O cara podia tá roubando, tá matando, mas tá lá cozinhando... Mesmo porque já fez uma destas coisas e por isto está lá. Se a moda pega, vai ser um tal de jumbo com pimenta-do-reino e alecrim disputando espaço com maços de cigarro, produtos de limpeza, roupas e bolachas. Pra quem não sabe, jumbo é esta sacola de coisas que a família leva para o preso em dias de visita. É que Raimundo Nonato, que gostaria de ser conhecido por Nonato-Canivete mas vira Alegrinho, Paraíba, Cearense-cabeça-chata e até Parmalate, descobre como reinventar sua vida na prisão a partir do conhecimento da arte de transformar qualquer xepa-gororoba em comida saborosa. Até sujos, feios e malvados se rendem ao encanto do aroma do alho e da cebola fritando em azeite. Basta um fogareiro ligado a qualquer gato, uma panela encardida e comprar o dono da cozinha com maços de cigarro. Vejam só o diálogo quando os presos reclamam da droga que estão comendo: NONATO: Olha, não carece de saber, não. Se tiver um pouquinho de alho, pimenta, cebola, azeite pra refogar, um pouquinho de queijo ralado e alecrim... Com o que tiver, nós dá jeito.
BUJIÚ: É mesmo? Ô, Lino?
LINO: Fala aí.
BUJIÚ: Vê com os caras lá da cozinha lá meu. Manda eles trazerem esses bagulhos aí. E esse tal de alegrinho..
NONATO: Não é alegrinho não, é alecrim!
BUJIÚ: Então...Alecrim! Traz esses negócios aí pro... Qual o teu nome mesmo, paraíba?
NONATO: Nonato Canivete.
BUJIÚ: Ô Lino, traz pro Nonato esse Alecrim, que amanhã eu quero comer bem.
Pedaços de frangos que chegam como ensopados em lavagem são enxaguados e refogados com temperos. Viram xinxim, ainda que sem camarão. Arroz sem vida ganha leite de coco e ervas. Um dos presos conta sobre formigas tostadinhas que comeu na Colômbia, quando foi levar droga. Não demorou e todas as formigas que vagavam por ali entrando em narizes ao ar viraram farofa.
Receita: Frite alho e cebola em óleo. Junte uma pá de formiga e deixe dourar. Acrescente a farinha, sal e deixe aquecer até ficar tudo crocante. Sirva como tira-gosto. E prepare-se para apanhar do chefe do pedaço que vai adorar, mas não pode perder sua dignidade comendo bichos.
Duas histórias paralelas vão se desenrolando no filme ao mesmo tempo, alternadamente. E é claro que no meio há sempre uma estória de amor. A primeira conta desde a chegada do nordestino ao Sul em busca de oportunidades até o motivo da prisão. Passa por pela ascenção de auxiliar de boteco boca-de-porco onde fazia uma coxinha imbatível e pastéis sequinhos, que leva pinga na massa, a cozinheiro de restaurante italiano chique, cujo proprietário faz a sobremesa romeu-e julieta virar anita-e-garibaldi com goiabada e gorgonzola; mostra-lhe a posição do filé mignon na carcaça de um boi no açougue; o jeito certo de dourar alho para não amargar e o segredo de cozinhar macarrão (azeite na água? Só se o macarrão não presta!) e até o porque de guardar vinhos deitados. Destaque aqui para um vinho Sissicaia 1983, guardado para os 60 anos do homem, mas que assim como seu dono tem destino diverso daquele planejado. A segunda parte é aquela que já contei, a saga na cadeia.
Feios, pobres, sujos e malvados nas mãos de alguns diretores brasileiros costumam resultar em filmes pesados e deprês que nos mostram aquele Brasil que queremos enfiar debaixo do tapete. Mas não este. Tem tudo aquilo, mas tem o tempero que lhe confere a graça e a leveza. É um filme cujo sabor vai além do sal bruto. Tem alho, cebola, alecrim, pimenta.
Algumas cenas engraçadas: o gorgonzola chulezento empesteando é obrigado a dormir fora da cela, pendurado no varal junto com os tênis. O macarrão à putanesca vira macarrão à putavesga nas palavras da puta Iria. O carpaccio volta pra dourar na frigideira porque preso que é homem não come carne crua ainda mais com este nome carrapato. Gente malvada bebe cerveja gelada e jamais um vinho enfrescalhado tipo Chianti que pode ter aroma de flores do bosque, mas também de cachorro molhado. E se não tem cerveja, vai de maria-louca mesmo, que é o destilado feito pelos presos com resto de alimentos. Com três gotinhas de angostura fica melhor, supõe Nonato.
Co-produção Brasil-Itália, Estômago já vai estrear com vários prêmios na bandeja. Só por ter Paulo Miklos (do Titãs) já vale. Quem viu o filme O Invasor sabe como ele sabe fazer cara de mal. Agora, tendo o João Miguel como protagonista, tem que correr ao cinema. Até hoje não só sua atuação sempre surpreendeu, como ele deve escolher diretores a dedo, porque os filmes em que atua são sempre muito bons. Pelo menos todos os que já vi até hoje: Cidade baixa, de Sergio Machado; O Céu de Suely, de Karim Aznouz; Cinema, Aspirinas e Urubus de Marcelo Gomes e Mutum, de Sandra Kogut - estes dois, os meus preferidos.
Filmes como Estômago, de baixo orçamento, mostram que não é só com dinheiro que se constroem bons filmes. Assim como sabemos que para fazer comida boa não é preciso usar panela Le Creuset e o filé de cordeiro do Santa Luzia. Com um cozinheiro talentoso e resiliente, ingredientes honestos e, vá lá, alguma graça como alho e alecrim, qualquer panela colabora.
Minha versão de anita-e-garibaldi. Gorgonzola derretido banhando apenas a pontinha da goiabada.
Curiosidades
- Luiz Mendes Jr. foi consultor de comportamento no cárcere – passou 31 anos na prisão, onde escreveu Memórias de um sobrevivente e é colunista da revista TRIP (os textos dele são ótimos).
- As cenas foram rodadas em Curitiba e em São Paulo.
- Foi inspirado no conto Presos pelo Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, de Lusa Silvestre.
- A chef Geraldine Miraglia, do Oil Gastronomia, de Curitiba, foi a consultora de comportamentos, panelas e comidas.
- A trilha sonora é do italiano Giovanni Venosta, que também fez a do filme Pão e Tulipas (2000), entre outros.
- O filme ganhou os prêmios de melhor filme e melhor ator, para João Miguel, no XI Festival Internacional de Cinema de Punta del Este; em sua estréia internacional, em Rotterdam, ganhou o prêmio Lions Award 2008 e ficou em segundo lugar na escolha do público, entre 196 filmes. No Festival do Rio 2007, foi eleito o melhor filme segundo o público, além de melhor direção, ator principal, João Miguel, e menção especial pelo coadjuvante Babu Santana (Bujiú).
- Luiz Mendes Jr. foi consultor de comportamento no cárcere – passou 31 anos na prisão, onde escreveu Memórias de um sobrevivente e é colunista da revista TRIP (os textos dele são ótimos).
- As cenas foram rodadas em Curitiba e em São Paulo.
- Foi inspirado no conto Presos pelo Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, de Lusa Silvestre.
- A chef Geraldine Miraglia, do Oil Gastronomia, de Curitiba, foi a consultora de comportamentos, panelas e comidas.
- A trilha sonora é do italiano Giovanni Venosta, que também fez a do filme Pão e Tulipas (2000), entre outros.
- O filme ganhou os prêmios de melhor filme e melhor ator, para João Miguel, no XI Festival Internacional de Cinema de Punta del Este; em sua estréia internacional, em Rotterdam, ganhou o prêmio Lions Award 2008 e ficou em segundo lugar na escolha do público, entre 196 filmes. No Festival do Rio 2007, foi eleito o melhor filme segundo o público, além de melhor direção, ator principal, João Miguel, e menção especial pelo coadjuvante Babu Santana (Bujiú).
- Luiz Miguel ganhou 2 vezes o prêmios de melhor ator no Festival do Rio, por "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005) e "Estômago" (2007) e também no Festival de Guadalajara, por "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005). E que seja dito:
- João Miguel é um cara legal que pode ser visto eventualmente no restaurante Gopala Prasada e freqüenta a academia EcoFit, onde o o Marcos dá aula de aikido.
- O Paulo Miklos já pegou uma carona de guarda-chuva comigo quando sua filha Manoela estudava na Escola da Vila com a minha Ananda.
- E viva o cinema nacional!
Quando: o filme deve estrear em São Paulo em breve. Mas a agência Salem Guerilha convidou ontem para uma pré-estréia apenas blogueiros de comida, de cinema e de publicidade. Desta vez "é nóis"!
Veja também no youtube:
5 comentários:
Neide,esse filme ja saiu? Nossa, fiquei curiozíssima pra ver...Ontem vi sem reserva e depois desci pra minha cozinha pra cozinhar de tanta vontade que fiquei!!Quero ver Estômago!! Beijão.
Neide, como eh duro ficar de fora dessas paradas...
Felizmente tenho seus relatos em textos impecaveis, e a esperanca que esse filme chegue por aqui.
Adorei essa versao da goiabada com queijo. Vou fazer, com um ultimo pedaco de cascao que ainda tenho.
Que bacana! :-)) beijao,
*o Gabriel dah aulas de taekendo e agora faz um tal de hapkido, que o Marcos deve sacar.
Neide:
À época em que filmaram aqui em Curitiba eu vi alguma coisa no jornal, até porque moro próximo à antiga Penitenciária que serviu de locação para o filme. Outros locais utilizados foram o Bar Palácio, tradicional da cidade e muito famoso e o Mercado Municipal que como todo mercado tem lá seu charme, suas bancas diferenciadas, peixarias e lojas.
Vi o trailer do filme e despertou maior interesse. Você superou de novo dona menina. Parabéns e um abraço.
Uau, Neide... você é incrível nos detalhes.
eu gostei muito. beijos, pedrita
Postar um comentário