Só para terminar o assunto do bichinho do coco, reproduzo aqui o ótimo texto da Nina Horta, imprescindível. E que infelizmente só vi agora. Publicado no Jornal Folha de São Paulo de 29 de janeiro de 1999. Em Pismo Beach, na Califórnia (EUA), a empresa HotLix vende o sorvete batizado "The Cricket Lick-It", sabor menta, com inseto incrustado
Livros recém-lançados mostram que culinária à base de insetos é comum em várias partes do planeta, inclusive no Brasil
Livros recém-lançados mostram que culinária à base de insetos é comum em várias partes do planeta, inclusive no Brasil
NINA HORTA Colunista da Folha
Agora que vamos fazer 500 anos parece que tomamos juízo e queremos nossa carteira de identidade. Quem somos, para onde vamos. O que comiam os índios, nossos antepassados, esses desconhecidos?
Agora que vamos fazer 500 anos parece que tomamos juízo e queremos nossa carteira de identidade. Quem somos, para onde vamos. O que comiam os índios, nossos antepassados, esses desconhecidos?
Pega-se um livro de etnólogo, de antropólogo e está lá. "Os botocudos de Santa Catarina apreciam muito comer baratas." "Quem mais gosta de baratas são os aborígenes australianos, os chineses e os japoneses." "Na Tailândia as crianças coletavam as ootecas desses insetos para fritar e comer."
Assim, secos, sem comentários. E onde está o prazer que vem sempre associado à comida? Comiam baratas, escorpiões, besouros, minhocas por falta de caça e pesca e frutas e raízes? Necessidade de proteínas? Só índios e povos primitivos comem insetos? Como explicar os chineses, com a comida mais sofisticada do mundo, mastigando crisálidas de bicho-da-seda? Pela gostosura da coisa? Viscoso, mas gostoso...
Está tudo na cabeça esta história de nojo, não como este bicho nem mortaaaa! Come, quase morta de fome, come. Seria normal que ficássemos até gostando de um alimento que nos ajudasse a sobreviver. Pensamos que temos uma aversão inata por bichinhos estranhos, mas o caso é que não fomos expostos ao ingrediente o bastante, quando crianças não vimos nossos pais, pares e heróis comendo deles, não experimentamos uma ou duas vezes, não eram servidos em festas...
Uma amiga recebeu em casa uma visita portuguesa que saiu para passear e deixou-a tomando conta do petiz, loirinho e inteligente. A certa altura o menino escavou a terra em que brincava com uma pá e retirou de lá um emaranhado de minhocas. A amiga-babá observou o feito, não achou grande pecado e deixou que o menino continuasse se divertindo. Dali a pouco voltou a ver a quantas andava a brincadeira e intrigou-se."Oi, miúdo, onde estão as minhocas?""As minhocas? Ah, comi-as todas..."
É isso, nenhum preconceito nem tabu, papou-as todas. A menina que trabalha aqui em casa veio do Piauí e quase morreu de asco com as fotos de grandes porcarias sendo comidas com prazer. "Eu, hein... Só gosto de gongo (sic). Quando o babaçu está supermaduro, cortamos o coco com machado de lenha e o gongo está lá inteirinho, vivo. O que ele faz é comer a massa do coco que estraga, fica amargo. E ele, gordo, caminha na mão da gente, sem perna, é claro, se enrola, rabinho encostando na cabeça, supermacio.A gente separa numa vasilha, espeta no espeto, as gordurinhas chiam no fogo. Tem que tomar cuidado, deixar só dourar para que não se derreta todo, fica bem torrado e se come com sal, farofa ou com a comida do prato. É gostosinho como um torresmo cremoso e tem gente que come vivo, prefere."
Muitas vezes quando a visita chega fazemos farofa com a própria gordura do coco colhido no dia, com os gonguinhos em volta, enfeitando, e no meio do prato uma xicrinha de café e uma colherinha para ir comendo a farofa de gongo e um gole da bebida."
E se arrepia inteira só em pensar na barbaridade de uma lula ou polvo. E o trabalho que as pessoas se dão para comer esses petiscos não denotam que eles são bons, que valem a pena?
Um antropólogo americano foi visitar a aldeia dos índios Pomo, na Califórnia, onde comiam tudo que levasse jeito de comida. Insetos, gafanhotos, minhocas, vespas. Qual o seu espanto ao encontrar a aldeia vazia, a não ser por dois velhinhos incapazes de se locomover, mas que informaram que todos os índios, sem exceção, tinham ido atrás de um exército de uma certa lagarta que aparecia por ali uma vez na vida outra na morte.
O nosso contador da história (fotografada e desenhada) botou um dos velhos no jipe e lá se foram sacudindo atrás da lagarta, um tipo de taturana, mas careca, só com uns 12 pêlos, no corpo de uns sete centímetros. Segundo os índios, estão sob a jurisdição do rei Trovão e são carregadas pelo nevoeiro.
Pois, então. As tais lagartas só se alimentam das folhas de freixo. Sobem pelo tronco aos milhares, deixam a árvore pelada e avançam para o próximo objetivo.
O que fazem os índios que conhecem muito bem o caminho das lagartas? Constroem fossos na areia úmida, em volta da árvore de onde elas caem, pois elas preguiçosamente não descem, deixam-se despencar. Só que as bichinhas, ao irem em direção a outra árvore, caem no fosso, mas o problema é que sabem subir e escapar. Os índios, com a sabedoria da tradição, enchem as bordas da vala de areia solta. Ao chegarem lá, elas se desequilibram e caem de costas e (como as baratas e a medrosa tia de Cortázar) não conseguem se levantar. À medida que o fosso vai se enchendo, fica mais fácil a fuga, então é preciso esvaziá-lo frequentemente.
Não é um trabalhão sem fim? Much ado about nothing? Não, essas lagartas devem ser um pitéu...As bichinhas são então colocadas em vasilhas com água onde se afogam. Depois são assadas no borralho ou fervidas e devoradas em grande quantidade, com muita alegria, mas pouco barulho para não espantá-las. Os Pomo, de barriga cheia, com lagartas saindo pelos ouvidos, colocam as minhoconas cozidas a secar ao sol para comerem no inverno. Pode ser ruim um bicho desses? A mim só incomodam aqueles 12 pelinhos e, do ponto de vista da nutrição, a carne de insetos é quase tão nutritiva quanto a de galinhas ou vacas.
Comidas desconhecidas, de um outro grupo que não o nosso, são como vocabulários estranhos que podemos aprender como aprendemos línguas diferentes. B de barata, L de lesma, C de camarão. Olhem a figura de um camarão-pistola (alpheus sp) num desenho de Ruth Secchin para o livro "O Mundo dos Artrópodes", de Eurico Santos. Apetitoso, hein?
E não é engraçado que depois do interesse obsessivo por enormes dinossauros estejamos de volta para o minúsculo, para a formiga, o pernilongo, a joaninha, o kril, a mosca? Fritos. Fritos não fazem mal, cozidos são ótimos, seu perigo está neles quando vivos passeando por sobre nossas civilizadas comidas.
3 comentários:
Adorei ler esse texto. Eu também sou um pouco enjoadinha, com comidas estranhas, nomeadamente insectos, mas concordo que se tivesse fome, marchava tudo.
Tenho uma colega brasileira que trabalha comigo que não consegue comer, polvo, lula, choco entre outras coisas, se arrepia de ouvir falar em caracóis ou caracoletas,tudo coisas que eu adoro.
Na realidade só é estranho para nós o que não nos habituaram a comer desde pequenos.
Bjs
Moira
Neide a mamãe não poderia nem olhar para esta foto ... ela tem paura de bichos assim .... Confesso que também fiquei arrepiada.
O texto é adorável ... A Nina é um luxo.
Bjs.
Ai, Neide,
Não podemos dizer que desses bichos jamais comeremos (se já houve - como sbemos - quem comesse até gente, na hora do aperto). Mas Deus que tenha misericórdia e me livre dessa hora. Essa questão do costume/tabu é muito forte, sô!
A Nina, porém, tem um texto adorável.
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