quinta-feira, 30 de junho de 2016

Festival de umbu de Uauá. Coluna do Paladar, edição de 30 de junho de 2016

Jussara, da Coopercuc, e seus pimpolhos que adoram umbu 
Já falei um pouco da viagem deste ano para Uauá - aqui. Mas hoje saiu o texto sobre o Festival do Umbu para os leitores do Estadão, na minha coluna do caderno Paladar.  Veja lá no blog do Caderno ou no jornal impresso.

E aqui deixo o texto integral:

Umbu de fim de safra
Festival do umbu no Sertão do São Francisco

O propósito da viagem era o festival,  mas não nos limitemos. Para um turista à procura de aventuras gastronômicas envolvendo a fruta símbolo da Caatinga, o  Festival de Umbu que costuma acontecer no começo do ano em Uauá, interior da Bahia, pode não corresponder à expectativa da exploração fácil. Você não vai encontrar ali fartura de umbu e seus produtos, cozinheiros em barracas com pratos à base de umbu nem muito assunto sobre a fruta.  Pelo menos  do jeito que a gente costuma ver em festivais que homenageiam um produto.  Não se engane. É que para quem vive ali tudo parece tão óbvio, nem precisa mostrar.  Mas o umbu que dá nome ao grande encontro  está nas entrelinhas ou impregnado nas pessoas, nos animais e nas coisas. A pequena cidade, em todos os tempos, na safra ou na entressafra  do umbu, é o próprio festival.

Neste ano foi no final de abril a oitava edição e desde a primeira quem está à frente da organização é a Coopercuc – Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá, que começou com um grupo de mulheres arretadas em busca de independência financeira no final da década de 1990. Hoje,  vende geleia de umbu e maracujá-da-caatinga até para a Europa,  e no repertório de produtos locais tem até cerveja artesanal feita com a fruta por cervejeiro jovem da comunidade que foi estudar fora bancado pela cooperativa.
Para a cidade, o evento representa a oportunidade de se discutir políticas públicas, questões agrárias, merenda escolar,  território e tantas outras demandas que vão se acumulando.  Sem deixar de lado os concursos de poesia, de pintura, as apresentações de teatro  e de cantoria. 

Normalmente acontece em plena safra de umbu, mas neste ano, além de a produção ter sido fraca por causa da seca,  atendeu-se a um pedido de religiosos para que a festa fosse depois da quaresma , afinal os estandes de produtos da agricultura familiar da região, as barracas para venda de comida à noite na praça e o grande palco para shows de forró são muito animados, ficam bem juntos da igreja e não cai bem tanta alegria nesta época de recolhimento.  Então o umbu foi mesmo a raspa do aribé neste ano, só para citar o grande tacho de barro onde na temporada se cozinhavam os umbus para o doce ou o vinagre quando não havia alumínio. 

Agora, por que ir a um festival em plena terra do bode, a mais de quatrocentos quilômetros de Salvador,  a mais de cem do Vale do São Francisco, em pleno sertão de céu azul que nos distrai de tudo?  Exatamente por tudo isto. 

A distância da capital contribui para a preservação dos hábitos, das lendas, da cultura. Por ali passou o cangaceiro Lampião e seu bando, aconteceu ali a primeira batalha da Guerra de Canudos e foi na região que Glauber Rocha gravou Deus e Diabo na Terra do Sol chapando o céu de branco que era pra quem visse não se perder nele esquecendo do resto. Agora, andar pela Caatinga com gente do lugar tendo o sol quente sobre a cabeça e espinhos de toda natureza sob os pés é um presente que ninguém há de esquecer ainda que esta situação não pareça confortável.   E esta gente, pode apostar, está toda na cidade quando rola o festival.  É ali que você vai encontrar seus melhores guias, homens, mulheres ou crianças que vivem na roça,  e sabem tudo da flora, da fauna, das comidas, dos remédios e das lendas da Caatinga.  É como ter a companhia de vários Riobaldos saídos do Grande Sertão de Guimarães Rosa.  É gente que vem de vilarejos e cidades próximas. Um é de Bendengó, outro de Caititu, ou de Cocorobó, Caratacá, Creitu, Marruá, Macururê, Curundundum,  Patamuté, Quinjingue, Quembrenguenhem, ou ali de pertinho, do Sítio do Tomás, da Serra da Besta.

Dificilmente os dias amanhecem pesarosos e cinzas em Uauá.  Pelo contrário, o céu é de um azul extravagante e as núvens são tão brancas, fofas e próximas que parecem bolas de algodão grudadas nos galhos secos das catingueiras.  Geralmente são assim os dias na época do festival. E um chuvisquinho de nada de um dia para outro faz da paisagem esbranquiçada um tapete dourado com as folhas clarinhas e flores amarelas  da catingueira, também conhecida como pau-de-rato. 

Aliás,  não vai ser no café da manhã do hotel em Uauá que você vai tomar um delicioso chá de flores de catingueira, mas quem sabe na casa de alguém no Caratacá ou em Bendengó, cidade vizinha onde caiu há 110 mil anos o maior meteorito de que se tem notícias no Brasil e onde se pode tomar num bar sem alarde a bebida  servida direto da garrafa térmica em copo de plástico, sem nenhuma pompa.  Tampouco o chá de amburana, tão perfumado, usado mais como remédio pra dor de barriga, ou o chá de flores branquinhas de umbuzeiro cheirando a mel e servido por prazer aos mais íntimos às vezes para substituir o café e acompanhar o o autêntico manuê. Assim é chamado o bolo de milho duro demolhado e triturado que leva, além do grão, apenas  água e açúcar e é assado no forno de lenha. Dona Joana Maria de Souza vendia o bolo até o ano passado em Caratacá, um povoado de Uauá, mas já deixou de fazer e ninguém a substituiu.   

A gente jovem da cidade está mais ligada a assuntos urbanos e, com algumas exceções, há pouco interesse em explorar o conhecimento dos pais que, por força das circunstâncias, aprenderam a tirar o melhor proveito dos recursos naturais da caatinga – que por muito tempo foi tida como um bioma a ser combatido.  Hoje mesmo os jovens da cidade já sabem da importância de sua preservação e dali pode se tirar o que comer, o remédio para se tratar e fibras para o gobó de carregar umbu.

Se você conseguir companhia para um dia de caminhada pelas roças, vai descobrir o verdadeiro festival do umbu. Pessoas como Dona Joana, Dona Juvita e Seu Isaias, por exemplo,  te levam para o léxico fantástico do sertão onde reina o umbuzeiro, hoje tão reverenciado e bem tratado,  em parte pelo trabalho de conscientização da cooperativa.

É o umbuzeiro que mantém suas folhas verdes quando todas as árvores já se despiram. Isto, graças à grande quantidade de água que reserva em suas batatas subterrâneas que são comparadas às cacimbas para armazenar água da chuva a ser usada na estiagem.  Mas quando a seca é muito intensa, de um dia para outro o umbuzeiro despeja toda a carga de folhas no chão para evitar perder mais água. 

Os bodes se viram bem na caatinga e com suas pontas conseguem até abrir o cacto cabeça-de-frade para comer seu miolo. Porém,  a natureza se defende como pode. Os amontoados de macambira, uma bromélia espinhenta, e de cansanção, a urtiga do sertão, ajudam a proteger dos bichos as plantas pequenas que vão germinando até que ganhem força para resistir ao assédio.  Ninguém queira levar uma surra de cansanção,  diz Dona Joana.  Nem precisa ser uma surra. Um simples encosto no cansanção ou na faveleira leva à descoberta do que seria estar nu sobre o  inferno de um formigueiro raivoso.  Pior que isto só mesmo se apoiar num pé de amburana-de-cheiro e encontrar em suas forquilhas uma casa de caboclo, marimbondos destemidos que picam doído sem piedade.  Ou cair sobre os espinhos da palmatória, do xique-xique, do mandacaru, da palma de ema.  Ou ainda ficar ariado e se perder na caatinga enganado pela Caipora.  Tudo é possível, mas os bodes com seus cascos fortes, estes andam bem por aqueles terrenos pedregosos e espinhentos e você pode ir atrás deles, seguindo a veredinha que vão deixando. E,  claro, sempre de sapatos.

Dona Joana diz que bode come cansanção quando não há outra coisa, mas,  embora possa até engordar,  é bicho que não dura muito quando entra nesta dieta.  Já folha de umbu deixa o bode esperto, com o pelo bonito, lisinho, logo ganha peso, logo a fêmea  está  parindo.  Estas folhas são gostosas pra gente também, ácidas como vinagreira, podem ser comidas até cruas na salada, embora não seja muito do hábito na cidade nestes dias atuais. Tampouco é comum encontrar quem ainda coma a batata do caroá, um tipo de gravatá, ou mocó de macambira, que é o broto docinho, macio e crocante da bromélia espinhuda.  Ou o miolo do cacto xique-xique assado, ou a cabeça-de-frade assada recheada com carne de caça. Mesmo porque há muitas destas plantas já em extinção e a caça, ninguém se atreve a comer, pelo menos publicamente.

Considerada a capital do bode naquele Sertão do São Francisco, Uauá tem a melhor carne porque ela já vêm temperada, dizem os criadores.  A dieta seleta composta de frutos e folhas de umbu, macambira, quebra-facão, carqueja, favela,  é complementada ainda com velame, uma erva aromática abundante na região. Os entendidos na carne sabem quando o bicho se alimentou com esta erva que serve também para intercalar as mantas embaladas para transporte.  Vai mandar bode para o filho em São Paulo?  Coloca galhos de velame no meio, que é pra não estragar.

Além do velame, há outras ervas aromáticas na Caatinga, como o alecrim-do-campo que em Uauá tem um perfume e em Canudos já é outro. Ana Luiza Trajano, do restaurante Brasil a Gosto também esteve no festival e ficou fascinada com o perfume do alecrim de Canudos que tem folhas muito miúdas, ramagem seca e sabe à lavanda.  Quando tem oportunidade, o bode se tempera também com ela.

Acontece que quase toda a carne consumida em Uauá é de bode de sol. Ou de galinha de capoeira.   De vaca, quase não há. O bode  é abatido, limpo e aberto com o primor de um cirurgião a dissecar para que fique como um tapete pintado em branco e vermelho.  O sal é pouco, que é só pra suar. Com o tempo seco, em cerca de 24 horas a carne já está desidratada, pronta para ser vendida no galpão coberto que é a grande atração na segunda-feira,  dia de feira de rua, outro acontecimento na cidade.  Que raça é, pergunto ao vendedor de bode. Pé duro, responde. Tudo ali é pé duro. Porco pé-duro, bode pé-duro, gado pé-duro e galinha de capoeira, o que quer dizer que é tudo animal sem raça definida, rústico, mestiço.  

E aí está o segredo daquele bode criado sem ração, só com a comida e o tempero que a Caatinga lhe dá.  Pra não dizer que o bode se vira sozinho, às vezes corta-se raquete de palma ou sapeca-se mandacaru pra tirar o espinho e alimentam-se assim os bichos. Há quem cultive mandacaru só pra servir de ração aos bodes. É o caso do Seu Afonso Almeida da Silva, que tem em sua casa um banco de sementes comunitário invejável e produz, além de maracujá-da-caatinga, uma roça de mandacarus sem espinhos desenvolvidos pela Embrapa.  
Pelo menos bode a gente encontra em todos os restaurantes e é sempre muito bom.  Pode ser carne em molho ou assada, mas saiba que assada quer dizer frita em óleo até ficar sequinha.  Dá pra ir comendo em lascas, deliciosa, com farinha.  Só falta mesmo para acompanhar o vinagre de umbu, que quase ninguém mais faz. Lembrando que  vinagre de  umbu não é límpido como aquele ácido acético que gente conhece com tal, mas um fermentado de umbu, reduzido no fogo de lenha até ficar preto, ácido e doce sem ter levado açúcar. Pode ser comido puro com carne ou feijão, usado fazer refresco e até umbuzada,  o nosso iogurte do Sertão feito também com o fruto fresco maduro e cru ou inchado e cozido.
Carne de bode também pode ser a refeição dos padeiros quando acabam de assar a fornada de pãozinho depois de uma jornada exaustiva. Com o forno quente, aproveitam para assar, e aí sim é assar, pedaços de carne que comem como aperitivo ainda pela manhã. As padarias artesanais têm lindos fornos de lenha e valem uma visita. Os padeiros geralmente desconhecem fermentação natural mas usam uma quantidade mínima de fermento comprado, deixam a massa trabalhada manualmente fermentando a noite toda e assam em grandes fornos de barro de madrugada.  Padarias fazem apenas pão, um ou dois tipos, além da xeba, um pão chato feito com a mesma massa do pão salgado, só que coberto com açúcar, quase como um focaccia doce. E favor não confundir padaria com confeitaria, esta sim com vários tipos de pães, bolos, doces e outros confeitos. 

Então o festival do umbu é assim,  bem  grande, a perder de vista naquele tapete amarelo de catingueiras. Pra ficar perfeito, só falta ter produtos de umbu nas confeitarias, nos restaurantes,  nas lanchonetes e na merenda escolar.  E cerveja de umbu nos bares, que ninguém é casco duro como bode. 

E aqui, algumas fotos: 


Alecrim de Canudos e flores de catingueira - duas aromáticas do Sertão

Sabores do Sertão na cachaça

Carne de bode, lanche dos padeiros

Juan e dona Júlia fazendo umbuzada

Pietro e Joaninha do Sertão






3 comentários:

Anônimo disse...

Lindíssimo texto Neide! Uma aula de cultura regional brasileira desenvolvido com muito estilo! Guimarães Rosa ficaria orgulhoso...
marlene

Unknown disse...

Neide, lendo suas aventuras, lamento já estar nos 79, ou iria pedir pra ir junto! Já andei muito por esses lugares e sinto não ter mais o pique necessário... Como você, curtia o povo de cada lugar, aprendia muito com eles. Saudade! Se há alguma coisa que não me agrada por estar velha, é essa impossiilidade física de caminhar pelo sertão com sol a pino. Mas as memórias são tão boas que acabo me conformando em ser só leitora. Obrigada por escrever (e tão bem) sobre lugares e me proporcionar essas "viagens"! beijão da Adelia

Pedriyo disse...

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