Na semana passada estive dando oficina de culinária no Vale do Ribeira, uma atividade promovida pela Sof - Sempreviva Organização Feminista com mulheres agricultoras atendidas pelo programa de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). O programa foi criado pela organização em 2015 para apoiar a cadeia de produção e consumo de alimentos. E aí entra minha parte: o autoconsumo.
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Quitandoca, que vende aqui em São Paulo, no bairro de Pinheiros, produtos agroecológicos da agricultura familiar do Vale do Ribeira, também estava presente com Gabriela e Janaína que ajudaram bastante na oficina desde o momento em que colhemos flores de mamão na estrada. Vivian, agrônoma que foi minha professora numa curso de horticultura orgânica e virou amiga, e trabalha para a Sof na parte de agricultura do programa, era quem estava à frente e conhecia os caminhos para chegar ao Quilombo Cangume e ao bairro rural do Caraças, ambos no município de Itaoca.
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A casa de pau-a-pique onde aconteceu a roda de conversa. |
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Dona Antônia colocando o feijão no fogo pra janta. |
Ao Quilombo chegamos já de tardinha. O lugar é lindo e fica no alto de uma região bem montanhosa. Nos alojamos numa casinha de pau-a-pique onde Dona Antônia cozinhava o feijão no fogão de lenha. Aos poucos foram chegando as mulheres e se abancando onde havia espaço. O pilão centenário virado de ponta cabeça era um dos bancos. A roda de conversa girou em torno do tema comida, é claro. Mas o que eu queria provocar era uma discussão sobre o que comíamos no passado e não comemos mais. Porque na época da necessidade havia cará, inhame, mamão verde, batata doce e agora, segundo eles próprios, a criançada e os mais jovens não querem mais comer estas coisas? E elas mesmas foram refletindo sobre isso. Uma das mulheres resumiu: "Antigamente a gente tinha de tudo nas roças e achava que não tinha nada. Mas indo pra cidade e olhando pra trás a gente vê que havia fartura. A gente só não tinha aquilo que o povo da cidade tinha". Pois é, alimentos industrializados estão por toda parte modificando hábitos.
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Vista do Quilombo Cangume ao longe |
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O campinho do Quilombo |
Uma particularidade neste lugar é que os porcos são criados soltos como galinhas e as roças precisam estar longe - algumas estão a uma hora de caminhada. Perguntei se não era mais fácil manter os porcos presos e a resposta foi gourmet: se ficam confinados a carne não fica boa, não.
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Cada um arrumou um cantinho pra sentar. E dona Antônia contou histórias |
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Como do Pilão que o pai fez pra mãe na época do casamento |
Apesar do frio que castiga plantas, havia uma hortinha cercada com alguns temperos e remédios. Cordão de frade pra febre, cataflam (boldinho) pra gripe etc. Do mato chegam casca d´anta pra ficar forte e temperar sopa de mandioca. Ao pilão de temperos, casca d´anta, pimenta, sal, alho e ... sazon. Mamão verde que comiam antes, dizem que parece batata, mas os mais jovens já não comem d iguaria. Enfim, este papo iria longe se a noite e o frio não chegassem tão cedo. No outro dia, oficina no bairro rural de Caraças.
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Gabriela e Janaína ajudando na colheita de flores de mamão |
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Urucum |
Logo na estrada chegando a Caraças já fomos vendo muitas culturas comestíveis. Urucum, mamão verde. Aliás, paramos o carro e lá fomos colher flores de mamão macho que ficam gostosas (e amargas!) em refogados.
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A estradinha por onde andamos para colher nossos ingredientes |
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Caminhada de aprendizado |
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Duda escolhendo feijão |
Na entrada do bairro, uma igreja, o salão, as casas todas perto umas das outras assim como são as relações de parentesco e amizade por ali. As mulheres foram chegando. Irmã de uma, comadre da outra, prima do marido, madrinha da filha, afilhada da mãe e assim são aquelas mulheres que, antes de correr pra oficina, dão comida aos filhos que vão a escola, deixam o feijão escolhido, adiantam a farinhada de amanhã e deixam a marmita pronta pro marido. Ainda sobra tempo para andar pela estradinha de terra pra nos mostrar o que nasce ali espontaneamente de comida e remédio e também o que cultivam.
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As bananas da casa da Regina |
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Nossa colheita |
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Procurando pimenta cumari |
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Colhendo mandioca |
Fomos colhendo corações de banana, mamão verde, pimentinhas, mandioca, folhas de batata doce, beldroegas, temperos. E ainda fomos ver o rio de águas frias e limpas. Voltamos para a casa da Regina onde um tucano que come banana amarrada ao mamoeiro carregado nem se intimidou com nossa presença e em cuja cozinha o fogão de lenha já crepitava a espera das panelas.
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Nossa colheita do dia para a oficina |
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Pimentas |
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Flores do coração da bananeira |
Depois de uma conversa, não precisei dar atividade pra ninguém. Elas mesmas já escoladas na arte de se ajudar (no bairro há muitas atividades coletivas) foram adiantando o que já sabiam - descascando cebolas, ralando mamão verde, separando as flores do coração de banana. Logo estava tudo pronto à mesa. Elas estavam falantes, alegres, confiantes. Eu nem sabia o que faria e o que encontraria para a oficina mas acabou como um momento de trocas e aprendizado dos dois lados - espero.
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Bastava dizer bijajica pra todo mundo cair na gargalhada |
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Elas gostaram do meu livro - que fiz pra Coopercuc |
Tanto no Cangume como no Caraças deixei também um pouco de levain (a isca do fermento natural) e já fiquei sabendo que pelo menos no Caraças já sairam duas fornadas de pão ao levain.
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Mesa posta |
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Flores de mamão - eu adorei, mas é um prato amargo |
3 comentários:
A resposta foi gourmet: e há quem diga que a culinária quilombola é rústica. São cegos, esses. Que bonito, Neide!
Que maravilhoso, Neide!
Estou completamente apaixonada pelo seu trabalho. Parabéns! Comonposso participar de alguma aula sua?
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