segunda-feira, 20 de junho de 2016

Oficinas de culinária no Vale do Ribeira


Na semana passada estive dando oficina de culinária no Vale do Ribeira, uma atividade promovida pela Sof - Sempreviva Organização Feminista com mulheres agricultoras atendidas pelo programa de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). O  programa foi criado pela organização em 2015 para apoiar a cadeia de produção e consumo de alimentos. E aí entra minha parte: o autoconsumo.

A Quitandoca, que vende aqui em São Paulo, no bairro de Pinheiros, produtos  agroecológicos da agricultura familiar do Vale do Ribeira, também estava presente com Gabriela e Janaína que ajudaram bastante na oficina desde o momento em que colhemos flores de mamão na estrada. Vivian, agrônoma que foi minha professora numa curso de horticultura orgânica e virou amiga, e trabalha para a Sof na parte de agricultura do programa, era quem estava à frente e conhecia os caminhos para chegar ao Quilombo Cangume e ao bairro rural do Caraças, ambos no município de Itaoca. 



A casa de pau-a-pique onde aconteceu a roda de conversa. 


Dona Antônia colocando o feijão no fogo pra janta. 

Ao Quilombo chegamos já de tardinha. O lugar é lindo e fica no alto de uma região bem montanhosa.  Nos alojamos numa casinha de pau-a-pique onde Dona Antônia cozinhava o feijão no fogão de lenha. Aos poucos foram chegando as mulheres e se abancando onde havia espaço. O pilão centenário virado de ponta cabeça era um dos bancos. A roda de conversa girou em torno do tema comida, é claro. Mas o que eu queria provocar era uma discussão sobre o que comíamos no passado e não comemos mais. Porque na época da necessidade havia cará, inhame, mamão verde, batata doce e agora, segundo eles próprios, a criançada e os mais jovens não querem mais comer estas coisas?  E elas mesmas foram refletindo sobre isso. Uma das mulheres resumiu: "Antigamente a gente tinha de tudo nas roças e achava que não tinha nada. Mas indo pra cidade e olhando pra trás a gente vê que havia fartura. A gente só não tinha aquilo que o povo da cidade tinha".  Pois é, alimentos industrializados estão por toda parte modificando hábitos. 

Vista do Quilombo Cangume ao longe 

O campinho do Quilombo
Uma particularidade neste lugar é que os porcos são criados soltos como galinhas e as roças precisam estar longe - algumas estão a uma hora de caminhada. Perguntei se não era mais fácil manter os  porcos presos e a resposta foi gourmet: se ficam confinados a carne não fica boa, não. 

Cada um arrumou um cantinho pra sentar. E dona Antônia contou histórias

Como do Pilão que o pai fez pra mãe na época do casamento 

Apesar do frio que castiga plantas, havia uma hortinha cercada com alguns temperos e remédios. Cordão de frade pra febre, cataflam (boldinho) pra gripe etc. Do mato chegam casca d´anta pra ficar forte e temperar sopa de mandioca.   Ao pilão de temperos, casca d´anta, pimenta, sal, alho e ... sazon. Mamão verde que comiam antes, dizem que parece batata, mas os mais jovens já não comem d iguaria.  Enfim, este papo iria longe se a noite e o frio não chegassem tão cedo. No outro dia, oficina no bairro rural de Caraças. 

Gabriela e Janaína ajudando na colheita de flores de mamão

Urucum 

Logo na estrada chegando a Caraças já fomos vendo muitas culturas comestíveis. Urucum, mamão verde. Aliás, paramos o carro e lá fomos colher flores de mamão macho que ficam gostosas (e amargas!) em refogados. 

A estradinha por onde andamos para colher nossos ingredientes

Caminhada de aprendizado 
Duda escolhendo feijão
Na entrada do bairro, uma igreja, o salão, as casas todas perto umas das outras assim como são as relações de parentesco e amizade por ali. As mulheres foram chegando. Irmã de uma, comadre da  outra, prima do marido, madrinha da filha, afilhada da mãe e assim são aquelas mulheres que, antes de correr pra oficina, dão comida aos filhos que vão a escola, deixam o feijão escolhido, adiantam a farinhada de amanhã e deixam a marmita pronta pro marido.  Ainda sobra tempo para andar pela estradinha de terra pra nos mostrar o que nasce ali espontaneamente de comida e remédio e também o que cultivam. 

As bananas da casa da Regina

Nossa colheita 

Procurando pimenta cumari

Colhendo mandioca 
Fomos colhendo corações de banana, mamão verde,  pimentinhas, mandioca, folhas de batata doce, beldroegas, temperos. E ainda fomos ver o rio de águas frias e limpas. Voltamos para a casa da Regina onde um tucano que come banana amarrada ao mamoeiro carregado nem se intimidou com nossa presença e em cuja cozinha o fogão de lenha já crepitava a espera das panelas. 

Nossa colheita do dia para a oficina 


Pimentas 

Flores do coração da bananeira 
Depois de uma conversa, não precisei dar atividade pra ninguém. Elas mesmas já escoladas na arte de se ajudar (no bairro há muitas atividades coletivas) foram adiantando o que já sabiam - descascando cebolas, ralando mamão verde, separando as flores do coração de banana. Logo estava tudo pronto à mesa. Elas estavam falantes, alegres, confiantes.  Eu nem sabia o que faria e o que encontraria para a oficina mas acabou como um momento de trocas e aprendizado dos dois lados - espero. 
Bastava dizer bijajica pra todo mundo cair na gargalhada 

Elas gostaram do meu livro - que fiz pra Coopercuc

Tanto no Cangume como no Caraças deixei também um pouco de levain (a isca do fermento natural) e já fiquei sabendo que pelo menos no Caraças já sairam duas fornadas de pão ao levain. 

-- 

Mesa posta 
Flores de mamão - eu adorei, mas é um prato amargo 


 

3 comentários:

Taís disse...

A resposta foi gourmet: e há quem diga que a culinária quilombola é rústica. São cegos, esses. Que bonito, Neide!

Manu Alves disse...

Que maravilhoso, Neide!

Letícia disse...

Estou completamente apaixonada pelo seu trabalho. Parabéns! Comonposso participar de alguma aula sua?