Não sei se por seleção natural, por treinar os olhos ao perto na falta de luz ou no olhar sempre o horizonte daquela planície sem fim, o fato é que não vi, por onde andei e consegui enxergar, gente míope entre os senegaleses.
Luz falta sempre, mesmo em Dakar. Mas nos vilarejos é comum ficarem na mais completa escuridão. Ou sob uma luz tênue de alguma lâmpada ligada na bateria de carro - a mesma que carrega as baterias de celulares que quase sempre cumprem bem a função de lanterna. Ou, quem sabe, uma televisão ligada que também ilumina.
Queria chegar à aldeia onde passamos uma noite, perto de Koumpentoum, ainda de dia para poder ver e cumprimentar as pessoas às claras, mas várias paragens pelo caminho nos fizeram atrasar. Míope que sou, enxergo muito mal à noite. E, ainda no caminho, paramos numa feira em seu final mas ainda em balburdia, já no breu total. Eu dava passos na insegurança de quem vai tropeçar, mas nosso anfitrião seguiu seguro até a banca que vendia café touba (café aromatizado com pimenta-de-guiné ou djar, doce). A vendedora percebeu que havia no grupo três pessoas pálidas e desajeitadas e iluminou nossos rostos com uma lanterna. Não para ajudar, embora fosse solícita, mas para espiar. Enquanto tomávamos o café refrescante e delicioso, em copo grande com bastante espuma, ela de vez em quando nos iluminava a cara. Só por gosto de ver melhor o diferente. Assim, só chegamos à aldeia lá pelas oito da noite, ou talvez sete, não nos importávamos com os ponteiros. Só o sol e a lua eram nossos guias. As crianças brincavam em volta de uma fogueira. Algumas faziam lição na penumbra e outras se concentravam no chá que faziam sobre um braseiro e depois passavam de um copinho para outro para formar espuma. Um fogo cozinhava a comida no quintal - neste dia comemos cuscuz de milhete, e num canto uma mulher escolhia amendoins. Tudo no escuro.
Estive com eles, as duas mulheres do anfitrião e seus nove filhos, conversei dentro dos limites possíveis entre duas línguas que em nada coincidem, português e wolof, jantamos já bem tarde e fui para minha cabana com uma sensação horrível de que acordaria, me encontraria com aquelas mesmas pessoas e não as reconheceria, porque não consegui diferenciar suas fisionomias. Ao quarto alguns meninos foram junto, me ajudaram a carregar as duas malas grandes e um pequeno me mostrou a luz fraca que havia conseguido instalar para mim - a única privilegiada da aldeia com luz no quarto, ligada a uma bateria sobre uma mesa com vários celulares carregando. Outro menino me mostrou simpático um cadeado que ele mesmo conseguiu para que eu fechasse a porta de zinco mal encaixada e me sentisse segura. Como se precisasse.
Meu medo era só de bichos. Deixei a luz fraca acessa mas ela logo se extinguiu. Ao lado da cama, preventivamente, já tinha deixado uma vela acessa. Antes de dormir, a apaguei, com medo de acidentes, afinal tudo ali parecia tão inflamável, a começar pela cobertura de sapê. No meio da noite acordei quando algo com certo peso e molejo caiu do teto sobre minha perna. Esperneei um pouco para me desvencilhar e a coisa se foi. Não tive coragem de acender a vela e ver o que era. Um rato, um calango, um gato, não sei e não quis saber. Puxei o lençol, fiz uma cabana presa nos pés e na cabeça e tentei dormir sob um calor terrível. Acho que consegui pois logo chegou a manhã e eu me levantei.
Como previ, foi estranhíssimo não reconhecer as pessoas da noite anterior. Mas eles me reconheceram muito bem e isto foi confortante. Bem, tudo isto só para dizer que senegaleses parece que enxergam no escuro. Está certo que o céu é estrelado como em nenhum outro lugar e nisto a falta de luz é prodigiosa.
Na minha infância fui acostumada à falta de luz no sítio dos meus avós, no Paraná. Mas tudo era preparado para que ninguém sentisse muito a ausência da energia. O ferro de passar era aquecido com brasas do fogão - isto cheguei a ver no Senegal, igualzinho - e o chuveiro era daqueles de balde, que a gente enchia com água aquecida e o erguia através de uma roldana para que a água caísse sobre a cabeça. Era só abrir a trava e a água saía morninha pelos furos como um regador de gente. Tínhamos assim um banho até que bom antes do jantar que acontecia antes do entrar da noite. E a iluminação das lamparinas era capaz de espichar um pouco mais a duração do dia, arrematado invariavelmente com estórias de assombração contadas por meus avós sentados ao redor do fogão de lenha pitando cigarro de palha. A noite era falseada só um pouco, afinal dormíamos cedo para acordar com as galinhas ou assim que o sol batesse nas frestas da janela, para aproveitar toda a claridade do dia.
Mesquita ao amanhecer |
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6 comentários:
Percepção, acho que é esta a palavra que define suas viagens. Parabéns pela coragem e desapego.
Neide, compreendo perfeitamente quando você diz que não dá pra voltar a ser a mesma depois de Senegal. É tudo tão tocante, tão difícil, mas ao mesmo tempo tão lindo. Acho que estou apaixonada por Senegal. Meu sonho é que ganhem qualidade de vida sem perder a essência do que são. O mundo não precisa se ocidentalizar para ser melhor, precisa apenas ser mais justo.
Você como sempre tocando fundo em nosso âmago.
Bjs
Neide, não tenho dúvida, voce é uma verdadeira escritora, e das boas! Sua forma de escrever é tão gostosa que seus relatos estão longe de serem apenas informação, são também romance e poesia, com as características próprias desses gêneros, que é tocar a alma da gente.
Obrigada.
Beijo
Neide, continue nos apresentando o Senegal. Parece que estou caminhando por lá, conhecendo as pessoas, sentindo os cheiros e sabores. São pessoas maravilhosas que nos ensinam que a vida não precisa ser complicada e que para ser feliz basta o calor de uma fogueira e algumas sementes para se fazer uma festa.
Faustino Ferreira Antunes
O bicho molenga não!!!! AAAAAA!! já agoniei daqui.
Pelo menos em breve você vai deixar de ser míope! eu que tinha a visão maravilhosa, agora luto com três óculos, mas os míopes serão os primeiros!!
Nossa,o ferro de brasas e o chuveiro "regador de gente" me fez lembrar da infância e da casa de meus avós no interior de Minas. Onde mesmo hoje já não se vê, mais nada disso e mesmo sendo tudo mais difícil dá uma saudade! Se dicesse que havia goiabeiras na casa de um avô e na outra sempre uma avó fazendo beijú para os netos, acho que até choraria...enriquecedora sua experiência, mesmo através do blog, estar lá então,deve ser quase inexplicãvel.
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