terça-feira, 18 de agosto de 2020

Gambiarras na cozinha. Coluna do Paladar. Edição de 13 de agosto de 2020

 


Aqui está o mais recente texto publicado no caderno Quarentena . Paladar. Estadão. E me acompanhe no Instagram: neiderigo (tenho ficado mais por lá ;) 

Soluções improvisadas para uma cozinha dinâmica

Neide Rigo

Está certo que no final da pandemia vamos ter que reunir as mentes mais brilhantes desse planeta para tentar resolver, se é que isso será possível e se é que teremos tempo hábil, a questão do mar de lixo e de espuma no qual estaremos mergulhados.  Nunca se consumiu tanta embalagem de sabão e produtos desinfetantes, nunca se embrulhou tanto em plástico, nunca se comeu tanto em pratos descartáveis. E, infelizmente, num modelo de desenvolvimento e felicidade baseado no consumo e na interdependência, com a doença viral em movimento e em alta velocidade, nenhuma outra solução foi apontada de última hora, especialmente para o setor de alimentação, para evitar o colapso total dessa estrutura de maneira mais acessível e sustentável, sem perda de postos de trabalho – cai uma peça, todas caem. Então, dá-lhe delivery!  

Por outro lado, também nunca se cozinhou tanto em casa e podemos dar nossa contribuição na redução do lixo. Está sendo um tempo para aumentar o repertório de técnicas, ingredientes e receitas, tempo dos blogs, dos cursos online, das lives e podcasts de comida.  O que tenho visto é muito mais interesse não só em fazer pão caseiro, pãodemia da quarentena, mas todo o tipo de preparo antes delegado para a indústria, produtores especializados ou restaurantes.  É gente fazendo tofu, queijo, linguiça, grãos germinados, kimchi e fermentados de todo tipo. Gente desidratando cúrcuma, secando tomates, plantando ervas comestíveis no jardim, conhecendo Panc, aprendendo receitas novas. Pratos internacionais e inusitados vão se alternando com a cozinha circunstancial e necessária do dia-a-dia ou são colocados em prática nos finais de semana, com mais tempo para os hobbies. E isso porque a casa passou a ser um espaço mais frequentado e quintais e varandas, mais explorados. Desta forma, esses processos podem ser acompanhados mais de perto, seja pelo tempo disponível ou pela busca do prazer que a sensação de novos desafios na cozinha nos dá, já que outras fontes estão sendo adiadas.   

Seja qual for o tipo de interação com a cozinha, é natural que a expansão do repertório culinário venha acompanhada da necessidade de instrumental apropriado. Então é momento de colocar a cabeça pra funcionar e botar em prática nosso dom de criar e buscar soluções improvisadas.   Podemos, com isso, repensar sobre a real necessidade de termos em casa certos apetrechos para paixões que não duram mais que uma quarentena e logo estarão no lixo junto de todos aqueles plásticos que tanto criticamos ou no fundo do armário, esquecidos para sempre.  

Acho curioso quando alguém que não me conhece começa a me acompanhar no Instagram e me pergunta onde comprei algo que aparece na foto – às vezes está lá no fundo e só aparece quando se dá um zoom. Sou obrigada a responder a verdade – que aquele varal de macarrão era uma tábua furada, resto de construção, que achei numa caçamba e o marido completou com pau de poleiro. Como diz o ditado, quem não tem cão, caça com gato, e gosto de usar gato mesmo tendo cão, só pra mostrar que é possível. 

Não sou daquelas que persegue o objeto de desejo nem sonha com determinado gadget de cozinha.  Mas também não posso dizer que tenho gavetas e armários vazios.  Em minha defesa, tenho a dizer que eu já tive mais de meio século para acumular apetrechos de cozinha, com a vantagem de que eles não se desgastam como sapatos, dos quais não faço questão. E muitos utensílios chegam aqui por acaso – por herança de amigos e parentes ou porque encontrei num mercado de pulgas, feira, brechó ou comércio popular.  Claro, alguns deles comprei deliberadamente, paguei caro pela raridade, mas tem uso garantido na cozinha, que afinal é meu local de trabalho. Além disso, sou vidrada não só na funcionalidade do instrumento, mas também no desenho, na engenharia, na dinâmica e isso não tem nada a ver com o valor, marca ou tendência.

Às vezes me apaixono pelo desenho do suporte de um coador de pano ou por uma grade de arame para torrar pão que custa mais barato que um sourdogh. A minha sorte é que quase sempre as peças baratas e populares são as que mais me chamam a atenção e compro pela oportunidade – sou muito mais atraída por uma feira popular em Caruaru do que uma loja asséptica trabalhada no brilho de shopping. Agora, para as peças caras, últimas novidades, marcadas e datadas, tento logo encontrar substitutos improvisados e é nesse desafio que mora a graça. Tenho tanto prazer nesse processo que gosto de inventar mesmo não precisando.

Está certo que também acontece o contrário. A gente tem o equipamento muito antes de descobrir qual é a sua utilidade.   É o caso do spätzle maker, um instrumento que abrevia o trabalho de produzir nhoquinhos de farinha de trigo tradicionalmente feito no Leste Europeu.  A técnica original consiste em colocar a massa pegajosa na tábua e empurrar com uma faca direto sobre a água quente. Hoje há vários modelos desse instrumento vendido como nhoqueira e eu já testei várias soluções para substituir o instrumento mesmo tendo o meu há décadas. Sim, minha mãe comprou de um mascate durante a minha infância com a promessa de que com ele faria nhoques mais rápido para os cinco filhos. Porém o vendedor não explicou que não era aquele nhoque de batatas a que ela estava acostumada. O aparelho morou debaixo da pia durante anos até que eu o carregasse comigo, ainda sem uso, quando fui morar sozinha. Um dia vou descobrir a utilidade disso, pensei.  Poucos anos depois uma colega alemã, de faculdade, fez um spätzle na aula de técnica dietética usando o apetrecho. Fiquei tão feliz de ter descoberto e hoje gosto tanto de fazer este tipo de macarrão a jato, que já inventei sabores e cores diferentes para ele, incluindo o de folhas de capuchinha que publiquei aqui (https://paladar.estadao.com.br/noticias/receita,spatzle-de-folhas-de-capuchinha,10000012347) e já improvisei até frigideira esburacada com furadeira só pra dar de presente para quem não tinha. Até determinado tipo de ralador de mandioca serviu de spätzle maker por aqui.

Tento imaginar a evolução natural dos novos equipamentos e me inspirar no arsenal tão rico e mega eficiente da cultura indígena e comunidades mais isoladas que fazem tanto com tão pouco. Antes do liquidificador e processador, moedores manuais precedidos por pilões. Antes dos pilões, pedras escavadas naturalmente. Antes dos pinceis, pelos de bichos ou paninhos enrolados. Antes das peneiras, folhas tramadas. Antes das tigelas, gamelas de madeira, cabaças e cuias. Antes de filme plástico, papel alumínio e papel toalha, folhas de bananeira, de caeté, de sororoca. Antes da pandemia, viagens de aprendizado e inspiração.

Recentemente estive entre os Kayapó, na aldeia Pykany, estado do Pará, e fiquei impressionada de ver a variedade de pratos que conseguem preparar usando basicamente cestos de palha para carregar a colheita e a lenha, cuias pra pegar água, um facão para múltiplos usos, raladores para mandioca e folhas de bananeira para embalar o alimento que é assado entre as brasas da fogueira e as pedras quentes que vão por cima. Sem lixo e sem pratos para lavar. Cada um pega um pedaço de folha, coloca seu alimento e no final tudo volta para a terra. Já o arsenal de utilitários para se fazer farinha parece ser mais rico e complexo – o mecanismo de pressão em estado de repouso do tipiti para espremer mandioca é de uma engenharia invejável.  

Mas fico feliz quando sei de tanta gente inventiva por aí.  Vira e mexe alguém me manda uma gambiarra que inventou pra fazer alguma receita que mostrei no blog ou no Instagram. Outro dia uma pessoa me mandou foto da forminha feita com pote de margarina que foi todo furado para escoar o soro da receita de queijo de minha mãe.  Então, a ideia é esta - quando for fazer uma receita nova e não tiver o material necessário, olhe ao redor e certamente vai encontrar uma solução não convencional que atenda à circunstância.  Criar é prova de vida. Agora é a sua vez.  



Se quiser começar a praticar a arte do improviso, aqui vão algumas ideias

. Kits de germinação podem ser substituídos por peneiras, garrafas pet furadas, vidros cobertos com pano, peneiras, pratos de barro para brotos de chia etc.

. Desidratadores elétricos podem dar lugar a secadores solares, peneiras e até por uma antena parabólica sem uso coberta com mosquiteiro – ótima para secar cúrcuma que depois deve ser triturada para guardar.

. A base da cafeteira elétrica pode ser usada para cozinhar bananas com casca, esquentar um lanche embalado ou até fazer panquecas.

. Cozinhar no vapor sem cuscuzeira é fácil – basta usar um prato e um pano amarrado e emborca-lo sobre uma panela de água fervente sem que um encoste-se ao outro.

. Dá pra fazer desenho na massa do pão usando como máscara um ralo novo com algum desenho interessante.

. Quando quiser pulverizar só uma chuva fininha de pó numa superfície, use uma meia de nylon (sem uso, claro) para fazer uma trouxa de farinha.

. Faça uma nhoqueira ou spätzle maker usando uma frigideira de alumínio furada com furadeira – basta colocar a massa pegajosa sobre a superfície furada e pressionar com uma espátula para que fiozinhos caiam sobre a água quente.

. Se quiser fazer picles e fermentados que peçam airlocks, saiba que dá pra fazer um eficiente selo d´água usando mangueirinhas de soro acopladas à tampa do pote ou garrafa – o gás formado sai, mas o oxigênio não entra. Uma luva ou bexiga de látex com um furinho de agulha também funciona. 

. Bannetons para crescimento de pão são lindos, mas nem sempre acessíveis e podem ser substituídos facilmente por chapéus, cestinhas baratas e até pequenas fruteiras de plástico.

. E pra quê varal próprio para macarrão quando temos cabides, cadeiras, pés de mesa?

Olhe ao redor!