quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Vatapá de peixe da Silvia Lopes


Aqui, hospedou-se tem que cozinhar.  Flora fez o cuscuz na semana passada e ontem foi só expectadora porque foi a vez de Silvinha fazer seu vatapá. O prato que é uma espécie de pirão incrementado ou uma açorda tupiniquim africanizada leva ingredientes simples, encontrados facilmente nos mercados municipais. Estudiosos dizem que é mais português que africano, outros dizem que é luso-indo-afro. 

Se o prato é um samba do crioulo doido, não importa. É o melhor de todos, tanto o feito aqui ontem como o que a Eliane faz engrossado com quiabo. E pode ter chegado sim com os africanos que usam o quiabo como espessante - caso do primordial gumbo da cozinha creoule, originalmente espessado com quiabo e hoje muitas vezes com farinha de trigo complementando. O pão para engrossar, como é praticado hoje na Bahia, visto no vatapá da Silvinha, certamente é intromissão portuguesa (em Belém, por exemplo, entra a farinha de trigo), mas o quiabo no vatapá da Eliane tem raízes africanas.  Outros espessantes foram sendo improvisados com os ingredientes disponíveis. No sertão da Bahia, de onde vem Eliane, o vatapá pode ser espessado com farinha de mandioca, de trigo, de milho, de fubá ("primeiro o fubá, depois o dendê", diz a música de Caymmi). Pra fazer para muita gente, de panelona, pra festa dos meninos ou pra sexta-feira santa, pão sai caro, diz ela.  E também esta coisa de usar os pedaços do peixe ou de bacalhau encarece, embora deixe o vatapá mais substancioso. Na receita da Eliane não tem o peixe e ainda assim é delicioso.  Mas um caldo de galinha, de peixe ou de bacalhau é providencial.

O bom é isto, vatapá é uma receita que permite muitas variações, desde que estejam presentes os amendoins, o camarão seco, o leite de coco, o dendê e algum espessante. Agora, no livro "a arte culinária na Bahia", de Manuel Querino, cuja primeira edição é de 1928, o vatapá aparece numa receita com galinha e não peixe, que é espessado com farinha de arroz e não leva nem amendoim nem castanhas de caju. Nas notas da terceira edição, feitas por Raul Lody, a delícia é descrita como um prato apreciado pelo imperador D. Pedro II feito de peixe, de galinha, porco ou bacalhau.  

Bem, a receita de Silvinha é baseada em tudo o que já viu, viveu e comeu no seio de sua família tradicional baiana,  que tem até um livro de receitas de família (Dos Campos à Mesa), incluindo o vatapá de tia Lia, que a inspirou. Ela sabe cozinhar como ninguém e não fica apegada às receitas, então fui correndo atrás, pesando e medindo tudo ou não teríamos esta fórmula que aqui apresento. 

Começamos comprando os ingredientes no Mercado da Lapa. Está certo que o melhor seria comprar o coco e ralar para tirar o leite grosso e o leite fino, mas resolvemos simplificar dado o adiantado da hora - começamos a fazer às 7 para comer às 10 da noite - e compramos leite de coco pronto. Compramos também as castanhas de caju picadas, como xerém, pois seriam mesmo trituradas. E o amendoim,  já torrado e descascado. Em compensação,  o azeite de dendê é aquele que trouxe do Senegal, puríssimo, com uma cor incrível. Com um vinho português, Douro, para acompanhar (as cozinheiras durante o preparo). À receita, pois.
 


Vatapá de peixe  - versão de Silvia Lopes

1 filão de pão italiano de 400 (só o miolo, que vai render 250 g) 
1 xícara de leite misturada com 1 xícara de água 
2 peixes pargos (1,2 kg) inteiros e limpos, cortados em postas 
1 limão 
2 dentes de alho socados com 25 g de sal (uma colher de sopa média) e 2 pimentas malaguetas 
400 g de camarão seco inteiro
135 g de amendoim torrado sem pele 
100 g de castanhas de caju torradas 
4 colheres (sopa) de azeite de oliva 
300 g de cebola picada 
250 g de tomate picado 
80 g de pimentão (verde e vermelho) picado 
2 xícaras de água 
4 colheres (sopa) de folhas de coentro picado 
1 colher (sopa) de gengibre ralado 
1 xícara de leite de coco 
100 g de azeite de dendê puro

1. Coloque o miolo de pão numa tigela e acrescente a água e o leite. Reserve. 
2. Lave o peixe com água e o suco do limão e escorra bem. Tempere-o com o alho socado com sal e pimenta e deixe pegar gosto por cerca de 1 hora. 
3. Lave bem os camarões e limpe-os, descartando a carapaça e as patas. Reserve as cabeças. Deixe os camarões de molho em água. 
4. Leve as cabeças ao forno para secar - deixe até que estejam bem secos, sem deixar queimar.  Tire os olhos, triture em liquidificador, peneire e reserve a farinha obtida. 
5. Aqueça no forno a castanha e o amendoim, triture bem no liquidificador e reserve.  
6. Numa frigideira grande ou panela rasa, aqueça o azeite e junte a cebola. Deixe murchar. Acrescente o tomate e o pimentão e refogue por um minuto. Junte a água e deixe cozinhar por 5 minutos ou até os temperos ficarem macios. Coloque o peixe e espalhe o coentro por cima. Tampe e cozinhe por 10 minutos. Vire o peixe com ajuda de uma colher grande e deixe cozinhar por mais 5 minutos. Quando o peixe estiver se soltando em lascas, está bom. 
7. Retire o peixe do caldo e parta-o em lascas grandes, descartando a pele e espinhas. Reserve a cabeça que pode ser servida à parte. Reserve as lascas. 
8. Bata o caldo do peixe (tomando o cuidado de conferir se não ficou nenhuma espinha) no liquidificador. 
9. Numa panela grande, coloque o caldo batido e as lascas de peixe. Leve ao fogo e comece a mexer.  
10. Bata o pão umedecido no liquidificador até transformar em pasta. Talvez tenha que fazer isto em etapas para não forçar o aparelho. Despeje esta massa na panela onde está o caldo e o peixe e continue a mexer. 
11. Escorra bem os camarões e reserve metade deles  (os maiores). Bata o restante no liquidificador juntando água só o suficiente para conseguir fazer funcionar o aparelho. Junte este camarão à panela e continue mexendo. 
12. Junte os ingredientes transformados em pó: a cabeça do camarão, as castanhas e o amendoim (aliás, este tempero pode ser feito com antecedência se quiser adiantar o prato) e  continue mexendo. 
13. Coloque na panela os camarões inteiros reservados, sem parar de mexer. Se a mistura estiver muito densa, acrescente água quente, aos poucos. 
14. Continue cozinhando e mexendo até a massa ficar bem espessa. Junte, então, o leite de coco e o gengibre e misture bem.
15. Acrescente o azeite de dendê e continue mexendo. Quando a superfície começar a enrugar e a massa começar a se soltar do fundo da panela, está pronto. Confira o sal e os temperos e corrija, se necessário. No total, o vatapá cozinhou por cerca de meia hora. Sirva com arroz. 

Rende cerca de 10 porções
 




12 comentários:

Juba disse...

Neide, conhece o livro de receitas dos pratos que aparecem nos livros de Jorge Amado? É ótimo para quem quiser se aventurar na comida baiana!

Mariangela disse...

vixe Neide,me hospedei aí e não cozinhei,ao menos lavava a louça hahahaha!!! Beijos!!!

jp diniz disse...

Que bom poder ler esta receita, aqui do outro lado do mundo, neste verão quente e seco do Alentejo português. Essa mistura de identidades anima qualquer um que goste de comer e um vatapá é coisa muito séria. Para além do gosto é um desses pratos que conta histórias a quem souber escutar.
Um beijo

Neide Rigo disse...

Sim, Juba, eu tenho. Mas nem me lembrei dele. Devia ter consultado. Obrigada!

Mari, esqueci de dizer que o contrário também vale - ou seja, se sou visitante, também o anfitrião cozinha para o Come-se. E quanta coisa boa comi e aprendi na sua casa, hem?

João, o Alentejo anda seco, é? Tenho tanta saudade. Vatapá é o tipo de comida de que você deve gostar, como eu.

Um abraço, N

Margareth DOnófrio disse...

Oi querida Neide. Li hj no Estadao que vc fará uma coluna no suplemento Paladar...que bom. Parabéns...estou ansiosa para ler...bjsss

Priscila Beneducci disse...

Toda semana faço mao e pe na minha manicure e ela assina Caras. Leio sua coluna toda semana la... É uma delicia passar por aqui sempre

Gostaria poder ter refeiçoes tao nutritivas e inteligentes como a sua...

O seu blog é pura atitude, exemplo para nós. Beijos sua fazona faz muito tempo. Priscila Beneducci

Neide Rigo disse...

Margareth, pois é, estarei por lá. Espero não decepcioná-la.

Priscila, Caras eu só ajudo, mas no Paladar, a coluna será minha e vou fazer possível para que seja interessante.

Um abraço,
N

Nobuko Yoneda disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nobuko Yoneda disse...

Oi Neide:
Parabéns!
Belíssimos pratos, fotografias e... que vontade de degustar estes maravilhosos pratos nordestinos que tanto adoro!...
Beijos.
Nobuko.

Neide Rigo disse...

Nobuko,
que bom que gostou. Agora, que sabe não resolve testar a receita? Depois me conte.
Um abraço, N

Anônimo disse...

Delícia poder cozinhar com uma amiga, tomando vinho e pondo o assunto em dia. Só pode dar coisa boa,

Leila - Dona Mariquita disse...

Cara Neide,

Nas minhas andanças no recôncavo da Bahia, fui à Cachoeira, cidade carregada de influência de matriz africana, onde vou sempre que posso para ouvir histórias, receitas e buscar ingredientes, e uma certa vez comentei sobre o vatapá de fubá de milho, elas me explicaram que refere-se ao amendoim e a castanha de caju pilada, fina como um fubá e não de fuba de milho e que o vatapá era e ainda é preparado com farinha de mandioca, como um pirão temperado.
Espero ter ajudado, Beijo!