Não vou me alongar no assunto cuscuz, pois acho que tudo o que sei
já foi dito de algum jeito aqui no Come-se. Falei de bijajica, cuscuz de arroz, cuscuz baiano, cuscuz de cará e todos aqueles do Senegal (aliás, matéria sobre cuscuzes na Menu deste mês - tô lá!). Acho que tudo o que disser pode soar repetitivo para quem acompanha o Come-se. Mas, como a gente nunca para de aprender, desde que voltei de Rio Branco, Acre, tenho feito muito cuscuz de milho por aqui. Quando estou sem tempo de cozinhar, mando uma
baixaria, que é prato de resistência servido no mercado municipal do Acre (estou devendo um post sobre o prato, eu sei) que consiste de cuscuz, carne moida e ovo frito.
O cuscuz de milho de cuscuzeira não faz parte da minha trajetória culinária. Na minha infância já tinha a corruptela feita em panela do tradicional cuscuz paulista - de peixe, galinha ou camarão, cozidos no vapor. Com rodelas de ovo e pedaços de sardinha e moldado em forma de anel, era uma delícia ainda assim. Aprendi a fazer este cuscuz com flocão ou milharina com minha amiga baiana
Silvinha e com a outra baiana que trabalha de doméstica aqui em casa,
Eliane.
Mas outro dia me revoltei com a dependência dos tais flocos industrializados e perguntei: - Mas, Eliana, porque a gente não faz o cuscuz com milho triturado? Não dá?/ Que dá, dá, mas tem que deixar o milho de molho, dar uma fervura e triturar no pilão ou passar pelo moinho quase igual o que a senhora faz praquelas
coisas mexicanas. / Ok, um dia a gente vai fazer este, mas e se já tiver o fubá, um bom fubá, não dá pra fazer? / Dá também./ E não é mais gostoso? / Claro que é./ Dá mais trabalho? / Não./ Custa mais caro?/ Lógico que não./ Ué, então porque a gente não faz com fubá?/ Sei lá, acho que é costume.
Conheço o fubá suado do Vale do Paraíba e o cuscuz de fubá da mesma região que leva rapadura ralada (capa hoje do Paladar!), pra comer com café. Este cuscuz de milho feito com flocos a gente vê em várias partes do Nordeste (há também flocos de arroz) e, embora não seja ruim - fica até bem gostoso dependendo de quem faz-, cria uma certa dependência da indústria, afinal ninguém consegue aqueles flocos na cozinha doméstica (assim como os sucrilhos e extrusados em geral). Quando a Eliane diz que é o costume é como achar hoje que só é possível fazer pudim com leite condensado. A indústria cria necessidades - se seu intestino não funciona sem activia, por exemplo, é bom começar a repensar esta relação de dependência. Acaba-se acreditando que só é possível ter um bom cuscuz se tiver flocos. E não é.
Pois eu tinha aqui semolina de milho que tem a consistência das farinhas importadas para polenta e o cuscuz feito com ela fica uma perfeição, já que os grãos incorporam água e incham como um cuscuz marroquino. Mas quis fazer como os senegaleses que transformam qualquer farinha em cuscuz não importa se é sorgo, milhete, milho, mandioca (este, mais comum na Costa do Marfim), arroz, banana verde e até trigo (e pensar que muita gente acredita que cuscuz africado é só o cuscuz marroquino de trigo).
Então, peguei um fubá bem fino e orgânico e tentei fazer o cuscuz à moda da Eliana cujos gestos de esfregar o pó molhado entre as mãos para umedecer os grãos não ficam nada a dever aos das mulheres do norte da África para preparar a iguaria desde o início. Digo desde o início porque quase ninguém mais prepara o cuscuz a partir da farinha, executando todos os passos. O mais comum é comprar o cuscuz já cozido em vapor, já transformado em bolinhas e seco, em caixinhas. Em casa, basta umedecer e aquecer com água quente. Nem precisa ir mais à cuscuzeira. É o cuscuz pré-cozido. No Brasil o cuscuz marroquino chega assim, sequinho, em caixinhas, como macarrão. E em todos os lugares. Mas o seu preparo, embora fácil, é um pouco trabalhoso, afinal há que se umedecer a farinha, cozinhar em vapor, esfarelar com as mãos, umedecer com água, passar por peneira, cozinhar novamente, esfarelar novamente, umedecer de novo. Na terceira vez, pode-se juntar manteiga. E está pronto.
O que a Eliane fez, simplesmente umedecendo, esfarelando e cozinhando no vapor fica ótimo para comer com manteiga derretendo por cima, ou ainda com leite de coco, acompanhado por café. Fica meio sequinho, mas muito saboroso. Já fazendo com o método tradicional que descrevi acima, os grãos ficam muito mais inchados e úmidos, gostoso até para comer puro e também com aqueles acompanhamentos clássicos de um bom cuscuz marroquino - legumes, peixes, carnes com molho etc.
Agora que já sei que o cuscuz feito assim fica muito melhor, depois faço para nós um completo e também aquele acreano. Por enquanto, fica aqui a opção ao cuscuz marroquino de trigo e também aos flocos industriais. Experimente usar um bom fubá artesanal e sirva com uma receita bem caseira de carne com molho. E depois me conte. Veja o passo-a-passo:
Método simples e rápido da Eliane
Aqui foi usada semolina de milho. Coloque o milho numa tigela e molhe com água com um pouco de sal misturado (350 g de semolina de milho ou fubá grosso, 1/4 de colher (chá) de sal, 200 ml de água). Esfregue o fubá com as mãos até que fique todo úmido e soltinho. Espere 10 minutos e cozinhe na parte de cima de uma
cuscuzeira pequena (a receita do cuscuz com flocos da Eliane também está neste link). Depois de cerca de 15 minutos o cuscuz está pronto, com o vapor saindo por cima.
Método africano - um pouco mais demorado, para grânulos úmidos
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O fubá fino e orgânico usado, e livros que ensinam o método
clássico de se fazer cuscuz |
Coloque numa bacia 2 xícaras de fubá fino orgânico e vá juntando água salgada aos poucos (cerca de 200 ml de água fria com 1/4 de colher (chá) de sal ou a gosto). Mexa com o garfo e depois com as mãos, conforme mostrei no método acima.
O fubá umedecido e esfregado com as mãos deve ficar assim. Espere 10 minutos para hidratar bem e passe por peneira grossa.
Depois de passar por peneira, coloque às colheradas, sem apertar, na parte de cima da cuscuzeira, com água fervente na parte de baixo ocupando metade do espaço. Cozinhe com a panela tampada até os grãos ficarem ligados - cerca de 10 minutos.
Retire o cuscuz cozido, passe para uma tigela e despeje aos poucos, entre os grãos, 100 ml de água fria. Vá esfregando com as mãos devagar para os grãos ficarem soltos e úmidos. Espere 10 minutos e passe novamente por peneira. Coloque os grãos peneirados para cozinhar de novo e repita a operação mais uma vez, juntando mais 100 ml de água. Faça tudo de novo, porém, no final, em vez de juntar água fria, junte 2 colheres (sopa) de manteiga (se quiser). Mexa com garfo, passe por peneira e sirva. Se precisar guardar, na hora de servir, aqueça rapidamente no vapor e passe novamente por peneira.
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E nhac! |
Mas, calma ai, que esta história ainda não acabou. Deixe um pouco secando no sol. Veremos se fica bom para guardar pré-cozido.