Contém ainda taninos, carotenóides, colina e bastante potássio, que eu vou precisar para não amolecer. Se puder conseguir algum óleo das ostras, refogarei suas folhas nela, pingando algumas gotas de água do mar.


Mentruz, mentruz-rasteiro, mastruço, mastruz. De todas as folhinhas, a mais saborosa. A Coronopus didymus tem sabor de folhas de mostarda. Farei com ela uma caminha para acolher os mariscos que comerei. E talvez ainda usarei para um caldo com os mesmos. Ou rechearei os peixes que conseguir pescar. Entrará também na salada com todas as outras folhas. Se tiver uma gripe é com as suas folhas expectorantes que vou sarar. Farei um xarope macerando-as na gosma do cacto.

Espinafre-da-Nova Zelândia. É o mesmo que compramos nas feiras. Diferente do espinafre verdadeiro, o europeu do Popaye, a Tetragonia expansa faz os mesmos papeis. Nem sabia que nascia espontaneamente assim na praia. Evitarei comê-lo cru por causa do excesso de ácido oxálico, mas aproveitarei em tudo quanto é sopa com frutos do mar, que me dará o ferro que ele tem mas não dispõe. As conchinhas aí na foto ao lado dele deu a dica do preparo.
Urumbeba, mondururu ou palmatória: encontraria aqui uma ótima fonte energética, pois a Opuntia monacantha dá estes frutos docinhos e suculentos ricos em carboidratos. E mesmo na penúria, uma sobremesinha vai bem. As raquetes (as "folhas") suculentas e ligeiramente ácidas também são comestíveis e hidratantes. Cortarei em quadradinhos com uma faca de escamadas, enfeitarei com uma bolinha de aroeira e servirei no palitinho, ops, no espinho dela. De entrada.
Aroeira-da-praia, aroeira-vermelha, aroeira-pimenteira, pimenta-rosa. Há duas espécies parecidas, a Schinus molle, com folhas pontiagudas e estas de folhas na forma de duas lentes grudadas e cortadas ao meio - Schinus lentiscifolius. Os frutos de ambas têm as mesmas aplicações na cozinha, como tempero. Então, usaria para isto - temperar postas de peixe que comerei grelhadas na lenha resinosa da própria aroreira (a seiva poderá ser usada como antiséptico caso eu tenha uma fratura ou coisa assim).

Jerivá, baba-de-boi, coquinho-jerivá, jeribá. Com os frutos do Syagrus romanzoffiana me abastecerei de energia, pois são ricos em açúcar e passarei o tempo chupando a polpa grudenta à espera de algum socorro. Se demorar, arrumarei tempo para quebrar os coquinhos e tentar tirar deles alguma gordura. Com as folhas, construirei minha choupana e farei meu colchão.

Juçara, içara, palmito-doce. Da Euterpe edulis não comerei o palmito único para me alimentar de seus frutos eternos. Farei "vinho" com a polpa como se fazem com os açaís e tomarei no café da manhã com camarões para garantir a energia do dia. Riquíssimo em antocianina como o vinhos de uva, me dará ainda ácidos graxos essenciais para aguentar invernos mais rigorosos.

Não, não vou ter coragem de matar o pássaro. Talvez não num primeiro momento ou enquanto houver fartura de peixes e frutos do mar. Mas, depois, quem sabe... Certamente nunca viverei nada parecido e espero que ninguém passe por isto nesta vida, mas não custa ir fazendo o inventário. De recursos comestíveis, até um barquinho chegar com socorro.

29 comentários:

Rhayssa disse...

Neide,

Agora que perdi a vergonha de comentar no seu blog, eu queria saber como foi que você aprendeu tudo isso! Foi no curso de nutrição? Anos de estudo? Já devem ter feito essa pergunta antes. Caramba! Queria ter 10% desse conhecimento. Perdida em uma ilha deserta, eu precisaria esperar o passarinho experimentar algo por mim.

Neide Rigo disse...

Rhayssa, cada vez que publico aqui e sou obrigada a conferir os nomes nos livros, estou estudando mais um pouco. Aprendendo de tudo quanto é jeito: nos programas e jornais rurais, nos livros, com as empregadas que já passaram por aqui e no campo com gente da roça. Mas você só tem vinte e poucos anos. Eu já sou coroa rsss. Beijos, N

Mariângela disse...

que post poético Neide,se ficar perdida algum dia já saberei como me virar,sinceramente espero que não, o lado bom seria aprender a pescar,beijo!

clau disse...

Vc nunca passaria fome, n'é mm!?rss
E tb nem é uma "enjoada" como me dizia a minha avo.
A unica coisa que eu arrisco de comer, no meio do mato, é a malva, que eu conheço bem.
E alguma forragem destas que gostam as cabras: quem sabe..?rss
Bom fim de semana, Neide!

Gina disse...

Neide do céu!
Vamos por parte dessa vez:
1) Como sou apaixonada por plantas e flores e meus posts sempre terminam com uma, acabei de descobrir o pincel-de-estudante. Acendeu uma lampadinha aqui na minha cabeça e já bolei 1 post!
2) Vivo carregando minha máquina fotográfica para todo lado. Registrei pertinho de casa um cacho de coquinhos e creio que é o jeribá. Pronto, já vai sair da lista "a nomear"!
3)Com certeza, de fome você não morreria. Quando a gente olha em volta e só vê "matinho", você vê salada, prato principal e sobremesa.
4) Adoro aprender e estou sempre me abastecendo aqui com seu conhecimento. Você sabe que já fiz até 2 homenagens lá no blog...
5) Esse foi o post mais criativo do ano. Parabéns!
Bjs.

Neide Rigo disse...

É mesmo mariângela. Mas melhor aprender de outro jeito, né?

Clau, na primavera e verão deve haver mais opções.

Gina, vou esperar pra ver. E agradeço muito a homenagem.

Um beijo, N

mariare disse...

Nossa, Neide, que post sensacional.
Leio seu blog há muito tempo, já quis te parabenizar antes, mas acabava sempre adiando, esperando um momento melhor [leia-se timidez absurda].
Hoje seu post me emocionou tanto que não aguentei: parabéns!

Afrika disse...

Adorei, simplesmente divinal esta sua apresentação de como sobreviver numa praia! :D

Obrigada por tão interessantes dicas.

Beijinhos

Carlota e a Turmalina disse...

Sensacional!!!!
Aprendi muito nesse breve passeio pela ilha deserta...
Bjos

tita disse...

Nossa corajosa e estudiosa Neide!!! :):)

Janaína disse...

Neide,

tudo bem? Olha só, vou te fazer uma pergunta que não tem, diretamente, nada a ver com o seu post e sim uma dúvida minha. A cúrcuma em pó seria a mesma coisa do açafrão-da-índia? Posso utilizá-la nos alimentos da mesma forma? Obrigada! Abraços,
Janaína.

Ana Canuto disse...

Neide: Se for pra ser náufrago então que seja em sua companhia...hehehe.
Mas nesta sua aula identifiquei que tenho seralha, serralhinha e mentruz no meu quintal e jardim (que aliás praguejo contra eles...oh !)

Um beijo.

Neide Rigo disse...

Janaína,
cúrcuma, açafrão-da-índia ou açafrão-da-terra são a mesma coisa.
bjs,n

Nina disse...

Ah...
Precisaria da sua companhia em um naufrágio!!

Quando eu morava em Floripa, Santo Antonio de Lisboa era meu bairro preferido!

beijo!

Rhayssa disse...

Ih, Neide, já estou quase com 30 anos! E recebi ontem as sementes de jambu das quais falei, com algumas folhas ainda conservadas. Esse eu não fiquei com receio de testar, porque parecia bastante com o seu. E a boca formigou! Vou plantar, só não tenho idéia de quanto tempo demora pra poder colher. Quero testar logo com a sua receita de tucupi!

Anderson Porto disse...

Neide,

Muito, mas muito bom mesmo este texto. Se possível gostaria de publicar um trecho em meu blog, pois já inseri o seu como favorito e blogs indicados. Parabéns!

Neide Rigo disse...

Oi, Anderson!
Obrigada, fique à vontade.
Um abraço,
N

Praia do Rosa disse...

http://www.praiadorosa.blog.br

Felipe Carvalho disse...

Neide, sensacional esta postagem. Só li hoje, por coincidência, estava pesquisando sobre aroeira pimenteira. Bom saber que as praias, além de muito agradáveis, podem nos alimentar tão bem! Algumas das plantas eu já conhecia, outras não, mas nunca imaginei que todas eram tipicas do litoral.

Abraço, Felipe.

Neide Rigo disse...

Felipe, não sei se são típicas de praia, mas estavam lá. Um abraço, N

Lili disse...

Neide, Voc~e me salvou! estava perdida sem saber o que era o que: serralha e dente-de-leão. Gracias,bjs

arnaldo.francisco@yahoo.com.br disse...

Neide Rigo
gostei da matéria,e como crado em
meio rural, quando jovem eu comia
alem das leguminosas cultivadas e
tambem frutinhas e outras encon
tradas no mato.cheguei a chupar ra
iz de sapê,para aqueles que não
checem, a folha dessa planta era
muito usada para cobrir casas.
quando ao assunto em sí, devo di-
zer que sempre comi cerralha e es
tentando cultivar.

Fernando Oliveira disse...

oi, queria saber se voce ja viu serralha que tem a flor rosa, eu descobri uma, mas ainda nao tenho certeza esperando sair a flor novamente..

Unknown disse...

hoje fiz uma salada de dente de leão, pois ela estava la suculenta e linda como se fosse uma alface tenra,como meu Pai me ensinava a comer esses matinhos, eu resolvi fazer a tal salada, com tempero de alho e sal e limão, orégano e um pouquinho de água, ficou muito bom , mas como ficou muito amarga, muito amarga mesmo, fiquei com medo de fazer mal, comi mais a cebolas e joguei o resto fora, depois fui pesquisar no google, para ver as especies ou coisa parecida e achei este blog, que gostei muito parabéns... e já postei no facebook para os amigos apreciarem ... adoro este tipo de postagem, além de muito útil, pois nunca se sabe quando teremos que comer do mato para sobreviver, acho emocionante a sabedoria sobre as plantas...

GenteFelizClub disse...

De vez em quando volto para relar este post. Ótimo!

Neide Rigo disse...

Obrigada, Gente Feliz! Um abraço,n

CATIA T disse...

Neide feliz de ler uma boa humorada matéria no final da noite !!

Cristina RC disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cristina RC disse...

Amei Neide!!!! Na próxima visita à Ilha vamos fazer esse tour gastronômico PANC. Se a ponte for interditada ficaremos bem nutridos por aqui... isso sim é soberania alimentar!!! Grande abraço