sábado, 23 de janeiro de 2010

Café da roça



A grande novidade no sítio é a torradeira motorizada. Meu pai conta com orgulho que fez um bom negócio comprando por "200 conto" o fogão industrial de duas bocas junto com a torradeira de café com motor adaptado. Foi obra de algum professor Pardal de Fartura que, como meu pai e tantos outros homens engenhosos, gosta desta coisa de tirar motor de fusca e colocar numa geringonça que levanta vôo, adaptar motor de máquina de costura num batedor de sabão ou motor de máquina de lavar numa moenda de cana, coisas assim.

O fato é que o torrador deveria ter alguém na manivela rodando por 30, 40 minutos sem parar. Em vez disso, uma gambiarra faz a engenhoca funcionar. Perdeu-se parte da poesia, em compensação trabalha sozinha liberando tempo e braços para outras atividades como tirar fotos, por exemplo - atividade a que meu pai vem se dedicando depois que demos a ele uma câmera. É a revolução digital chegando àquele rincão.

Todo o resto é artesanal, do cuidado com o cafezal e colheita do café à secagem dos grãos no terreiro. É um tal de espalha ao sol, amontoa à tarde e cobre à noite, que se arrasta dias a fio. Todo sítio de café, destes caipiras, tem um terreirão de tijolo cru onde crianças brincam de pega-pega, corda e outras marotices quando não está sendo usado. É um porto-seguro nos dias úmidos quando os pés pesam de arrastar sapato velho com barro. Era assim nos meus avós, nos meus tios e de uns anos pra cá, em Fartura, onde meus pais seguem a mesma toadinha pra conseguir aquele café cheiroso.

Na etapa final, com os grãos já secos e pelados, a torra é cheia de segredos. Não sem antes jogar os grãos na mesa, escolher tirando eventuais pedrinhas ou grãos carcomidos. Depois de 38 minutos na torradeira, meu pai confere quando começa a sair fumaça e aquele aroma inebriante. Ainda não está bom. Volta ao fogo e depois de 18 segundos confere de novo. É a hora. Corre pra jogar na peneira e abanar rápido com braços fortes em sobre-e-desce para esfriar e não continuar torrando com o próprio calor.

Ninguém ainda fez questão de motorizar o velho moinho de café, nem comprar destas modernas cafeteiras com moedor elétrico. Pois é a parte que todos gostam. Os grãos que, frios, vão pra lata, são moídos com prazer a cada cafezinho. Enquanto a água esquenta, é tempo de deixar pronto o cenário: a mariquinha sustentando o coador de pano sobre o bule asseado e as xícaras esperando a função. Uma chaleira ferve outra água pra aquecer o caminho do café. Tudo pra que chegue muito quente às xícaras. Antes desta coisa de um querer menos açúcar, outro, totalmente amargo ou com adoçante, o açúcar cristal era dissolvido na água quente antes de jogar o próprio pó na água. Tudo para não esfriar a bebida e passar rapidamente pelo coador.

Na fila do moinho tem sempre uma criança ou uma visita pronta pra fazer daquilo um prazer mais que trabalho, afinal aqueles grãos quebram sem resistência a cada volta da manivela, mandando de um lado o pó marrom escuro e cheiroso e de outro só moléculas perfumadas e voláteis a preparar nossos sentidos.

E assim, o momento do café no sítio, seja no secar do sereno ou na despedida do sol, não é só o sabor da bebida, mas o zunzunzum de quem espera, o som do moinho e da lenha crepitando, a fumaça do bule e da chaminé e os perfumes de tudo isto. E embora traga sempre café de lá, a bebida aqui às vezes me parece ácida demais, amarga demais, adstringente enfim.

Agradeço à minha amiga Inês Correa e à sua filhinha Júlia Bulhões, de oito anos, que passaram horas pacientes e alegres até a madrugada para fazer milagres com minhas fotos e vídeos.

17 comentários:

Yanna Clementino disse...

Neide, que video mais lindo! Que saudade do Brasil!
Beijos

Anônimo disse...

Neide, Este vídeo é muito emocionante, até dei uma choradinha, tamanha a beleza. A sintonia das imagens com a música é perfeita. Ele remete à verdades do passado que teimam em perdurar. ele extrapola ao atingir uma universalidade de sensibilidade. Me sinto um privilegiado de ter participado um pouco desta história.
Porque não mandas para um concurso de vídeos?
Abração
Rui

Anônimo disse...

Moro na região metropolitana de SP. Tenho dois pés de café no jardim. Já tive paciência de colher cerejas dos pés, secar ao sol, mas minha mulher não se deu conta do que é um bom café, 100% arábica sem mistura de conilon ou robusta, que é o que se encontra em marcas comerciais.

Fora do assunto, que tal comentar sobre um peixe da moda, a anchova negra, um peixe delicioso mas que causa um efeito entérico muitas vezes súbito, tal que só masoquistas pensam em comer uma segunda vez.

Mariângela disse...

ai Neide,que vídeo mais lindo de todos os tempos, o Rui me ligou na hora do almoço e eu vim correndo achar uma lanhouse para assistir..Como a Yanna,já sinto saudade do Brasil. Sinto também uma imensa alegria de ter tido o privilégio de visitar Fartura e conhecer seus pais.Beijos em todos!!

Gina disse...

Essas coisas não têm preço!
Em março viajarei para casa da minha mãe, que ainda faz café no coador de pano.
Além de receber todo o agradinho que só mãe sabe dar, ela vai fazer bolo de fubá, certamente, porque sabe que adoro, para acompanhar o cafezinho coado...
Ficou lindo o vídeo!
Bjs.

clau disse...

Este seu post esta o maximo, sabia?
Adorei.
E passei por aqui, bem vat-vupt, só para avisar que estou embarcando amanhã, de volta para a outra casa.
Assim, faremos uma refeição, juntas, la por aqueles lados mm, ok?
Qdo voltarei para os meus comentarios sem o "til" e sem os acentos todos...
Até, Neide.
Bjs!

Lia e Vi disse...

Oi Neide, que boas recordações me trouxe esse post,minha mãe era de Ribeirão Preto, veio prá cá com 19 anos, casou e sempre cuidou da rocinha que temos aqui em Sampa, ela plantava café, é tinhamos uns vinte pés, então eu moça da cidade sempre participei de todo esse processo, colheita, secagem, torragem (que cheiro maravilhoso) e a moagem sobrava para mim, naqueles tempos bem que eu queria uma engenhoca qualquer prá fazer o serviço por mim.
Amo seus posts, trazem lembranças tão boas, se tiver um tempo passa no meu bloguito para ver a minha cuscuzeira de barro, depois de ler seu post,desencavei e estou procurando uma receita para fazer nela.
Bjus 1000.

Unknown disse...

Oi, Neide! Seu blog é fantástico. Obrigada pelas imagens, lembranças, aromas e sabores que trazem a plenitude da vida em suas inúmeras versões.
Também dei uma choradinha com o video do café. Por nostalgia de algo que deixei de ver. Meus avós paternos tinham uma fazenda de café no norte do Paraná, mas não cheguei a conhecer. Parabéns por tudo, menina.
Um grande abraço,
Audrey
P.S. Estava só procurando receitas pra beldroega, que nasce infinitamente em meu quintal e... surpresas!

Anônimo disse...

Neide,não tenho como te explicar já chorei demais, quando vi o video, e lendo o texto, saudades do meu pai e minha mãe que ja se foi, mais tb, porque quando criança ficava emburrada, por ter que colher o café e participar de todo o proçesso que aqui vc, descreveu tão bem,nao sei nem o que dizer mais, que Deus te
por vc. nos fazer voltar a esta parte tão bela de nossas vidas .beijos(diulza)

Anônimo disse...

Neide!
Estes teus leitores são todos uns babões chorões, eu encabeçando a lista. Tu farias sucesso vendendo lencinhos pra gente.
Abração
Rui

Elena sem H disse...

Consigo quase sentir o aroma do café. O filme ficou lindo, a música escolhida é perfeita.
Cada vez que leio você sobre Fartura fico com muita vontade de passar uma temporada assim, no meio do mato, no meio do mato simples, com fogão à lenha, horta, café e quetais.
Obrigada por compartir beijos,

Elena sem H

Inês Correa disse...

Querida Neide. Pra mim é sempre um aprendizado cada minuto aí contigo. Foi um prazer. Aliás, na minha curta vida tenho procurado viver com pessoas que me fazem sentir bem. Que troquem boas coisas. Você está entre elas, certamente. Obrigada, viu?Beijo

Neide Rigo disse...

Yanna, eu também teria. Obrigada.

Rui, o privilégio foi nosso de ter tomado café torrado, moído e preparado por você. Concurso de vídeos? Não pra tanto, né?

Anônimo, obrigada pela sugestão. Mas não sou eu que vou atrás dos assuntos. Eles que me acham! Quem sabe um dia esta anchova cruza meu caminho.

Mari, sorte nossa já fazer parte de suas lembranças de Brasil.

Gina, lá em casa é a mesma coisa.

Pepa, boas lembranças, não. Não encontrei seu blog.

Audrey, meus avós maternos também tinham sítio de café no norte do paraná, onde sempre passava as férias. Tempo bom! Eu também me emociono quando lembro, mas este vídeo não era pra fazer ninguém chorar, não, tá? (viu, Rui?)

Elena, eu tenho esta vontade a todo momento.

Inês, a recíproca é mais que verdadeira, viu?

beijos,
N

Carlos Alberto de Lima disse...

Pra mim, não há dinheiro no mundo que pague tomar um café desta forma... Tenho saudades dos tempos em que podia fazer isto...

Truehappynest disse...

Neide...o post é uma belezura sem tamanho....a poesia da musica e da imagem. Uma fusão perfeita! Quase senti o cheirinho do café torrado...
beijos
Rosemary

Unknown disse...
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espressa-mente! disse...

SHOW!