segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Resposta à ultima charada: Moreia pintada. Duas receitas


Aqui, no Mercado da Lapa, só restou a plaquinha, pois a única moreia de 2,5 kg já estava na sacola
Moreia. Acertaram a charada Margarida e Buriti. Diferente do que palpitou Luiz, eu não trouxe da roça, mas da peixaria mesmo. De fato, no sítio meu pai já içou muçum, Synbranchus marmoratus, num pequeno açúde, mas não cheguei a comer. Na peixaria só havia um exemplar e não pensei duas vezes para comprá-lo. Segundo o vendedor, foi pescado no litoral norte de São Paulo e a cabeça, perigosa mesmo com o bicho morto, com dentes afiados, fica por lá mesmo, no mar.
Ele perguntou se queria que limpasse, tirasse a pele. Recusei porque queria aprender a lidar com o peixe. Mas você pode aceitar caso não tenha outros interesses que não o gastronômico, já que tirar a pele grossa e escorregadia não é tarefa das mais fáceis. De fato, não é muito comum por aqui e foi a primeira vez que o vi na peixaria. E também a primeira vez que comi. Gosto destes peixões compridos, lisos e carnudos como congros, enguias, espadas. Ainda não experimentei muçum e piramboia, mas hei-de. De preferência se souber que vieram de águas limpas.
No guia de identificação "Peixes Marinhos do Brasil, de Marcelo Szpilman, aparece que a moréia-pintada (Gymnothorax moringa) pertence à ordem Anguilliformes e familia Muraenidae; pode ser encontrada em todo o Atlântico (no Brasil é rara no Sul); habita costas com rochas e corais e gosta de ficar entocada durante o dia para se alimentar de peixes, caranguejos e polvos à noite. Nervosíssima, fica ameaçando com a bocarra qualquer coisa que se aproxime de sua toca - a mordida dilacera, doi e infecciona. Veja aqui sua cara. Em compensação, sua carne é muito apreciada fresca ou salgada.

Descobri também em outros cantos que a carne é razoavelmente gorda e notei que depois de cozida se mantém suculenta mas ainda firme - e isto oferece um leque de opções na hora de preparar. Pode ser frita ou assada para ficar mais sequinha, mas preferi servi-la com molho mesmo tendo dourado os pedaços antes. O sabor é suave, lembra enguia. Pode ser preparada em postas ou em filés - algumas espinhas grandes da coluna que ainda restarem depois que os filés foram separados podem ser eliminadas com uma pinça própria.

Cigatera: o único senão é o potencial risco de cigatera, que ocorre quando se consome com a carne uma toxina produzida por uma microalga marinha chamada Gambierdiscus toxicus. Isto acontece com mais de 400 espécies de peixes que estão no topo da cadeia alimentar - peixes que comem outros peixes que se alimentam destas algas. Quando recifes corais onde vivem estas microalgas são perturbados (aquecimento, furações etc), pode haver uma aumento na produção destes microorganismos. Alguns peixes podem eliminar estas toxinas, mas não dá pra saber. Poucos minutos depois de ingerir o peixe contaminado, podem ocorrer vómitos, diarreia, sensação de formigueiro, ataxia e fraqueza, por exemplo. Felizmente a incidência é baixa (veja mais aqui); parece ocorrer mais no Indo-Pacífico, segundo esta tese e aqui em casa todos passam bem, obrigada. Como, certamente, vou comer moreias lá uma vez a cada morte de Papa, vou continuar arriscando. E, claro, se um dia for a Portugal, vou querer provar. Leia mais sobre a toxina, aqui.

O peixão pesou 2,5 kg, paguei por ele uma baguatela e deu para duas refeições para esta pequena família. O problema era o que fazer com ele. Como não achei nada nos livros a não ser identificação, resolvi arriscar. Primeiro fiz o que sempre faço quando não conheço um peixe - tirei um pedacinho, temperei com sal e pimenta-do-reino e dourei no azeite. Um cubinho joguei na água salgada. O sabor fica muito melhor quando o peixe é dourado na gordura. Mas não consegui ver este peixe distanciado de um bom molho e intuitivamente achei que as postas se sairiam bem numa sopa bem vermelha e quente.

E, hoje, com os filés fiz um prato rápido com molho de tamarindo, à moda indiana (googlei peixe mais os ingredientes que eu achei que deveria usar, incluindo minha polpa de tamarindo que comprei no Revelando São Paulo e me veio esta receita de curry, que não poderia ser mais adequada). Em menos de 40 minutos estava com o almoço pronto. Nas duas receitas, os pedaços de moreia foram previalmente dourados em gordura.

Como limpei

Cortei com tesoura a nadadeira anal e abri o peixe pela barriga. Tirei as vísceras e passei a faça no cordão de sangue junto à vertebra para rompê-lo. Esfreguei bem e enxaguei para tirar qualquer resquício sanguíneo.

Cortei a nadadeira dorsal e fui puxando a pele, desprendendo da carne com uma faca bem afiada.
Metade do peixe usei para fazer postas, mantendo a vértebra. Da outra metade tirei dois filés que usei para fazer o curry. As espinhas do dorso podem ser tiradas com uma faca afiada ou com pinça própria para isto.


Sopa de moreia com legumes
800 g de postas de moreia sem pele
1 colher (chá) de sal ou a gosto
1 pitada de pimenta-do-reino
1/4 de xícara de azeite
6 dentes de alho cortados ao meio, de comprido
6 mini-cebolas cortadas ao meio (80 g)
10 mini-cenouras (150 g) inteiras
1 pimentão-vermelho pequeno cortado em quadrados (130 g)
1 pimentão-verde pequeno cortado em quadrados (130 g)
1 talo de salsão picado (70 g)
1 alho-poró cortado em rodelas (70 g)
3 tomates inteiros picados em cubos
4 xícaras de caldo de polvo quente (ou caldo de peixe ou água) - usei o caldo daquele polvo
1 colher (sopa) de páprica defumada doce (pimentón de La Vera)*
1 colher (chá) de páprica defumada picante (pimentón de La Vera)
2 batatas médias descascadas, em rodelas grossas (400 g)
3 colheres (sopa) de salsinha
Tempere as postas de peixe com sal, pimenta-do-reino. Aqueça metade do azeite numa frigideira antiaderente e doure o peixe dos dois lados. Escorra bem e reserve. Em outra panela, aqueça o azeite restante e doure nele o alho e a cebola. Junte a cenoura, os pimentões, o salsão, o alho-poró e o tomate. Despeje o caldo de polvo, as pápricas e uma pitada de sal. Deixe cozinhar por 5 minutos. Junte as batatas e deixe cozinhar até ficar al dente. Junte o peixe e deixe ferver por 2 minutos. Prove o sal e corrija, se necessário. Se precisar, junte mais líquido para que fique com bastante caldo. Junte salsinha picada na hora de servir e, se quiser, polvilhe mais páprica defumada. Bom para comer com pão.
* Agora já pode ser encontrada no Santa Luiza. Mas, se não tiver, use páprica comum, que também vai ficar gostoso.
Rende: 6 porções



Curry de moreia (interpretação livre e solta daqui)
500 g de filé de moreia cortado em pedaços (tamanho da mordida) ou outro peixe de carne branca e firme
1 colher (chá) de sal
2 colheres (chá) de cúrcuma (açafrão-da-terra) em pó
3 colheres (sopa) de óleo
Meia cebola grande cortada em quadrados
1 pimenta verde ou vermelha; doce ou picante, picada (sugiro usar uma pimenta picante)
1 galho de folhas de curry*
1 colher (sopa) de feno grego
1 colher (chá) de sementes de mostarda
1 colher (chá) de cominho
1 colher (chá) de erva-doce
1 colher (chá) de grãos de coentro triturados
2 colheres (sopa) de pó de curry
3 colheres de polpa de tamarindo diluida em 300 ml de água (usei uma polpa concentrada e adoçada, mas, você também pode usar o suco de tamarindo ou a fruta cozida e passada por peneira - ou a pasta industrializada prensada, diluída em água)
Folhas de coentro a gosto
Tempere o peixe com sal e cúrcuma. Aqueça o óleo em fogo alto e doure aí os pedaços de peixe. Retire o peixe e coloque a cebola e a pimenta. Mexa e deixe murchar e ficar translúcida. Junte a pimenta e as folhas de curry. Quando as folhas começarem a secar, abaixe o fogo e junte o fenogrego, a mostarda, o cominho, a erva-doce e o coentro. Refogue, mexendo, até exalar um perfume de especiarias tostadas. Junte o pó de curry e mexa rapidamente. Junte o tamarindo diluído e deixe ferver por 2 minutos. Junte o peixe e cozinhe por mais 1 minuto. Prove o tempero e corrija, se for preciso, com mais sal e açúcar (a receita original não pede, mas minha polpa era adocicada e ficou excelente). Espalhe por cima folhinhas de coentro e sirva com arroz branco.
Rende: 4 porções




* Pode ser comprada a mudinha aqui.

13 comentários:

João Paulo (Metal) disse...

Mui interessante! Acompanho seu blog faz um tempinho e acho ele um dos melhores e mais inspiradores que já conheci! Nunca pensei em comer moréias quando nas minhas incursões pelo mundo subaquático. Fiquei bem curioso! Parabéns e continue seu trabalho sensacional!

L.P.Portugal disse...

Que mancada a minha, né Neide? E o pior é que eu sempre vejo peixes incomuns no mercado da Lapa. Não contava com essa sua "praia" da rua Herbart...

Luciane Moraes disse...

NOSSA! que prato gostoso - senti água na boca* vendo assim feito, agora eu como.

Neide Rigo disse...

Oi, João Paulo!
Acho que se estivesse numa incursão pelo mundo subaquático também não pensaria em comer uma moreia. Elas são tão bonitas nadando, né não?

Luiz, mancada nenhuma, imagine! Estes bichos cobroides são todos meio parecidos. Pois é, minha praia é na rua Herbart. Você também compra lá?

Lu, a carne é bem gostosa mesmo. Vale a pena experimentar.

beijos,
N

Inês Correa disse...

Uau, que exótico! Beijo pra ti.

Reiko Miura disse...

Oi Neide,
você me deixou com saudade dos meus tempos de Ceará. Em Quixaba, perto de Canoa Qebrada e Majorlândia, comi moréia assada com farofa de coco. Os pescadores - os que ainda persistiam por lá nos anos 80, salgavam a moréia e a secavam ao sol e depois assavam sobre brasas. Comi com uma farofa de coco. Quando minha comadre Lucia colocou uma montanha de farofa na minha frente, pensei "é louca". E não é que comi tudim? Foi uma das coisas mais saborasas que comi na minha vida.

bjs.

Neide Rigo disse...

Poxa, Reico, que luxo este prato com farofa! beijo,n

Buriti disse...

Aqui vai uma receita de Moreia Frita. Diz-me o livro de onda a tirei que é de Vila Do Bispo, Algarve, Portugal.

Como disse no comentário anterior, nunca comi moreia, mas agora fiquei tentado porque os pratos que apresenta são muito apelativos.

Receita

Corta-se a cabeça e o rabo da moreia. Abre-se pelas costas e tira-se a espinha do centro. Coloca-se num alguidar e faz-se uma moura com água e bastante sal, ficando de molho cerca de dez minutos. Tira-se, escorre-se e estica-se com canas pela parte da pele, espetando-as na carne da moreia. Pendura-se numa parede ao sol forte durante quatro horas. Depois corta-se às tiras no sentido da largura e frita-se em óleo quente. Acompanha-se com salada.

in Cozinha de Portugal-Algarve, Maria Odette Cortes Valente

Abraço
Fernando

Neide Rigo disse...

Oi, Fernando!! Que preciosidade! Obrigada. Quem sabe se um dia eu encontrar outra moreia e se estiver sol..
Um abraço,
N

Anônimo disse...

Por que será que não me apetece?
Um abraço,
Kaki

PSouza disse...

Neide, acompanho seu blog e já fiz muito sucesso graças às suas receitas. Me diz uma coisa, essa folha de curry que não existe aqui, pode ser substituída? Pode parecer loucura, mas um pouquinho de poejo não daria um sabor mais levinho?

Neide Rigo disse...

Penha,
talvez fique melhor se usar folhinhas de pitanga, que é mais aproximado.
O poejo vai dar um sabor diferente. Mas acho que fica gostoso também. Tente e me fale.

Um abraço,
N

Unknown disse...

zilda macedo. oi amigos eu nunca tinha comido moreia mas meu foi pescar e pegou varias quando eu a vi fiquei meio receosa mas ele disse que era gostosa eu fiz realmente ótima fiz fritinha muito boa vou fazer a muqueca.