quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Abobrinhas


Na estrada, no caminho para Intervales (Ribeirão Grande - SP)
"Chamam os índios Jerimu às abóboras-da-quaresma [Jurumu - [...] – o gargalo ou pescoço apertado. Abóbora de pescoço], que são naturais desta terra, das quais há dez ou doze castas, cada uma de sua feição [...]. Costuma o gentio cozer e assar estas abóboras inteiras por lhe não entrar água dentro, e depois de cozidas as cortam como melões, e lhes deitam as pevides fora, e são assim mais saborosas que cozidas entalhadas [...]."
Gabriel Soares de Souza. Tratado Descritivo do Brasil (1587).
São Paulo, EDUSP/ Companhia Editora Nacional, 1971 – p. 183-4.
Ontem foi um dia cheio. Teve degustação de azeites no consulado de Portugal e, à noite, no Sesc Pinheiros, palestra com o francês Herve This (do livro Les Secrets de la Casserole ou Um Cientista na Cozinha, como foi lançado aqui), que faz o papel de cientista maluco desvendando os mistérios da coagulação protéica no ovo ou da emulsão perfeita, só para ficar em alguns exemplos. A apresentação foi uma verdadeira performance com direito a pirotecnias, principalmente quando ele se paramenta como um serralheiro com grossas luvas e máscara de acrílico carregando um tambor de nitrogênio líquido usado para produzir microcristais de gelo instantâneos no sorbet de tomate. O vapor que se forma quando o gelo seco, a menos 100 graus, entra em contato com o ambiente mais quente é de impressionar. Por isto suas apresentações são sempre um show. Mas sua contribuição para a gastronomia molecular merece muito mais que estas poucas linhas que hoje lhe posso dedicar. O tempo agora é curto e volto a falar do cientista em breve. Dele e do azeite português, todos maravilhosos.

Fiquemos, por enquanto, nas abobrinhas. Pois hoje é Dia de Halloween e ainda que seja também Dia do Saci (ainda não pegou, mas vamos tentando), a abóbora pode continuar sendo o símbolo da festa. Copiemos o que é bom, afinal ela é farta em toda a América (vejam a citação acima, do Gabriel Soares, de 1587). Está certo que o descaso praticado por aqui contrasta com o prestígio de que goza na América do Norte (e em toda a Europa), mas sou adepta dela, afinal é barata, de fácil cultivo, apresenta grande produtividade e é resistente ao transporte e armazenagem (cheguei a conservar abóboras intactas, com o pedúnculo, por mais de 3 meses). Talvez por tudo isto o legume seja tratado com certo desprezo e muitas vezes usado só para a alimentação de porcos - a abóbora moranga chega a ser chamada abóbora-porqueira ou abóbora-de-porco.

Há diferenças de forma, sabor e textura entre as abóboras de pescoço e as do tipo morangas. Mas conhecemos todas como abóboras e, em comum, quando maduras, são riquíssimas em betacaroteno, precursor da vitamina A. Além disso, são pouco calóricas, têm fibras, minerais e vão bem em pratos doces e salgados. A planta oferece como alimento não só o fruto, mas também as sementes, que são salgadas, torradas e comidas como aperitivos; as flores e a cambuquira (folhas novas, brotos e gavinhas), usada em refogados ou sopas. A casca de todas elas são comestíveis e, em algumas variedades, como a cabochá, é ainda mais gostosa.


O difícil é encontrar uma cuscuzeira deste tamanho... Está é bem grande.
Cozinhando no vapor: para fazer abóbora recheada com camarão ou carne-seca já recorri a várias formas para pré-cozinhar o legume. No forno, na panela, no microondas. Só recentemente descobri que a maneira mais rápida de se cozinhar a abóbora inteira e uniformemente é no vapor. Colocada na parte de cima de uma cuscuzeira grande, com tampa, estará cozida em cerca de 30 minutos (ante 1 hora no forno). Em cubos, para qualquer fim, é ainda mais rápido. E conserva mais o sabor e valor nutritivo pois não perde nada para a água.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Geleia de tangerina e de toranja


De toranja, a vermelha, e de tangerina, a amarela.

No domingo o Marcos chegou aqui com uma sacola de tangerina que comprou no sacolão do Seu Emílio, parecida com a cravo que temos no sítio, cujo auge de produção se dá nos meses frios de maio e junho. Estava guardando na manga esta receita de geléia da minha mãe para quando chegasse de novo a época delas por lá. Mas, como nas metrópoles perdemos, infelizmente, a noção da safra das coisas, já que elas vêm de todo canto; e como este blog é lido por brasileiros e portugueses paises afora (pelo menos é o que mostram os acessos), sempre haverá algum tipo de tangerina no mercado em algum lugar do mundo. Assim, dou agora a receita que faz o maior sucesso e ainda rende uns trocados a Dona Olga.

Geleia de tangerina
1,5 kg de tangerina cravo, carioquinha, murcote ou qualquer outra
12 xícaras de água
6,5 xícaras de açúcar
Todas as cascas e sementes e um pouco do bagaço

Lave bem com bucha ou pano limpo as tangerinas. Corte ao meio e esprema o suco. Faça uma trouxinha de pano com todas as sementes e umas 3 colheres (sopa) do bagaço. Amarre bem e coloque numa panela com a água e o suco. Corte em tirinhas todas as cascas das tangerinas, dê uma lavada em água fria, escorra bem e coloque na panela. Ferva até o volume reduzir pela metade (para saber, meça com um palito, faça uma marca e acompanhe até chegar na metade da marca). Tire a trouxinha, espremendo bem. Junte, então, o açúcar e deixe cozinhar por mais ou menos 1 hora ou até chegar no ponto de geléia. Coloque em vidros fervidos e secos, feche bem e guarde na geladeira.

Para saber o ponto de geleia
Levante a geleia com uma colher de pau, a última gota deve ser grossa e demorar a cair;
tire um pouco, coloque num pires, deixe esfriar e empurre a superfície com o dedo – deve formar ondinhas;
apóie uma tigela pequena de inox sobre uma bacia de gelo e coloque um pouco da mistura sobre ela – veja se está com consistência de geleia.
A geleia quente é molenga e, quando fria, é gelatinosa. Se tiver dúvidas, desligue o fogo, coloque um pouco num copo e deixe na geladeira. Se ainda tiver mole depois de gelada é porque precisa de mais um tempo de fogo.

Geleia de toranja

3 xícaras de polpa (só os gominhos) de toranja
1 xícara de açúcar
3 cravos (opcional)

Esprema ligeiramente os gominhos de toranja, junte o açúcar e o cravo, se for usar, e leve ao fogo, mexendo sempre, até o açúcar dissolver e formar um doce cremoso (aqui não vale o ponto de geléia porque tem muita fibra).
O resultado é maravilhoso – para quem gosta de coisas amargas. Além da cor linda e do perfume cítrico muito acentuado, o sabor entre o amargo e o doce fica ótimo com pão neutro, queijos ou com carnes defumadas (neste caso, pode misturar umas rodelinhas de pimenta).
Veja também aqui no Come-se
Fartura de cítricos
Compota de toranja

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Jambu (awere-pepe, ewerepèpè ou éurepepe) em São Paulo


Os ramos novos, com folhas e flores, nasceram na água, onde coloquei só os galhos.

Já disse aqui que gosto de entrar em qualquer loja, sem amarras ou preconceitos, mesmo quando o assunto não me diga respeito. Sempre acabo achando alguma coisa de meu interesse, geralmente ligada ao ato de comer. Pena que nem todos os vendedores tenham a paciência que compradores como eu merecem. Mas não desisto.
Há mais ou menos um ano descobri no Mercado da Lapa uma banca de ervas para males e simpatias, banhos de Umbanda e oferendas de Candomblé. Fiquei perguntando para quê servia cada erva, qual era a preferida de tal orixá e tal. E antes que a mocinha me enxotasse com vassoura de guiné, entre tantas ervas de cheiro me deparei com uma de comer. Perguntei o nome e a emburradinha: oribepê. Fiz repetir, anotei. Perguntei se não era o jambu. Ela, sem paciência: oribepê! Como usa? Banho para Oxum. Para que serve? Para banho. Ah, e de onde vem? Vou lá saber. A despeito da coisa ruim, comprei, pois conheço jambu de longe e na cozinha sei pra que serve.
Quem nunca sentiu na língua aquele choque-tremelique da erva no tacacá ou no pato no tucupi, pelo menos já deve ter ouvido falar. A plantinha é a Spilanthes oleracea, também conhecida como agrião-do-brasil, agrião-do-norte, agrião-do-pará, jambuassu ou abecedária. É originária da América do Sul, embora haja relatos de cultivo também na Índia e na América Central. E a substância responsável por uma intrigante sensação de amortecimento e tremor na língua é o espilantol (a mesma usada pela Natura para o creme anti-rugas). O excesso de cocção ou fritura direta das folhas elimina este efeito, por isto as folhas devem ser aferventadas rapidamente ou consumidas cruas, em saladas. Muito rico em nutrientes, o jambu apresenta teores mais elevados de ferro e cálcio que o espinafre, parecido na textura macia das folhas.
Chegando em casa, coloquei logo os galhos com folhas murchas na água e vim correndo procurar no Google. Nada de oribepê, nem aproximações como uribebe, auripepê. Fui pela sonoridade até chegar awere-pepe, ewerepèpè e éurepepe. E também pimentinha d´água, o mesmo que jambu. Depois de alguns dias, os galhos, que adoram água, já estavam todos enraizados e com folhas novas. Aí foi só passar para a terra do quintal. Agora, com as primeiras chuvas da primavera, os jambus já começaram a ficar bem assanhados, com folhas graúdas e até flores. A próxima etapa é preparar o tucupi – fácil de fazer em casa. Para o tacacá é só um mais um passinho. Aguardem.

Agora, não me perguntem se já havia jambu na África antes de chegarem aqui os europeus; ou o que quer dizer, em iorubá, awere-pepe; nem sobre os mistérios das comidas de Santo, que eu também preciso aprender. Contribuições são sempre bem-vindas. Enquanto isso, axé!

Tucupi: sumo fermentado e temperado da mandioca.
Tacacá: espécie de sopa tomada em cuias, típica da região Norte, feita com o tucupi, um pouco do mingau de goma de mandioca, camarão seco e folhas de jambu.
Pato no tucupi: pato assado e cozido no tucupi com folhas de jambu.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Umeboshi


Aqui, prontinhas.

Aos poucos, vou cumprindo minhas muitas promessas feitas aqui no Come-se. Uma delas era dar a receita do umeboshi (ume é ameixa e boshi deve ser seca, desidratada), quando fosse época da fruta. Foi mais ou menos nesta época do ano que ganhei da Cris, uma amiga do Marcos, do aikido, uma caixa de umes. Meses antes tinha mencionado, para a mãe dela, dona Suyeka, minha intenção de aprender a fazer a conserva, uma de minhas paixões. Como ela é especialista no assunto, me prometeu dar sua receita e um pouco da fruta que planta no sítio quando estivesse no ponto. Pois em meados de outubro a Cris chegou aqui com uns 5 quilos das ameixinhas com o recado da mãe que era para eu começar o preparo já. Isto, para a conserva ficar pronta depois de uns 8 meses. E era domingo à noite. Meu Deus, o que vou fazer com tanto umeboshi? Quem mandou ser pidoncha? Vamos lá. A sorte é que duram anos (a acidez e o sal impedem qualquer outra forma de vida que não sejam algumas bacterias ácidos lácticas próprias da fermentação e que agem elas próprias como bactericidas de outras cepas patogênicas).

Elas são do tamanho de uma uva-itália. Quando maduras, continuam verdes - um pouco mais amareladas.

Receita de umeboshi
Lave bem as ameixas e seque-as com pano limpo. Coloque-as numa bacia com sal na proporção de 10% do seu peso. Apoie um peso por cima e deixe assim durante 3 dias. O sal vai desidratar as ameixas que ficarão imersas nesta salmoura formada com o próprio sumo – portanto, use uma bacia grande, com folga. Tire o peso, coloque as ameixas num vidro ou num pote de plástico com tampa e deixe em repouso em lugar longe da luz por 4 meses. Escorra as ameixas do caldo (não despreze) e deixe-as sob o sol durante 2 dias (recolhendo à noite). Devolva-as à salmoura e junte folhas preparadas de shisso (aquela folha de sabor mentolado, que dá a coloração avermelha às ameixas e ainda tem propriedades bactericidas e fungicidas). Para preparar as folhas: lave um tanto delas – eu coloquei umas 20 folhinhas, o que tinha plantado no quintal, tempere com sal a gosto e deixe de um dia para outro. Escorra, esprema bem as folhinhas e junte às ameixas. Logo depois, as umes já podem ser comidas, mas ficam muito melhores depois de mais uns 4 meses. Conserve em vidro tampado, na sombra.
Agora, depois de um ano, elas estão perfeitas. Assim que o vidro é aberto, vem um aroma maravilhoso de amêndoas amargas (da mesma família).

Use sal marinho grosso, se puder. Mas o refinado também serve.


Como peso, usei uma bacia com água e uma forma de pedra sabão. No outro dia, a salmoura havia extravasado e perdi parte dela - portanto, não faça como eu; deixe folga.

Sobre elas: estas ameixas, da família dos pêssegos, damascos, nectarinas e amêndoas, mesmo quando maduras, permanecem verdes e são sempre extremamente ácidas. Quanto mais verde, mais azeda e melhor para se fazer umeboshi. E é justamente esta acidez que lhe confere o poder alcalinizante. O excesso de acidez exerce um efeito rebote. Por isto é usado em azias, náuseas e para melhorar a digestão. Ou ainda para aliviar ressacas, afastar a fadiga e moleza (aqui o sal também tem o seu papel). O melhor é que é uma delícia, comida com gohan (arroz cateto branco à moda japonesa, sem sal), na tigelinha ou moldado como oniri – como a ameixinha no meio.
De lambuja, outra receita que dona Suyeka mandou.

Hatimitsu Ume

Lave as ameixas mais maduras (um pouco mais amarelada), seque e coloque-as num vidro. Cubra com mel e deixe na geladeira durante 6 meses. Na hora de servir, coloque num copo ¼ do mel de ume e o restante em água e gelo. A ume pode ser comida como compota. E o licor é como os de amêndoas.

O meu não deu muito certo porque eu não tinha mel suficiente para cobrir as ameixas e acabou mofando depois de uns dois meses. Mas a sorte é que ao longo do tempo, fui provando e era maravilhoso, como o mais fino licor de amêndoas.
Veja também aqui no Come-se:
Das flores à umeboshi

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Broinhas de fubá




Faz tempo que prometi dar à minha amiga Inês Correa a receita da broinha de fubá que lhe servi com chá no dia em esteve aqui. Faltou tempo de acertar a receita depois de tantas adaptações. E aqui está a versão final, ideal para este dia de chuva - e a Inês é daquelas fotógrafas que deliram com a paisagem molhada. Este tipo de pãozinho tem o mesmo sabor da enorme broa de padaria que comíamos no lanche da tarde com chá mate quando eu era criança. E era uma delícia, com a cozinha sempre reluzindo nos dias de faxina. Era o lanche reservado para as sextas-feiras. Nos outros dias, era um bolo caseiro ou pão francês. A receita original tirei de uma apostila com mais de 20 anos de uma vizinha que fez um curso no Sesi. Levava melhorador e gordura hidrogenada. Outra, de um curso que eu fiz, pedia melhorador e margarina. Mudei algumas coisas e colaboraram com a adaptação estes livros todos.


Broa de fubá

¼ de xícara de manteiga sem sal (50 g)
1 xícara de leite (240 ml)
3 tabletes de fermento biológico (45 g)
¾ de xícara de açúcar (135 g)
1 xícara de água morna (240 ml)
1 kg de farinha de trigo especial
300 g de fubá
1 colher (sopa) rasa de sal (15 g)
3 ovos
1 colher (sopa) de erva-doce
Leite (para banhar as broinhas)
Farinha e fubá em quantidades iguais (para polvilhar sobre as broinhas)
Modo de preparo
Derreta a manteiga com o leite, deixe amornar. Numa bacia, coloque o fermento, o açúcar e metade da água morna. Mexa até dissolver tudo. Junte a farinha, o fubá, os ovos e, aos poucos, o leite com a manteiga. Vá juntando o restante da água aos poucos, até conseguir um ponto em que consiga sovar com as mãos (talvez não use toda a água). Passe a massa para uma superfície enfarinhada e sove bastante até ficar uma massa lisa. Junte o sal e a erva-doce e sove mais até incorporar bem estes ingredientes. Cubra com pano e deixe crescer até dobrar de volume. Divida a massa em porções de 50 gramas, faça bolinhas e coloque em forma untada e enfarinhada deixando espaço entre elas. Pincele leite e polvilhe com farinha e fubá. Faça em cima um corte em cruz. Deixe descansar por mais meia hora e leve para assar em forno preaquecido a 180 ºC, por cerca de meia hora ou até dourar.
Rende: cerca de 40 broinhas

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Oveira, uma ova. Iguaria.


A franguinha é ligeira, saudável, mas não tem vocação para os ovos. Quando os botam, são pequenos, chinfrinzinhos. E, quando chocam, vêm uns pintinhos esmarridos, que viram frangos esgrovinhados a malhar e a comer como os outros, sem, no entanto, muito êxito no ganho de carne. Não tem jeito, é peso morto uma galinha assim, diz minha mãe. Vai pra panela. Ou seja, na roça, dá-se uma ajuda, em causa própria, à lei natural de Darwin – sobrevivam os melhores ou os que me fornecem o que quero. Quirera à toa não se gasta. Só por isto a pequena galinha virou galinhada, afinal não é comum sacrificar boas poedeiras. Aos temperos costumam ir os frangos.

O bom é que dentro de uma galinha minguta sempre há um oveiro (ou oveira) cheio de ovinhos que vão amadurecendo aos poucos a partir da gema. Pela raridade e sabor único destes ovos primordiais é que são considerados uma iguaria. Não se encontram para vender (pelo menos por aqui, não que eu saiba) nem rendem para toda a família (eu sempre chego primeiro). Dá para fazer muitos pratos com eles, mas no sítio cozinhamos no próprio molho da galinha, colocados no final no cozimento, junto com o fígado. É para comer de joelhos.



terça-feira, 23 de outubro de 2007

Oficina de chás aromáticos


Fotos: Marcos Nogueira
No domingo dei uma oficina de chás (infusões e não chá Camelia sinensis) com ervas aromáticas e especiarias no curso de Fitoterapia para médicos da Unifesp. Enquanto o Prof. Paulo Chanel ensinou fórmulas de tintura e creme com ervas medicinais, mostrei como fazer infusões e decoctos não só pelo valor terapêutico, mas pelo aspecto nutricional, lúdico e prazeroso destas bebidas, que podem substituir com vantagens sucos industrializados, refrigerantes, leites aromatizados e super doces (muitas vezes toma-se mais leite que o necessário e com ele ingere-se mais açúcar também), ou parte do cafezinho.
Estes chás aromáticos feitos com cascas, botões, frutos, folhas, raízes e flores que normalmente usamos na cozinha podem ser tomados no dia-a-dia, assim como consumimos os temperos. A quantidade de princípio ativo das plantas nos chás é muito pequeno, portanto seus efeitos colaterais, quando há, também o são. Porém, o consumo em pequena quantidade e de forma contínua das especiarias e ervas aromáticas, na forma de chás ou de temperos, ao longo do tempo têm um papel fundamental na dieta pois elas contêm substâncias benéficas que nos protegem de doenças e combatem os efeitos dos radicais livres, melhorando a resposta imune e combatendo infecções. Sem falar que algumas melhoram o ânimo, outras acalmam, facilitam, a digestão, só para citar algumas funções.

Se nos lembrarmos que a Natureza tem lá boa dose de razão em quase tudo, poderíamos pensar na seleção de plantas saborosas e/ou aromáticas como de uso diário (cebola, alho, tomilho, orégano, manjericão, erva-doce, camomila, canela, cravo, hibisco, capim-santo, melissa, mentas etc) e nas muito amargas e intragáveis para uso terapêutico específico (carqueja para males de garganta, por exemplo). Esta é uma forma de nos guiarmos mais ou menos segura.
Para a oficina levei várias folhas aromáticas do meu quintal e que podem combinar entre si para fazer bebidas quentes ou geladas - para tomar como refrigerante (sem corantes, conservantes, acidulantes, aromatizantes e outros antes). Podem ser adoçadas ou não. Gosto de usar diferentes tipos de mel, com sabores específicos (os de abelhas indígenas, sem ferrão, são levemente ácidos e ficam ótimos com especiarias). Levei ainda ingredientes com antocianina - o mesmo pigmento e antioxidante do vinho. Milhos roxos não têm sabor nem acidez, mas têm antocianinas. Já hibiscos e cascas de jabuticaba têm antocianinas e ainda conferem acidez agradável. O tom vermelho destes chás é encantador, principalmente para crianças.

Na chaleira, canto direito, o chá bem escuro (e escureceu ainda mais por causa da cestinha de metal que usei - o ideal é passar tudo numa peneira de plástico); na minha mão a mudança de cor, de baixo para cima, quando pinguei algumas gostas de limão.
Aqui o chá de milho roxo acidulado com a cor avivada
O ponto alto da oficina foi quando mostrei o chá de milho roxo (com cravo, canela e folha de tangerina) com tonalidade bem escura, quase azul, e pinguei umas gotas de limão. O chá muda de cor imediatamente quase como um medidor de PH. A Antocianina é vermelha em meio ácido e azulada em meio alcalino. Como o hibisco e a casca de jabuticaba já são ácidos, o vermelho é natural. Mas o milho é mais alcalino, sendo necessários o limão (ou pedaços de maçã verde) para avivar a cor.
Combinações: misture ao seu chá de ervas aromáticas de todo dia: cubinhos de maçã-verde; pedaços de pêssego; canela; cravo; anis estrelado, erva-doce, cardamomo; folhas de cítricos; flor de laranjeira; casca seca de laranja; limão ou tangerina (quando tiver produtos orgânicos, seque as cascas no sol e guarde em vidros).
Para melhorar a cor: hibiscos (fruto da vinagreira e não o hibisco ornamental), cascas secas de uvas escuras e jabuticabas (orgânicas e lavadas, sem a polpa, também secas ao sol). Estes chás podem ser usados para fazer gelatinas, sagus e "vinhos quentes" sem alcool com gengibre, cravo, canela e maçã.

Sachês de chás aromáticos: muitas vezes a cor e o aroma são conseguidos à base de corantes e aromatizantes artificiais. Leia sempre o rótulo e dê preferência à erva sem sachês, pois estes usam papéis branqueados que podem comprometer o sabor do seu chá. O melhor mesmo é fazer sua própria mistura (e ainda economiza papel).

Tempo: frutos e sementes duras devem ser fervidos na água por cerca de 10 minutos. Folhas frescas devem ser colocadas na água fervente, com o fogo desligado, e deixadas em infusão por 10 minutos, com a chaleira tampada.
Infusão ou decocção com leite: em vez de perfumar a água, use leite que será usado para sobremesas ou mingaus. Cardamomo, anis-estrelado, casca de tangerina, folhas de manjericão cheiro-de-anis, capim-santo, hortelã ou melissa são boas opções.

Recipiente: use de preferência chaleira de material inerte como vidro, porcelana ou ágata. Depois de pronto, conserve o chá em vidros tampados, na geladeira, por até 2 dias.

Para crianças: gelado, o chá pode ser levado no lanche de escolares. Em vez de suco industrializado super doce ou light, uma fruta. Para beber, chá adoçado com um pouco de mel. Assim, além de oferecer à criança um alimento saudável e protetor, livre de todos os "antes" dos industrializados, dá para ir educando o paladar dos pequenos para um sabor menos doce.

Veja também postagens anteriores do Come-se:
Refresco e chá de jabuticaba
Plantas, colher, comer

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

E a canjiquinha?


Canjiquinha com pernil e taioba

De Bárbaras Eliodoras já bastam as que pipocam no eixo Rio-São Paulo. Portanto, limito-me à canjiquinha. E, claro, alguns elogios à peça Um Boêmio no Céu (direção de Amir Haddad), que estreou no Sesc Vila Mariana na sexta-feira. Afinal, nem o mais embrutecido dos homens consegue ficar indiferente às engraçadas malandragens confessadas a São Pedro pelo boêmio de alma Malasarte (José Mayer), recém-chegado ao céu. E também porque o lindo anjo em corpo de índia é vivido pela minha amiga Kátia Brito (índia perfeita, descendente de marajoaras) que, apesar da pouca fala, tem presença marcante do começo ao final do espetáculo.
Mas não fosse pela canjiquinha não estaria falando da peça aqui, que não é o meu papel. Há um mês já tinha visto no Rio, no último dia, com casa cheia. A canjiquinha não me chamou tanto a atenção, já que tudo era para mim a excitação da surpresa: o delicioso texto inédito do nosso poeta do sertão nordestino, Catullo da Paixão Cearense (1863-1946), ele próprio um trovador boêmio e extravagante. E o José Mayer cantando e tocando, e muito bem, quem poderia imaginar? Agora, na estréia em São Paulo, prestando mais atenção, impressiona a atualidade. À primeira vista os diálogos soam até como uma adaptação à época atual, mas não. O roteiro é fiel e cai, aqui e agora, como uma profecia, já que o texto tem mais de 60 anos. E, o melhor: é engraçadíssimo. (numa semana em que vi na 31ª mostra de cinema tantos filmes de chorar – não de ruins, mas de tristes mesmo, foi um alívio poder chorar de rir).
Pois bem, falo da canjiquinha. É isto que me interessa aqui, principalmente porque ando na fase de resgatar pratos brasileiros esquecidos ou desconhecidos (aliás, a mulher do Zé, a Vera Fajardo, também resgatou este texto do Catullo, nunca antes encenado). É que em certa altura do texto, entre os prazeres da vida mundana, o Boêmio lista as delícias servidas na festa de São Pedro: ".. os doces, a vinhaça, o leitãozinho com a farofa amarela bem tostada, tendo na boca um túmido limão. E a batata assada na fogueira, a cana assada, a tenra macaxeira, o bolo de São João, o sarrabulho e a panelada. E a canjiquinha? (pergunta São Pedro, vivido por Antonio Pedro Borges). Doce e perfumada preparada por velhas e matronas. E o gostoso e mimoso arroz de forno estrelada de belas azeitonas....”

Certamente a canjiquinha citada é o prato que conhecemos no sul e sudeste como curau ou mingau de milho verde que, na região nordeste, ainda leva coco. Nada a ver com a nossa canjica – milho sem pele e sem o gérmen, branco ou amarelo – ou com a canjiquinha ou quirera - o milho sem pele ou germe, quebrado em pedacinhos como grãos de trigo de quibe. Mesmo assim foi esta canjiquinha salgada que fiz para minha amiga Kátia no almoço de sábado. Com costelinha e ora-pro-nobis refogada. E uma caipirinha de uvaia, que ninguém é de ferro.
Como não tirei foto no dia ou sequer medi ingredientes, refiz hoje o prato no almoço para registrar tudo direito e fotografar. Com pernil em vez que costelinha; e taioba, em vez de ora-pro-nobis. Mas, tanto faz. Mudo sempre, vão se acostumando. Não respeito nem minhas próprias criações. Aliás, que criação? é conhecimento ancestral refogar e cozinhar as coisas, botando nelas algum alho e pimenta. Foi o que fiz. Mineiros gostam de canjiquinha molhada, com a costelinha junto. Eu gosto assim, feito arroz, com a costelinha à parte. Às vezes cozinho até na máquina de arroz, na proporção de 1 parte de canjiquinha, para 2 de água. Mais sal, cebola e manteiga. É uma alternativa ao arroz de todo dia. E também vai bem com feijão, frango com quiabo, carne ensopada.
Outros pratos citados
Sarrabulho: é o mesmo que Sarapatéu: picadinho de vísceras e de sangue talhado.
Panelada: cozido de mocotó e vísceras.
Cana assada: era servida também no São João baiano. Parece que sumiu, pois minha amiga baiana e consultora para assuntos nordestinos Silvia Lopez, sua mãe Dona Solange e sua empregada do interior, desconhecem tal iguaria. Assim como a amiga de São Luiz do Maranhão, Márcia Manir, que também ignora. Fiquei curiosa para saber se ainda existe e como é feita. Se alguém souber, por favor me fale. Se não, vou testar no sítio no próximo feriado do jeito que achar melhor: rodelas finas embrulhadas em folhas de bananeira, assadas na brasa.

Cajiquinha ou quirerinha
Ingredientes
2 colheres (sopa) de banha de porco (ou azeite, se a culpa o atormenta)
3 dentes de alho bem picado
Meia cebola bem picadinha
Meio pimentão verde picadinho
Meio pimentão verde picadinho
2 xícaras de quirerinha lavada (ou canjiquinha, milho quebrado)
2 colheres (chá) rasas de sal
4 xícaras de água quente
Modo de preparo: numa panela de barro ou de ferro, aqueça a banha e frite nela o alho e a cebola até dourar. Junte os pimentões e refogue até murchar um pouco. Adicione a quirerinha e refogue com o o sal. Coloque a água quente e abaixe o fogo assim que começar a ferver. Tampe a panela e cozinhe em fogo baixo por cerca de 30 minutos ou até que a água seque e a canjiquinha esteja cozida e macia. Deve ficar com consistência de um risoto cremoso.
Rende: 6 porções
Para a costelinha
Ingredientes
2 kg de costelinha de porco
5 dentes de alho socados com 1 colher (sopa) de sal e 2 pimentas dedo-de-moça sem sementes e suco de 1 limão.
3 xícaras de água
Modo de preparo: misture todos os ingredientes, incluindo a água, e deixe numa tigela para pegar gosto, por mais ou menos 3 horas. Coloque tudo numa panela e deixe cozinhar até a água secar. Deverá formar no fundo da panela uma camada de gordura, que deverá ser suficiente para dourar a carne. Deixe dourar, salpique alguma erva por cima (alecrim ou cebolinha, por exemplo) e sirva com a quirerinha e alguma verdura refogada.
Rende: 6 porções
Nota: esta forma de cozinhar carne de porco aprendi com uma mineira e dá muito certo porque, enquanto a carne cozinha, um pouco de sua gordura derrete e serve para dourar a carne quando ela já está bem macia. Se precisar, é só ir juntando mais água quente, aos poucos. Hoje estava com pressa e fiz pedaços de pernil na panela de pressão, do mesmo jeito, só que com menos água. Foi rapidinho.
Ora-pro-nobis ou taioba refogada para acompanhar
As folhas inteiras de ora-pro-nobis, refoguei-as no azeite com alho e sal.
As de taioba, piquei-as e passei em água fervente salgada por 1 minuto (tem ácido oxálico e pode picar um pouco se não fizer isto) antes de refogar no azeite com alho. Simples assim.


Tenra macaxeira (mandioca aqui no Sul e Sudeste), descascada e cozida na feira do Ceagesp

Batatas-doces assadas na fogueira, com amendoins torrados, de Fartura
Serviço
Um Boêmio no Céu
Teatro Sesc Vila Mariana
Rua Pelotas, 141. Telefone: 5080-3000.
De 19/10 a 18/11. Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h
De R$ 7,50 a R$ 30,00

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Assado de panela com mandioca da Dona Olga



Como disse ontem, esta semana comi a la gordaça a comidinha da mãe que, a este momento, já retorna a Fartura com saudade das galinhas. Nunca tinha feito esta carne de panela que a gente sempre come no sítio. Mas agora acho que aprendi. Mandioca tem de monte por lá e, diferente das batatas que, se não comidas imediatamente, ficam com gosto de marmita, elas não só se mantêm inalteradas por 2 ou até 3 dias, como ainda congelam muito bem. Tenho montes de mandiocas já cozidas no freezer – para sopas, purês, bolinhos ou para acompanhar carnes como nesta receita. E a carne tem que ser braço para ficar boa - é uma carne barata, mas muito saborosa e razoavelmente magra - com algum colágeno interno que a deixa macia e capa fina de gordura, que a deixa crocante por fora. Ai vai:

Aqui, temperada, na panela para dourar. O óleo não deve ser preaquecido.
Assado de panela com mandiocas da Dona Olga
Ingredientes
1 pedaço com cerca de 1,5 kg de braço (parte do acém)
1 colher (sopa) rasa de sal
5 dentes de alho picados em cubinhos
5 pimentas cumari (ou outra ardida)
2 colheres (sopa) de óleo
1 kg de mandioca em pedaços cozida em água salgada

Modo de preparo
Algumas horas antes do preparo ou no dia anterior, fure a carne com a ponta de uma faca e espalhe sobre ela o sal, com o alho e a pimenta. Deixe na geladeira, dentro de um saco plástico coladinho à carne (para que o tempero não se disperse). Coloque numa panela de pressão o óleo e a carne (é importante colocar a carne sobre o óleo frio para ela não encolher, ensina Dona Olga). Leve ao fogo alto e deixe dourar de todos os lados. Junte 2 xícaras de água fervente, tampe a panela e deixe cozinhar em fogo baixo por 20 minutos (depois que a válvula começou a chiar). Desligue o fogo e abra a panela quando já não tiver mais pressão. Veja se a carne está cozida. Do contrário, cozinhe mais um pouco, juntando água fervente se a panela estiver seca. Se a carne já está molinha, deixe secar todo o caldo e vá virando a peça sobre o óleo que ela soltou, até ficar bem douradinha. Tire a carne, passe para uma travessa e junte as mandiocas cozidas à panela. Chacoalhe com cuidado para que fiquem impregnadas com a gordura. Sirva carne com as mandiocas - se quiser, polvilhe salsinha bem picada sobre elas.

Rendimento: 6 a 8 porções

Depois de cozida, tem que deixar dourar mais.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Comida de mãe ou galinha d´angola com polenta branca



Comida de mãe sempre conforta e nesta semana estou tirando a barriga da miséria com Dona Olga aqui em casa. Ontem teve assado de panela sequinho por fora e suculento por dentro que só ela sabe fazer, servido com pedaços de mandioca no lugar das tradicionais batatas. Amanhã, quem sabe, darei a receita. E hoje, tivemos angola (capote, cocá, angolinha, galinhola, conquém) que trouxemos do sítio, com carne firme e sabor sem igual. Combina muito com polenta e dona Olga ainda acrescenta o indispensável feijão – na minha casa era impensável comermos polenta sem feijão. E, embora pareça estranho, fica muito bom. Usamos o feijão roxinho quilombola, da comunidade de Teixeiras, Mostarda-RS, comprado na Feira de Agricultura Familiar que aconteceu junto ao Terra Madre, em Brasília (forma pouco caldo, mas é muito saboroso).

Segundo Dona Olga que é expert em criar e cozinhar galinhas, perus, galos e angolas, tomate não combina com estas aves de terreiro porque a acidez briga com a personalidade forte da carne. Então, para dar cor, tem que ser colorau, que não altera o paladar, mas estimula as vontades. E nada de dourar a cebola (alho pode) com a carne – uma atrapalha a outra e a cebola ainda se desfaz até o final do cozimento.O certo é adiciona-la só quando a carne já está cozida, para conservar o sabor e a forma. O mesmo vale para o pimentão, que é opcional. E o cheiro-verde, só no final, claro, para perfumar. Cheia de manhas esta minha mãe.


A carne é mais firme e mais escura que a da galinha. Não se deixe impressionar pela pele enegrecida. É normal.
Galinha d´angola com polenta branca
Ingredientes
4 colheres (sopa) de óleo
4 dentes de alho socado
1 colher (sopa) rasa de sal
1 angola de mais ou menos 1,5 kg limpa e cortada em pedaços
1 colher (sopa) rasa de colorau (urucum em pó)
1 colher (chá) de pimenta vermelha seca ou 2 pimentas dedo-de-moça, sem sementes, picadas
½ pimentão vermelho pequeno picado em tirinhas
1 cebola picada em rodelas
1 xícara (chá) de cheiro-verde picado
Modo de preparo
Numa panela de ferro aqueça o óleo e doure o alho. Junte os pedaços de angola (reserve o fígado) e o sal e refogue até dourar, mexendo de vez em quando, com cuidado. Junte o colorau e mexa. Coloque água quente, aos poucos, à medida que for secando, até a carne ficar macia (40 minutos ou mais, dependendo da idade da ave). Acrescente o fígado reservado, a pimenta, o pimentão e a cebola. Cozinhe por 10 minutos, juntando mais água se for preciso, para formar um molho. Desligue o fogo e acrescente o cheiro-verde.

Rende: 6 porções
Sirva com polenta branca, que todo mundo deve saber fazer (dissolva 2 xícaras de fubá branco - ou amarelo, se preferir - em 10 xícaras de água morna e leve ao fogo, mexendo, até engrossar; abaixe o fogo e deixe cozinhar, sem mexer, por 1 hora. Tempere com manteiga e sal a gosto).

Este é o pratinho da Dona Olga: tem que ter feijão e um verdinho (aqui, catalonha no azeite e alho)

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Bijajica



Já tinha ouvido falar em cuscuz de toda sorte: de tapioca, de massa de mandioca, de arroz, de carimã ou puba, de fubá e outros, mas a bijajica foi uma descoberta excitante para mim, porque nunca imaginei algo parecido. Aconteceu no Terra Madre, durante o Intercâmbio de Saberes e Sabores, quando nos encontramos com representantes das comunidades de alimento do Slow Food, que puderam nos mostrar seus produtos.

De Garopaba e Paulo Lopes -SC veio este cuscuz de massa de mandioca com amendoim cru e açúcar mascavo que, à primeira vista, mais se parece um pumpernickel. Mas, no sabor, é infinitamente melhor. Nilcélia Mara Pessoa me passou todas as dicas de como fazer. A massa de mandioca usada vem dos engenhos na época em que se faz farinha – entre abril e junho. Mas, quando cheguei ao sítio e quis aproveitar as mandiocas de lá, vi o tamanho da minha ignorância. Não sabia se deveria sacrificar o sumo da mandioca ou não. E como na dúvida, pró réu, a raiz foi polpada da espremeção e deu no que deu: uma coisa liguenta a que meu pai torceu o nariz. O Marcos até que gostou, mas não tinha nada a ver com a delícia que eu tinha experimentado. Chegando aqui, liguei para mãe da Nilcélia, Dona Maria de Lourdes Lopes de Souza, autoridade em bijajicas. Foi como vê-la fazendo e assim ficou fácil. Tenho certeza de que ela ficaria orgulhosa da eficácia da aula (pelo menos eu fiquei com meu aprendizado). Segundo ela, a massa que vem das casas de farinha chega bem sequinha e pode ser congelada para a entressafra. O que ela não sabe é de onde vem o costume de se comer bijajica, que se estende por vários municípios vizinhos. Tampouco, a origem do nome, homônimo de outra iguaria catarinense – um bolinho de polvilho com ovos e açúcar, frito em banha. Em minhas pesquisas também não encontrei nada a respeito. Se alguém souber, por favor nos conte.

A versão que fiz foi a doce, como a que degustei em Brasília, mas também pode-se excluir o açúcar e acrescentar mais sal. E, em vez de cravo, pode temperar com gengibre, erva-doce, canela.

Quentinho, com manteiga, é divino, lembra biscoito de amêndoas com textura de pumpernickel. Segundo Dona Lourdes, vai bem também com manteiga, coalhada, nata ou doces. Depois de frio, é bom embrulhar em plástico para não ressecar. Ela me deu ainda receita de cuscuz que, diferente do que conhecemos como tal, é um biscoito super crocante resultado, aí sim, de um cuscuz de massa de mandioca com farinha de milho cortado em fatias finas que são tostadas no forno. Mas isto é outro assunto, porque ainda quero testar.

Receita de bijajica da Dona Lourdes

Ingredientes: massa de mandioca, amendoim, açúcar mascavo, sal e especiarias. Abaixo, a goma e o sumo da mandioca espremida

500 g de massa de mandioca ralada, bem espremida (talvez seja necessário 1 kg de mandioca).
500 g de amendoim vermelho cru triturado (usei processador, mas pode ser no liquidificador ou máquina de carne)
250 g de açúcar mascavo
1 colher (chá) de sal (ela disse uma pitada, mas uma colherinha rasa está de bom tamanho para o equilíbrio)
12 cravos triturados (poderia até ser mais para esta quantidade; também medida minha)

Misture bem todos os ingredientes e coloque, sem apertar, na parte de cima de uma cuscuzeira ou panela de vapor, forrada com pano de algodão. Cubra com as pontas do pano, feche a panela e cozinhe por mais ou menos meia hora ou até sentir com os dedos que a massa está cozida e grudadinha. Aí é só virar e desenformar. Se quiser fatias perfeitas, espere esfriar um pouco para cortar.

Rende: 15 porções

Considerações

Minha cuscuzeira é pequena, então moldei uma bijajica na forma de sushi - perdoem-me a heresia - e cozinhei no banho-maria, do mesmo jeito. Ficou com mais cara de pumpernickel ainda.

Espremi a mandioca ralada no meu tipitizinho de brinquedo, que comprei do Clayton, de Bragança-PA. Apesar da função meramente decorativa, a miniatura funcionou. Deixei o suco da mandioca em repouso até sedimentar o amido (goma, fécula, polvilho). Usei o líquido (que temperei como tucupi), para cozinhar arroz. E a goma me rendeu uma bela tapioca, que Ananda devorou.


Passei a mistura por peneira para ficar mais aerada (Dona Lourdes ressaltou bem: não pode apertar a massa).

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Cubeta de dentista para manteiga de ervas finas


Deve haver muita gente como eu, que enxerga o quer encontrar nos lugares mais improváveis. Por isto gosto de fuçar em lojas de produtos agropecuários ou de material para construção em cidades pequenas. Ou em qualquer loja de itens farmacêuticos ou para cabeleireiros. Sempre encontro uma utilidade diferente daquela proposta para determinado produto. E, é claro, quase sempre para uso na cozinha. Às vezes sei do potencial da quinquilharia, mas não consigo descobrir em pouco tempo e ela fica guardada anos até que eu encontre uma utilidade. Ah, sabia que isto iria servir um dia! Quando vou ao dentista, em vez de ficar de olhos fechados para evitar olho-a-olho com quem cutuca a bocarra, passeio com eles bem abertos por cada canto do consultório, até que encontre algum mimoso almofariz de vidro, uma marmitinha de inox, um medidor charmoso ou uma simples espátula. Fazia tempo que eu vinha namorando esta cubeta de silicone flexível da minha dentista e vizinha Yara, que usa para homogeneizar alginatos e gessos. Perfeita para misturar manteigas, dissolver um cubinho de fermento ou diluir farinhas, pensei. Pedi que acrescentasse uma ao seu próximo pedido à Dental. Não foi preciso. Hoje, logo cedinho, quando cheguei para a consulta, ganhei de presente com direito a escolha de cor e voltei correndo para testar com manteiga, que ficou para a carne do almoço.

Para a manteiga: é só misturar ervas picadas (usei alfavaca, segurelha, manjerona, manjericão e estragão) à manteiga em ponto de pomada. Depois pode enrolar e congelar, se não quiser usar no dia. Na hora de servir, basta cortar uma fatia e colocar sobre o alimento quente (batata, mandioca, pão, peixe, carnes).

Para mais opções de cubeta,
veja aqui

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Uvaias


Nosso pezinho de uvaia no sítio já tem lá seus 5 anos e esta foi a primeira grande produção. As outras, sempre minguadas, foram comidas por formigas. Não é muda enxertada nem nada. Levei para lá um pezinho plantado no jardim por algum sabiá-laranjeira ou por descuido nosso. Aliás, aqui em casa devo ter uns 3 ou 4 pezinhos de uvaia nascidos assim. Como disse Nina Horta uma vez, um pomar cuspido. Afinal, nunca jogo no lixo sementes de cítricos, pitangas ou uvaias quando os como olhando para algum verde. Então, de vez em quando, transplanto alguma arvorezinha no sítio porque meu quintal é minúsculo.

Conheci a fruta quando estudava na Puc, apresentada pelo meu amigo Celso Fioravante, que levava jaca do Mercadão para comermos de lanche. Na fresta do páteo crescia uma uvaieira e trepávamos na árvore para incrementar nossa merenda. Foi amor à primeira vista. É uma das frutas mais perfumadas e saborosas que conheço. Depois disso, morei durante 7 anos numa casa com um lindo pé de uvaia no jardim, que nos dava duas fartas cargas ao ano, de modo que nosso freezer estava sempre cheio de polpa e geléia não nos faltava. Uma das safras coincidia com o aniversário da Ananda, cuja festa era abastecida com geladinho e suco de uvaia para as crianças e batida para os adultos. Agora tenho aqui num vaso uma arvorezinha sofrida, que me dá a alegria dos frutos só uma vez ao ano. Ela está atrasada. No ano passado a esta época a chuva já tinha chegado e alguns frutos já estavam maduros. Agora, só um único frutinho verde anuncia outros miúdos que ainda vêm chegando.


Há exato um ano meu jardim já estava mais verde do que está hoje. E a uvaieira, carregada.

Não sei porque temos nos supermercados cerejas chilenas, mas não uvaias brasileiras. Não conheço nenhuma produção comercial de frutinha, apesar da fácil germinação das sementes. Mas a gente chega lá... Por enquanto vamos pegando dos quintais e sítios alheios quando não podemos comprá-las ou ter um pezinho só nosso (o meu, já tenho).

Sobre a uvaia: a Eugenia pyriformis Cambess é da mesma família da goiaba, da pitanga e da cereja-do-Rio-Grande, a das Mirtáceas. É nativa do Sul do Brasil, mas pode ser encontrava em vários Estados. E, enquanto a laranja tem em média 50 mg de vitamina C, a uvaia tem 200 mg. Tem sabor ácido e doce, ideal para compotas, sorvetes e geléias.

Congelei um tanto - a polpa, sem sementes, congela super bem, para sucos e tudo o que dá pra ser feito com ele. E, com o restante, fiz um vidrão de geléia. Aí vai a receita.


Se forçar a vista, verá na parte de cima da foto uma única uvainha do mesmo vaso mostrado na foto anterior. Só para ilustrar, pois as uvaias da geléia vieram de Fartura-SP, onde é tudo mais farto.

Geléia de uvaia

600 g de polpa de uvaia, sem sementes
1 xícara de água
500 g de açúcar cristal orgânico

Bata a polpa com a água no liquidificador. Passe por peneira e junte o açúcar. Leve ao fogo numa panela grande e deixe cozinhar até atingir o ponto de geléia (ao levantar a colher, a última gota demora um tantão para pingar – este é só um dos critérios para determinar o ponto ideal). Coloque em vidros aferventados e secos e conserve na geladeira.

Rende 1 vidro de 800 g.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

COME-SE QUIETO NO FERIADÃO


Nossas bichinhas de estimação em Fartura. Lá vamos nós!

Feijão canapu


O louro é homenagem à leitora Verônica, que me trouxe um galhinho do seu quintal. A folha já entrou no papo.

Desde que voltei do Terra Madre a comida aqui em casa tem sido feita com os ingredientes que trouxe de Brasília. Queria ter mais tempo para fazer pratos elaborados ou como manda a tradição, mas havia tantos chefs lá, deixo para eles a tarefa.

Tanto o feijão canapu, de Campo Grande do Piauí, quanto o arroz vermelho, do Vale do Piancó, fazem parte do projeto de Fortalezas do Slow Food, criadas para proteger produtos artesanais de excelência e apoiar pequenos produtores através de várias ações a fim de garantir o futuro das comunidades locais. São alimentos cultivados sem uso de defensivos agrícolas e de maneira ecologicamente sustentável. Além disso, os dois produtos estão fortemente ligados à identidade cultural da população que os produz.

Sobre o feijão canapu
A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) tem catalogadas 300 variedades de feijão-de-corda, conhecido como caupi ou feijão-vigna - o nome científico é Vigna unguiculata. O canapu é uma destas variedades, trazida da África Oriental, no século 16, pelos escravos.
Sobre o feijão-de-corda, para quem tiver interesse (auto-plágio de um texto que fiz para a coluna de cozinha da revista Caras)

O termo tem a ver com o tipo da planta trepadeira, diferente dos outros feijoeiros que crescem em moitas. Por isso também os maranhenses o chamam de “trepa-pau”. No Pará ele é “quebra-cadeira”, uma referência à posição curvada em que ficam os trabalhadores durante a colheita. Já o nome caupi tem origem no termo inglês cowpea - por ser usado também como forragem -, que serve para denominar tanto o feijão-de-corda quanto o feijão-fradinho, pois ambos são uma só espécie, de variedades diferentes. Os feijões mais populares (carioquinha, roxinho, rosinha) são do gênero Phaseolus e apresentam vagens menores.

Em comum, as variedades de feijão-de-corda são anuais e têm como características a rusticidade, ser tolerante a seca e solos pobres e suportar bem estresses térmicos de regiões onde a temperatura na superfície do solo pode atingir mais de 40 ºC. Por isso é uma cultura bem adaptada na região semi-árida do nordeste brasileiro, onde representa a principal cultura de subsistência de pequenos e médios agricultores.

A vantagem em relação aos outros feijões, além da rusticidade da cultura, é que estes feijões podem ser usados em todos seus estágios. Embora não seja comum por aqui, as folhas mais verdes e tenras são importante fonte alimentar na África e podem ser preparadas do mesmo jeito que qualquer outra verdura. Nunca me deparei com um pezinho deste feijão, mas vou tentar plantar. E assim como os japoneses consomem a vagem de soja verde ou como comemos nossas vagens verdes sem nome, neste caso também as vagens imaturas podem ser usadas, freqüentemente misturadas a outros vegetais. E as sementes verdes são cozidas como os grãos frescos de ervilhas.
Como o que eu trouxe do Terra Madre foram os feijões secos, preparei como feijão comum junto com carne de paleta, na falta de uma carne seca, que deve ficar bem melhor. Iria bem ainda um pouco de manteiga de garrafa (a minha estava rançosa). Dizem que ele tem sabor com notas de grama recém cortada, palha e nozes. Infelizmente preciso ainda aprender a degustar feijões canapus. Estou a léguas de distância deste refinamento, pois achei o sabor delicioso e muito parecido com o feijão de corda que costumo comprar aqui no Mercado da Lapa (vai ver é um canapu e eu não sabia). Mas, só em saber que ainda conservamos estas variedades de feijão e que ainda temos tempo de impedir o reinado absoluto do carioquinha, fico feliz.
Feijão canapu com paleta bovina

Com arroz vermelho (falo depois) e ora-pro-nobis no alho e azeite
2 colheres (sopa) de óleo (usei o de licuri, mas poderia ser manteiga de garrafa)
3 dentes de alho
700 g de músculo de paleta bovina cortado em pedaços
Sal a gosto
1 xícara de feijão canapu ou feijão-de-corda, lavado, demolhado por 5 horas e escorrido
2 folhas de louro
5 xícaras de água quente
Meio pimentão vermelho
1 pimenta dedo-de-moça sem sementes, picada
1 cebola picada
Chicória-do-Pará, coentro ou salsinha

Coloque na panela de pressão o óleo e o alho e refogue até dourar. Junte a carne com um pouco de sal e deixe dourar, mexendo sempre. Junte o feijão, a água e a folha de louro e cozinhe por cerca de meia hora (fogo baixo depois que pegar pressão) ou até ficarem macios o feijão e a carne (eles cozinham em tempos iguais). Junte mais água quente e cozinhe mais um pouco, se necessário. Corrija o sal, junte pimentão, a pimenta e cebola e cozinhe por mais 10 minutos. Se quiser, junte um pouco de colorau (urucum). Na hora de servir, tempere com chicória-do-Pará (era o que tinha no quintal), coentro ou salsinha picada. Um pouquinho de manteiga de garrafa por cima também vai bem. Sirva com arroz vermelho (depois falo dele).

Rende: 6 porções
Obs: o feijão-de-corda não engrossa muito o caldo, mas o colágeno do músculo foi providencial para espessá-lo e deixá-lo untuoso.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Farinha d´água

Quem já teve oportunidade de ver o documentário “O professor da farinha”, produzido por Manuel Carvalho e Teresa Corção, do Instituto Maniva, reconhece o paneiro da foto feito pelo Seu Bené, farinheiro da cidade Bragança, Pará, que no ano passado esteve no Terra Madre, em Turim, mostrando a iguaria que produz e o balaio que a embala. Ele fez ao vivo o paneiro com palha de arumã. O outro documentário da série, “Seu Bené vai à Itália”, mostra esta cena emocionante, um consolo pra quem não esteve lá. Já quem esteve agora no Terra Madre Brasil pode encontrar todos os dias Seu Bené com o inseparável chapéu na cabeça e o paneiro na mão. Ele e seu conterrâneo e companheiro de chapéu, o veterinário Clayton; os dois com tantas histórias.

Aos que não conhecem a farinha d´água, ela é feita com a mandioca que foi descascada e amolecida por cerca de 4 dias em água corrente de igarapé. Pelo menos é assim que se faz em Bragança, pois a baiana Maria Carmem dos Santos, que estava em Brasília representando sua comunidade, me disse que na região dela, Rio Real e arredores, perto de Sergipe, a mandioca é deixada de molho numa mesma água limpa dentro de potes grandes, até fermentar e amolecer. Esta massa recebe nomes diferentes de acordo com a região: carimã, massa d´água, massa de mandioca, massa puba. Nosso chucrute amiláceo. Com ela se fazem bolos, bolinhos, cuscuz e coisas que eu ainda não aprendi. Só sei que, para a farinha, a massa fermentada e amolecida é lavada, prensada, esmigalhada, passada por peneira e levada ao forno das casas de farinha – os tachos sobre lenha, até que fique bem seca e crocante. A farinha do Seu Bené é feita com mandioca amarela, nas versões simples ou com coco (esta que eu comprei é assim), super perfumada, crocante. Crocante até demais, sempre achei. Não há dente não-caboclo que resista à tanta dureza. Se bem que era porque eu não sabia comer. Foi uma das coisas que o Clayton me ensinou - tem que jogar um punhadinho na boca e ir mastigando bem devagar, deixando que umedeça um pouco. Trata-se de um emblemático ato slow food tupiniquim. Aí sim é boa demais de se comer e até se distrair enquanto o almoço ou jantar não vêem. Uma tigelinha ao lado do teclado do computador evita os assaltos fora de hora à geladeira. Guloseima light, não pelo poder calórico, mas pelo intervalo de tempo entre um grão e outro. Infinito. Definitivamente a pressa é a inimiga da refeição quando se trata de farinha d´água.

Sobre o paneiro: este é um assunto à parte, porém, só para saberem um pouco, trata-se do balaio de tramas largas feito com talos finos de uma planta do gênero Ischnosiphon, família das Marantáceas. A cestaria de arumã (ou guarimã) está presente entre várias etnias indígenas e os caboclos ribeirinhos. E este paneiro, para transportar farinha, é ainda forrado com as folhas frescas do arumã, mas de outra espécie. O incrível é que a folha seca sem mofar ou comprometer a qualidade da farinha, que dura até 1 ano embrulhada assim. Além disso, confere um aroma delicioso e inconfundível à farinha.

Voltando à farinha, embora seja produto final e pronto para acompanhar peixes e carnes, nada impede que a gente a use como ingrediente onde quiser – de preferência para que já saia hidratada. E por eu estar longe de ser uma autêntica papa-chibé (chibé é a forma mais prática de hidratar a farinha d´água – é a mistura de farinha e água numa cuia), vou introduzindo a farinha d´água no meu pãozinho de todo dia.
Aqui vai a receita que inventei e ficou bom demais o pão com o crocante da castanha confundindo-se com os grânulo já macios da farinha. Super básico, como disse o Marcos, ironizando. Apesar do exotismo de alguns ingredientes, todos eles podem ser substituídos por similares. O bom do pão é isto: tendo farinha, água, fermento e fogo em doses adequadas, ele aceita uma infinidade de variações e acréscimos. É só perder o medo (o que fiz com fermentação natural na segunda-feira tive que jogar fora porque aconteceu alguma confusão entre os ingredientes e a coisa não cresceu – botei pra assar assim mesmo e vim pro escritório. Quando o Marcos chegou do trabalho, depois de umas três horas, veio perguntar o que eram aqueles carvõezinhos no forno...).

Pão de farinha d´água com castanha-do-Brasil


1 envelope de fermento biológico seco (ou 1 colher de sopa)
600 ml de água morna
2 colheres (sopa) de mel florada de bracatinga (qualquer um serve, vá)
1 colher (sopa) rasa de sal comum (flor de sal, se você for bem chique ou sal marinho se for natureba)
1 xícara de farinha d´água amarela
2 colheres (sopa) de azeite de bacuri ou de castanha-do-Brasil (ou qualquer outro)
2 ovos (ou 100 g de ovo de pata, marreca, codorna ou do que quiser)
10 castanhas-do-Brasil (antiga castanha-do-Pará, afinal não é só lá que dá) bem picadinhas
900 g de farinha de trigo especial (gosto da Renata ou da Anaconda)

Numa tigela grande, dissolva o fermento na água morna. Junte o mel, o sal e a farinha d´agua. Junte um pouco da farinha e os outros ingredientes, mexendo bem com uma colher de pau. Coloque mais farinha e vá sovando com as mãos fazendo movimentos de espichar e recolher, até formar uma massa lisa e uniforme. Se quiser, trabalhe a massa numa superfície enfarinhada. Cubra com plástico e deixe crescer. Quando dobrar de volume, divida a massa em 4 ou em pedaços de 50 g (36 porções) caso queira fazer pãezinhos. Modele os pães, coloque numa forma untada e enfarinhada, deixando espaço entre eles. Polvilhe com farinha de trigo se quiser fazer uma graça, faça cortes com faca bem afiada ou com tesoura, no caso dos pãezinhos, cubra com pano e deixe crescer mais um pouco (cerca de 1 hora). Leve ao forno bem quente, preaquecido, e deixe assar por 10 minutos. Diminua o fogo e asse por mais 50 minutos (ou menos se escolheu fazer pãezinhos).

Rende: 4 pães grandes ou 36 pãezinhos.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Granola com jatobá

De como, no prazo duma hora só, careci de ir me vendo escorando rifle e alvejando, em quentes, em beira de mato e campo, em virada de espigão, descendo e subindo ramal de ladeirinhas pequenas, atrás de cerca, debaixo de cocho, trepado em jatobá e pequizeiro, deitado no azul duma laje grande... Guimarães Rosa em "Grande Sertão:Veredas", 1956

Uma das comunidades de alimento presentes no Terra Madre era a Agrotec, que agrupa 21 agricultores e coletores numa área do Cerrado, em Diorama, oeste de Goiás. Era deles a farinha de jatobá que eu queria comprar, mas cheguei tarde e perdi o bonde. Sorte que ganhei da Sofia Carvalhosa
algumas vagens dias antes de ir pra Brasília e como não tive tempo de fazer nada com elas, peneirei a polpa para fazer farinha e congelei para quando voltasse. No domingo mesmo cheguei aqui motivada a usar produtos da terra. Lembrei da misturinha baiana que minha amiga Silvia Lopes me ensinou a fazer com farinha de tapioca (a baiana, de beiju, e não a granulada, do Pará), açúcar e coco ralado fresco. Leva tudo ao forno e depois guarda para comer como cereal matinal (vespertino, noturno, de madrugada... ) com frutas frescas, iogurtes, leite. Aliás, cereal matinal ou corn flake é um daqueles alimentos que nos enfiaram goela abaixo com a alegação de ser um hábito saudável – quase sempre é super açucarado e praticamente não tem fibras. E ainda pra ficar bom, tem que ser fortificado. Melhor comer um belo de um cuscuz de milho com leite de coco. Pelo menos tem cara de comida.
Mas, voltando..... Somei a inspiração baiana com a multimistura da Dra. Clara Brandão - que estava no Terra Madre e contou como salvou muita criança da desnutrição com o complemento nutricional à base de folhas de mandioca e sementes. Achei que poderia dar samba usar alguns itens que trouxe do Planalto Central, o jatobá que tinha aqui e o polvilho de mandioca que eu mesma fiz em Fartura (depois eu conto como, se alguém se interessar – fácil, fácil). E deu no que deu, uma granolinha crocante bastante boa para comer com bananas, kefir ou iogurte. Foi só um teste que pode ser melhorado acrescentando frutas tropicais secas, coco ralado e farinha de beiju em vez da mistura polvilho-jatobá. Ou ainda mel em vez de rapadura. É só inventar.


Para fazer a farinha, é só quebrar as vagens e passar a polpa por uma peneira. Pode ser congelada assim.

Granola brasileira
30 g de polpa peneirada de jatobá
70 g de amido de mandioca (polvilho doce, fécula ou goma seca)
1 pitada de sal
40 ml de água
10 g de gergelim preto (opcional).
50 g de castanhas picadas (amêndoas de pequi, baru e castanha do Brasil)
20 g de rapadura ralada

Sobre uma tigela peneire juntos o jatobá, o polvilho e o sal. Junte água aos poços, até formar uma farofa úmida que possa ser passada por peneira. Numa assadeira grande, espalhe um pouco de gergelim e por cima vá peneirando a mistura, pressionando com os dedos ou com uma colher (prefiro os dedinhos). Leve a mistura ao forno bem quente e deixe por cerca de 7 a 10 minutos ou até formar beijus crocantes. Junte os outros ingredientes, esmigalhe os beijus caso tenham se agregado em placas grandes e misture. Guarde em saco plástico ou vidro depois de frio e coma como granola.

Rende: 5 porções

Notas
Amêndoas de pequi e de baru são típicas do Cerrado. Não as encontrando, basta substituir por qualquer outra oleaginosa como coco, amêndoas, avelãs.

Se quiser, junte à mistura pedaços de banana passa ou abacaxi.
Preferindo, não use a rapadura e adoce com mel na hora de usar. Ou simplesmente polvilhe a rapadura ralada por cima no momento de servir.

Sobre o Jatobá: leguminosa (tudo que dá em na vagens) típica do Cerrado, com polpa verde, seca e macia, recobrinho as sementes . Tem cheiro forte, mas a farinha pode ser usada em pães, bolos, sorvetes, aumentando o valor nutritivo, já que é rica em cálcio e fibras.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Mini indian corn

Ontem, na volta do Terra Madre, nem acreditei quando o Marcos me mostrou o pacotinho que tinha chegado. A danada da Fer, do blog Chucrute com Salsicha, me mandou mesmo os milhinhos indígenas da California, onde mora. Eu só queria umas sementinhas para plantar em Fartura e ganhei um sabugo de cada tipo. São lindos. Tão lindos que são vendidos assim, com a palha e amarradinhos de três em três, como item decorativo. No rótulo há orientação para que, depois de ter sido usado como tal, você debulhe, lave, enxugue e estoure como pipocas. Vou fazer tudo isso e ainda plantar a metade. Só que estou morrendo de dó de desmanchar o mimo. Fico feliz que estes milhos estejam sendo recuperados. Lembram estes da foto abaixo, dos índios Xavantes, resgatados pela Embrapa Milho e Sorgo (Sete Lagoas – MG). Obrigada, Fernanda. E salve salve a biodiversidade!

Milhos xavantes. Foto da Embrapa Milho e Sorgo (Sete Lagoas – MG)

De volta à Terra

Na cesta: azeite de licuri; arroz vermelho do Vale do Piancó; arroz vermelho, feijão roxo, rajado e feijão-sopinha quilombolas; amêndoa de pequi; baru; castanha do Brasil; e pimenta moqueada dos Baniwas. Fora da cesta: paneiro com farinha d´água de Bragança-PA; e feijão canapu, do Piauí.

Fiz como aqueles turistas que voltam do México de chapelão ou estrangeiro que deixa a Bahia levando seu berimbau. Cheguei do Encontro Terra Madre portando prende-coque de penas da aldeia Fulni-ô, de Pernambuco, pulseira de jupati e colares de morototó. E feliz, muito feliz. É claro que daqui a alguns dias vou ficar inibida de sair com penacho na rua, mas por enquanto conservo a empolgação. Das penas posso até me envergonhar, mas sempre tive e vou ter o maior orgulho das minhas raízes. E neste encontro a mandioca foi louvada de todos os jeitos. Fiquei emocionada quando a índia Macuxi, meio tímida, demonstrou como cantam e dançam as mulheres de sua aldeia enquanto ralam a raiz, para que ela fique 'boazinha".
O Terra Madre é um dos eventos do Slow Food e aconteceu pela primeira vez em Turim, Itália, em 2004. Começou reunindo 1250 comunidades do alimento de 130 países, incluindo o Brasil. A segunda edição, no ano passo, reuniu também chefs de cozinha do mundo todo. E assim foi também o Terra Madre Brasil que aconteceu em Brasília nestes últimos dias, com a diferença de que juntou comunidades de norte a sul do Brasil e ainda aqueles chefs de cozinha que se identificam com o movimento, a quem Teresa Corção, do restaurante O Navegador, do Rio de Janeiro, tem chamado de ecochefs.
Os participantes do Terra Madre ficaram todos num hotel meio afastado, enquanto o almoço e o jantar eram servidos no Parque da Cidade, onde acontecia a Feira de Agricultura Familiar. E aqui uma crítica (come de graça e ainda reclama): o restaurante self service serviu praticamente o mesmo cardápio em todas as refeições, combinando arroz de pequi, vaca atolada, feijão canapu, mudando algumas coisinhas na imensidão de itens que ia de comida árabe a chinesa – nada Slow Food. Quem sabe para o próximo evento não pedem sugestões para os ecochefs? Enquanto isso, palpito eu: uma salada de folhas verdes orgânicas, arroz vermelho do Vale do Piancó, feijão sopinha dos quilombolas; carne de sol e farinha d´água; suco de mangaba; creme de cupuaçu. E no jantar, baião de dois com arroz vermelho e feijão canapu, taioba refogada, suco de taperebá para beber e poréu de sobremesa. No outro dia, esquema parecido, privilegiando os alimentos da agricultura familiar ou indígena. Ou que fosse um cardápio do Cerrado, simples e honesto. E quem não quisesse, que fosse pagar sua comida em outra freguesia.
Mas falando de coisas boas: era no hotel e nos ônibus fretados que todo mundo se encontrava: índios, assentados da reforma agrária, chefs, antropólogos, pesquisadores e bisbilhoteiros como eu. Nas oficinas, entre uma questão e outra, um cochicho para trocar receitas, tradições e experiências. Saí de lá com a sacola abarrotada de iguarias compradas na Feira, sementes de todo canto e uma listinha gorda de novos contatos e amigos, como a Cenia, do Empório Siriuba, aqui de São Paulo que virou minha amiga de infância; o Joselito, autoridade em mandioca da Embrapa Cruz das Almas-BA; o inventivo e divertido Beto Pimentel, do restaurante Paraíso Tropical, Salvador; o Faustino, de Fortaleza, que recebe hoje o prêmio Inovação na Culinária Brasileira do Guia Quatro Rodas; o antropólogo Herundino que trabalha com índios do Lavrado (Macuxi, Wapixana e outros); o chef Ofir, de Belém; a Beth Beltão, de Tiradentes; a Dona Lucinha, de Belo Horizonte e tantos outros que eu só conhecia de fama.
Agora, passada a slow life, estou de volta à correria da modernidade. Então, para eu conseguir dar conta de tudo e ao mesmo tempo não cansar ninguém, vou contando as coisas aos poucos. Mas, só para adiantar, empolgadíssima com os produtos da terra, fiz ontem mesmo uma granola brasileira com goma de mandioca, farinha de jatobá, rapadura, castanha do Brasil e amêndoas de baru e de pequi, que comi com banana. Hoje no almoço teve arroz vermelho do Vale do Piancó temperado com azeite de licuri, feijão canapu com paleta dianteira bovina e refogado de ora-pro-nobis (que meu pezinho no quintal está carregado). E está crescendo lá na cozinha um pão com trigo e farinha d´água. Este, não garanto que vá ficar bom – só vou saber à noite. Mas os dois primeiros ficaram ótimos – depois dou a receita.
Algumas fotos:

Obadias, índio
Sateré-Mawé, ralando bastão de guaraná em pó, protegido pela Fortaleza do Slow Food (conheça outras Fortalezas do Brasil)
Pimentas-de-cheiro da Emprapa-Cerrado
Graviola, cupuaçu, dendê e cacau, da Embrapa-Cerrado
Queijo da Serra da Canastra - MG
Cacau e cupuaçu, da mesma família - Emprapa-Cerrado
Estes eu trouxe para desgustar - têm um terroir incrível: mel de abelha nativa Japurá; mel de florada do Cerrado (abelhas africanas); de Jandaíra (abelha nativa, sem ferrão); de florada de jacatinha (abelhas africanas), e mel de caju (melado, na verdade).
Sementes crioulas: milhos, amendoins e feijões

Erva mate sendo pilada para o chimarrão

Bolinho de farinha de piracuí servido no jantar do Chef Ofir, de Belém

Aos poucos, vou explicando o que é cada coisa. Aguardem.

Para saber mais:

http://www.artebaniwa.org.br/abre.htm
http://www.socioambiental.org/pib/epi/fulnio/white.shtm
http://terramadre.slowfoodbrasil.com/sobre