Aqui, hospedou-se tem que cozinhar. Flora fez o cuscuz na semana passada e ontem foi só expectadora porque foi a vez de Silvinha fazer seu vatapá. O prato que é uma espécie de pirão incrementado ou uma açorda tupiniquim africanizada leva ingredientes simples, encontrados facilmente nos mercados municipais. Estudiosos dizem que é mais português que africano, outros dizem que é luso-indo-afro.
Se o prato é um samba do crioulo doido, não importa. É o melhor de todos, tanto o feito aqui ontem como o que a Eliane faz engrossado com quiabo. E pode ter chegado sim com os africanos que usam o quiabo como espessante - caso do primordial gumbo da cozinha creoule, originalmente espessado com quiabo e hoje muitas vezes com farinha de trigo complementando. O pão para engrossar, como é praticado hoje na Bahia, visto no vatapá da Silvinha, certamente é intromissão portuguesa (em Belém, por exemplo, entra a farinha de trigo), mas o quiabo no vatapá da Eliane tem raízes africanas. Outros espessantes foram sendo improvisados com os ingredientes disponíveis. No sertão da Bahia, de onde vem Eliane, o vatapá pode ser espessado com farinha de mandioca, de trigo, de milho, de fubá ("primeiro o fubá, depois o dendê", diz a música de Caymmi). Pra fazer para muita gente, de panelona, pra festa dos meninos ou pra sexta-feira santa, pão sai caro, diz ela. E também esta coisa de usar os pedaços do peixe ou de bacalhau encarece, embora deixe o vatapá mais substancioso. Na receita da Eliane não tem o peixe e ainda assim é delicioso. Mas um caldo de galinha, de peixe ou de bacalhau é providencial.
O bom é isto, vatapá é uma receita que permite muitas variações, desde que estejam presentes os amendoins, o camarão seco, o leite de coco, o dendê e algum espessante. Agora, no livro "a arte culinária na Bahia", de Manuel Querino, cuja primeira edição é de 1928, o vatapá aparece numa receita com galinha e não peixe, que é espessado com farinha de arroz e não leva nem amendoim nem castanhas de caju. Nas notas da terceira edição, feitas por Raul Lody, a delícia é descrita como um prato apreciado pelo imperador D. Pedro II feito de peixe, de galinha, porco ou bacalhau.
Bem, a receita de Silvinha é baseada em tudo o que já viu, viveu e comeu no seio de sua família tradicional baiana, que tem até um livro de receitas de família (Dos Campos à Mesa), incluindo o vatapá de tia Lia, que a inspirou. Ela sabe cozinhar como ninguém e não fica apegada às receitas, então fui correndo atrás, pesando e medindo tudo ou não teríamos esta fórmula que aqui apresento.
Começamos comprando os ingredientes no Mercado da Lapa. Está certo que o melhor seria comprar o coco e ralar para tirar o leite grosso e o leite fino, mas resolvemos simplificar dado o adiantado da hora - começamos a fazer às 7 para comer às 10 da noite - e compramos leite de coco pronto. Compramos também as castanhas de caju picadas, como xerém, pois seriam mesmo trituradas. E o amendoim, já torrado e descascado. Em compensação, o azeite de dendê é aquele que trouxe do Senegal, puríssimo, com uma cor incrível. Com um vinho português, Douro, para acompanhar (as cozinheiras durante o preparo). À receita, pois.
Vatapá de peixe - versão de Silvia Lopes
1 filão de pão italiano de 400 (só o miolo, que vai render 250 g)
1 xícara de leite misturada com 1 xícara de água
2 peixes pargos (1,2 kg) inteiros e limpos, cortados em postas
1 limão
2 dentes de alho socados com 25 g de sal (uma colher de sopa média) e 2 pimentas malaguetas
400 g de camarão seco inteiro
135 g de amendoim torrado sem pele
100 g de castanhas de caju torradas
4 colheres (sopa) de azeite de oliva
300 g de cebola picada
250 g de tomate picado
80 g de pimentão (verde e vermelho) picado
2 xícaras de água
4 colheres (sopa) de folhas de coentro picado
1 colher (sopa) de gengibre ralado
1 xícara de leite de coco
100 g de azeite de dendê puro
1. Coloque o miolo de pão numa tigela e acrescente a água e o leite. Reserve.
2. Lave o peixe com água e o suco do limão e escorra bem. Tempere-o com o alho socado com sal e pimenta e deixe pegar gosto por cerca de 1 hora.
3. Lave bem os camarões e limpe-os, descartando a carapaça e as patas. Reserve as cabeças. Deixe os camarões de molho em água.
4. Leve as cabeças ao forno para secar - deixe até que estejam bem secos, sem deixar queimar. Tire os olhos, triture em liquidificador, peneire e reserve a farinha obtida.
5. Aqueça no forno a castanha e o amendoim, triture bem no liquidificador e reserve.
6. Numa frigideira grande ou panela rasa, aqueça o azeite e junte a cebola. Deixe murchar. Acrescente o tomate e o pimentão e refogue por um minuto. Junte a água e deixe cozinhar por 5 minutos ou até os temperos ficarem macios. Coloque o peixe e espalhe o coentro por cima. Tampe e cozinhe por 10 minutos. Vire o peixe com ajuda de uma colher grande e deixe cozinhar por mais 5 minutos. Quando o peixe estiver se soltando em lascas, está bom.
7. Retire o peixe do caldo e parta-o em lascas grandes, descartando a pele e espinhas. Reserve a cabeça que pode ser servida à parte. Reserve as lascas.
8. Bata o caldo do peixe (tomando o cuidado de conferir se não ficou nenhuma espinha) no liquidificador.
9. Numa panela grande, coloque o caldo batido e as lascas de peixe. Leve ao fogo e comece a mexer.
10. Bata o pão umedecido no liquidificador até transformar em pasta. Talvez tenha que fazer isto em etapas para não forçar o aparelho. Despeje esta massa na panela onde está o caldo e o peixe e continue a mexer.
11. Escorra bem os camarões e reserve metade deles (os maiores). Bata o restante no liquidificador juntando água só o suficiente para conseguir fazer funcionar o aparelho. Junte este camarão à panela e continue mexendo.
12. Junte os ingredientes transformados em pó: a cabeça do camarão, as castanhas e o amendoim (aliás, este tempero pode ser feito com antecedência se quiser adiantar o prato) e continue mexendo.
13. Coloque na panela os camarões inteiros reservados, sem parar de mexer. Se a mistura estiver muito densa, acrescente água quente, aos poucos.
14. Continue cozinhando e mexendo até a massa ficar bem espessa. Junte, então, o leite de coco e o gengibre e misture bem.
15. Acrescente o azeite de dendê e continue mexendo. Quando a superfície começar a enrugar e a massa começar a se soltar do fundo da panela, está pronto. Confira o sal e os temperos e corrija, se necessário. No total, o vatapá cozinhou por cerca de meia hora. Sirva com arroz.
Rende cerca de 10 porções
12 comentários:
Neide, conhece o livro de receitas dos pratos que aparecem nos livros de Jorge Amado? É ótimo para quem quiser se aventurar na comida baiana!
vixe Neide,me hospedei aí e não cozinhei,ao menos lavava a louça hahahaha!!! Beijos!!!
Que bom poder ler esta receita, aqui do outro lado do mundo, neste verão quente e seco do Alentejo português. Essa mistura de identidades anima qualquer um que goste de comer e um vatapá é coisa muito séria. Para além do gosto é um desses pratos que conta histórias a quem souber escutar.
Um beijo
Sim, Juba, eu tenho. Mas nem me lembrei dele. Devia ter consultado. Obrigada!
Mari, esqueci de dizer que o contrário também vale - ou seja, se sou visitante, também o anfitrião cozinha para o Come-se. E quanta coisa boa comi e aprendi na sua casa, hem?
João, o Alentejo anda seco, é? Tenho tanta saudade. Vatapá é o tipo de comida de que você deve gostar, como eu.
Um abraço, N
Oi querida Neide. Li hj no Estadao que vc fará uma coluna no suplemento Paladar...que bom. Parabéns...estou ansiosa para ler...bjsss
Toda semana faço mao e pe na minha manicure e ela assina Caras. Leio sua coluna toda semana la... É uma delicia passar por aqui sempre
Gostaria poder ter refeiçoes tao nutritivas e inteligentes como a sua...
O seu blog é pura atitude, exemplo para nós. Beijos sua fazona faz muito tempo. Priscila Beneducci
Margareth, pois é, estarei por lá. Espero não decepcioná-la.
Priscila, Caras eu só ajudo, mas no Paladar, a coluna será minha e vou fazer possível para que seja interessante.
Um abraço,
N
Oi Neide:
Parabéns!
Belíssimos pratos, fotografias e... que vontade de degustar estes maravilhosos pratos nordestinos que tanto adoro!...
Beijos.
Nobuko.
Nobuko,
que bom que gostou. Agora, que sabe não resolve testar a receita? Depois me conte.
Um abraço, N
Delícia poder cozinhar com uma amiga, tomando vinho e pondo o assunto em dia. Só pode dar coisa boa,
Cara Neide,
Nas minhas andanças no recôncavo da Bahia, fui à Cachoeira, cidade carregada de influência de matriz africana, onde vou sempre que posso para ouvir histórias, receitas e buscar ingredientes, e uma certa vez comentei sobre o vatapá de fubá de milho, elas me explicaram que refere-se ao amendoim e a castanha de caju pilada, fina como um fubá e não de fuba de milho e que o vatapá era e ainda é preparado com farinha de mandioca, como um pirão temperado.
Espero ter ajudado, Beijo!
Postar um comentário