quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Cuscuz quase marroquino. Ou quinta sem trigo 31



Não vou me alongar no assunto cuscuz, pois acho que tudo o que sei já foi dito de algum jeito aqui no Come-se.  Falei de bijajica, cuscuz de arroz, cuscuz baiano, cuscuz de cará e todos aqueles do Senegal (aliás, matéria sobre cuscuzes na Menu deste mês - tô lá!). Acho que tudo o que disser pode soar repetitivo para quem acompanha o Come-se. Mas, como a gente nunca para de aprender,  desde que voltei de Rio Branco, Acre, tenho feito muito cuscuz de milho por aqui. Quando estou sem tempo de cozinhar, mando uma baixaria, que é prato de resistência servido no mercado municipal do Acre (estou devendo um post sobre o prato, eu sei) que consiste de cuscuz, carne moida e ovo frito.

O cuscuz de milho de cuscuzeira não faz parte da minha trajetória culinária. Na minha infância já tinha a corruptela feita em panela do tradicional cuscuz paulista - de peixe, galinha ou camarão, cozidos no vapor. Com rodelas de ovo e pedaços de sardinha e moldado em forma de anel, era uma delícia ainda assim. Aprendi a fazer este cuscuz com flocão ou milharina com minha amiga baiana Silvinha e com a outra baiana que trabalha de doméstica aqui em casa, Eliane.

Mas outro dia me revoltei com a dependência dos tais flocos industrializados e perguntei: - Mas, Eliana, porque a gente não faz o cuscuz com milho triturado? Não dá?/ Que dá, dá, mas tem que deixar o milho de molho, dar uma fervura e triturar no pilão ou passar pelo moinho quase igual o que a senhora faz praquelas coisas mexicanas. / Ok, um dia a gente vai fazer este, mas e se já tiver o fubá, um bom fubá, não dá pra fazer? / Dá também./ E não é mais gostoso? / Claro que é./ Dá mais trabalho? / Não./ Custa mais caro?/ Lógico que não./ Ué, então porque a gente não faz com fubá?/ Sei lá, acho que é costume.

Conheço o fubá suado do Vale do Paraíba e o cuscuz de fubá da mesma região que leva rapadura ralada (capa hoje do Paladar!), pra comer com café. Este cuscuz de milho feito com flocos a gente vê em várias partes do Nordeste (há também flocos de arroz) e,  embora não seja ruim - fica até bem gostoso dependendo de quem faz-, cria uma certa dependência da indústria, afinal ninguém consegue aqueles flocos na cozinha doméstica (assim como os sucrilhos e extrusados em geral). Quando a Eliane diz que é o costume é como achar hoje que só é possível fazer pudim com leite condensado.  A indústria cria necessidades -  se seu intestino não funciona sem activia, por exemplo,  é bom começar a repensar esta relação de dependência. Acaba-se acreditando que só é possível ter um bom cuscuz se tiver flocos. E não é.

Pois eu tinha aqui semolina de milho que tem a consistência das farinhas importadas para polenta e o cuscuz feito com ela fica uma perfeição, já  que os grãos incorporam água e incham como um cuscuz marroquino.  Mas quis fazer como os senegaleses que transformam qualquer farinha em cuscuz não importa se é sorgo, milhete, milho, mandioca (este, mais comum na Costa do Marfim), arroz, banana verde e até trigo (e pensar que muita gente acredita que cuscuz africado é só o cuscuz marroquino de trigo).

Então,  peguei um fubá bem fino e orgânico e tentei fazer o cuscuz à moda da Eliana cujos gestos de esfregar o pó molhado entre as mãos para umedecer os grãos não ficam nada a dever aos das mulheres do norte da África para preparar a iguaria desde o início. Digo desde o início porque quase ninguém  mais prepara o cuscuz a partir da farinha, executando todos os passos.  O mais comum é comprar o cuscuz já cozido em vapor, já transformado em bolinhas e seco, em caixinhas. Em casa, basta umedecer e aquecer com água quente. Nem precisa ir mais à cuscuzeira. É o cuscuz pré-cozido. No Brasil o cuscuz marroquino chega assim, sequinho, em caixinhas, como macarrão. E em todos os lugares.  Mas o seu preparo, embora fácil, é um pouco trabalhoso, afinal há que se umedecer a farinha, cozinhar em vapor, esfarelar com as mãos, umedecer com água, passar por peneira, cozinhar novamente, esfarelar novamente, umedecer de novo. Na terceira vez, pode-se juntar manteiga. E está pronto.

O que a Eliane fez, simplesmente umedecendo, esfarelando e cozinhando no vapor fica ótimo para comer com manteiga derretendo por cima, ou ainda com leite de coco, acompanhado por café. Fica meio sequinho, mas muito saboroso.  Já fazendo com o método tradicional que descrevi acima, os grãos ficam muito mais inchados e úmidos, gostoso até para comer puro e também com aqueles acompanhamentos clássicos de um bom cuscuz marroquino - legumes, peixes, carnes com molho etc.

Agora que já sei que o cuscuz feito assim fica muito melhor, depois faço para nós um completo e também aquele acreano.  Por enquanto, fica aqui a opção ao cuscuz marroquino de trigo e também aos flocos industriais. Experimente usar um bom fubá artesanal e sirva com uma receita bem caseira de carne com molho.  E depois me conte. Veja o passo-a-passo:

Método simples e rápido da Eliane


Aqui foi usada semolina de milho. Coloque o milho numa tigela e molhe com água com um pouco de sal misturado (350 g de semolina de milho ou fubá grosso, 1/4 de colher (chá) de sal, 200 ml de água). Esfregue o fubá com as mãos até que fique todo úmido e soltinho. Espere 10 minutos e cozinhe na parte de cima de uma cuscuzeira pequena (a receita do cuscuz com flocos da Eliane também está neste link). Depois de cerca de 15 minutos o cuscuz está pronto, com o vapor saindo por cima. 

Método africano - um pouco mais demorado, para grânulos úmidos

O fubá fino e orgânico usado, e livros que ensinam o método
clássico de se fazer cuscuz

Coloque numa bacia 2 xícaras de fubá fino orgânico e vá juntando água salgada aos poucos (cerca de 200 ml de água fria com 1/4 de colher (chá) de sal ou a gosto). Mexa com o garfo e depois com as mãos, conforme mostrei no método acima. 


O fubá umedecido e esfregado com as mãos deve ficar assim. Espere 10 minutos para hidratar bem e passe por peneira grossa.


Depois de passar por peneira, coloque às colheradas, sem  apertar, na parte de cima da cuscuzeira, com água fervente na parte de baixo ocupando metade do espaço. Cozinhe com a panela tampada até os grãos ficarem ligados - cerca de 10 minutos.

 

Retire o cuscuz cozido, passe para uma tigela e despeje aos poucos, entre os grãos, 100 ml de água fria. Vá esfregando com as mãos devagar para os grãos ficarem soltos e úmidos. Espere 10 minutos e passe novamente por peneira. Coloque os grãos peneirados para cozinhar de novo e repita a operação mais uma vez, juntando mais 100 ml de água. Faça tudo de novo, porém, no final, em vez de juntar água fria, junte 2 colheres (sopa) de manteiga (se quiser). Mexa com garfo, passe por peneira e sirva. Se precisar guardar, na hora de servir, aqueça rapidamente no vapor e passe novamente por peneira. 

E nhac!


Mas, calma ai, que esta história ainda não acabou. Deixe um pouco secando no sol. Veremos se fica bom para guardar pré-cozido. 

15 comentários:

Mariana Rosa disse...

Oi Neide!

Minha família faz Cuscuz desse jeitinho, mas usamos o fubá-précozido. Usando o fubá-pré cozido, o cuscuz fica mais úmido. Cuscuz assim é bom pra comer com carne ensopada... Um franguinho de quintal e um pouco desse cuscuz, no lugar do arroz... Ai, delícia!

silvia lopes disse...

Neide, em Lençóis existe o hábito de se preparar cuscuz com fubá em lugar dos flocos pré-cozidos.Até ir morar lá eu nunca tinha visto cuscuz feito com fubá, e fica bom mesmo.Trouxe algumas vezes de Gonçalves, para presentear amigos da chapada, aquele fubá feito em moinho de pedra que voce conhece, daí era aquela disputa...!

Neide Rigo disse...

Mariana, que legal saber. Sua família faz o método da Eliane ou o Africano? Cozinha também três vezes e passa por peneira? Fiquei curiosa.

Silvinha, aquele fubá de moinho de pedra de Gonçalves é especial. Deve ficar uma delícia o cuscuz feito com ele.

Um beijo, N

Anônimo disse...

Ai que saudade da minha infâcia! O sue blog é tudo de bom...
Bjs
Maria

Anjali - Paula Magnus disse...

Tentarei! Tenho feito investidas para tirar o trigo do nosso dia-a-dia, mas preciso providenciar uma cuscuzeira :) . Aqui no Rio Grande do Sul não temos o hábito do cuscuz. Recentemente fiz a receita básica de cuscuz marroquino (com passas, amêndoas, etc), porém coloquei o pinhão cozido triturado miudinho no processador. Foi um sucesso!
Tuas informações e dicas são preciosas!
Grande beijo

Dricka disse...

Eita delicia. Como boa filha de nordestinos que eu sou, amo cuscuz assim simples para comer com manteiga, leite ou carne ensopada. Minha mãe que é das antigas antes de conhecer os flocos pre cozidos fazia deixando o milho de molho (onde ela nasceu elas fazem muito cuscuz de puba tambem) e como nasci em meio a cultura do economize tempo, nunca havia me interessado pelo modo rustico, até hoje. Acredito que o sabor deva ficar muitooo melhor.
Bjs

mariene disse...

Neide, minha amiga, eu lhe considero assim por me sentir tão próxima.O seu Blog tem cor, cheiro, sabor. E agora com sua ida ao Acre ressuscitou em mim, minha alma amazônida adormecida.
Eita! Frutas, comidas, ervas, modos vivendi, o barranco do rio, a floresta,os banhos nos igarapés, as casas cobertas de palha(ainda tem?)...
Muito obrigada por me fazer tão bem. É muita coisa em comum compartilhada!

Ana Canuto disse...

Neide:

Sabe o jeito que acho melhor ? Com manteiga e um ovo caipira frito bem molinho derretendo a gema por cima...

Beijo. Ana.

Gisela de Camargo Cursino disse...

Adorei seu Blog, parabéns! É delicioso de ler e ver! Imagine de provar, então!

Gisela de Camargo Cursino disse...

Adorei seu blog, parabéns! Delicioso de ler, ver .... imagine provar, então!!

clau disse...

Achei o máximo esta sua sugestão, Neide, e se me lembrar, um dia vou tentar fazer.
Eu gosto mm é do bulgur, mais que do cuscuz, mas isto me pareceu até melhor.
Bjs!

Anônimo disse...

na minha família que é bahiana do interior, tem-se o hábito de fazer cuscuz com farinha de milho, mas daquelas mais finas... só que umedece a farinha e deixa descansando de um dia para outro...

minha avó colocava um pouco de farinha(copioba, aqui se se pronunciar farinha, sem especificar de que é, é farinha e só.) para dar liga.

quando fazia com açúcar colocava erva-doce, para se comer com café e bastante manteiga em cima.

bjs

Unknown disse...

Neide quero mudar minha empresa pra o ramo de cuscuz , mais não tenho muitas informações. Será que poderia nos ajudar?

Paula Helena disse...

Neide, vim aqui atrás de como fazer o cuscuz marroquino sem precisar comprar aquelas caixinhas. Quer dizer que é esse processo? Com sêmola de trigo? Por isso que te adoro, só aqui ia encontrar algo sobre!!!! Beijos

Unknown disse...

No nordeste brasileiro existem umas 100 formas diferentes de cuscuz, de tapioca, de fubá, de mandioca, de puba\carimã, de inhame, farinha de arroz, misto, e vários outros, que podem ser doce, salgado, neutro, ou agridoce, agora o suposto 'cuscuz' paulista, é tudo, menos cuscuz, cuscuz é originário do noroeste da África, e a principal característica, é ser seco e cozido no vapor, coisa que não acontece na papa paulista, que nunca será cuscuz.