O texto sobre cogumelos está no Estadão de hoje e também no blog do Paladar:
CAÇA AOS COGUMELOS NA CATALUNHA
Sou
micófila assumida e me abre o apetite o simples perfume de mofo em madeira
apodrecida ou do bolor de casa de praia fechada. Caminhar
pela montanha com uma cestinha de palha numa das mãos e um cajado na
outra fazia parte dos meus desejos desde que uma colega de faculdade alemã
contava de suas façanhas coletando cogumelos no outono de sua terra natal. E
olhe que alemães não parecem ser dos mais apreciadores de cogumelos. Nem mesmo os espanhois são unânimes quanto a
isto. É coisa pra bicho. Há até um ditado preconceituoso que diz "las
setas sólo las comen los catalanes y las cabras". Pois, de fato, entre os
catalães, os cogumelos representam uma paixão nacional. E também para os bascos.
Minha
viagem à Catalunha não foi programada e era para ser apenas uma espichada para
rever amigos em Barcelona e conhecer um pouco da cidade depois de participar do
Terra Madre, em Turim, na Itália. Mas calhou de ser tempo de cogumelos. Eles estavam por todo canto, no supermercado
da esquina, nos livros expostos na livraria, no Mercado da Boqueria e na mesa
de meus amigos. Um dos jantares era composto de cogumelos variados ao forno com
azeite e tomilho, que comi com gosto, com atenção aos rovellós, o rei de todos.
Em
Terrassa, cidade próxima à Barcelona, para onde se pode ir de trem, outros
amigos me esperavam com uma surpresa. No dia seguinte haveria uma saída a um
parque natural organizada pela prefeitura para coletar cogumelos, afinal
estávamos em pleno festival que inclui aulas na praça, identificação dos
cogumelos por micologistas, venda de vários tipos, brincadeira para crianças,
menus específicos nos restaurantes locais e excursões para coleta. As inscrições estavam encerradas, mas
poderíamos arriscar, falar diretamente com o guia no dia seguinte e quem sabe
ele nos aceitaria, nos informou uma
funcionária da prefeitura no sábado à noite.
Claro,
seria mais seguro irmos para Montserrat, que era a outra opção de passeio oferecida
pelo casal de amigos. Mas não, insisti. O mosteiro e a montanha estarão sempre
lá e quero muito visitá-los ainda que não seja desta vez, mas os cogumelos,
não. Precisa haver uma conjunção de
fatores para que ocorram e o momento era todo favorável. Outono, uma boa chuva
dias antes, tempo nublado mas não muito frio e o fato de eu estar ali. Não podia
dar errado.
Acordamos
cedinho no domingo de céu cinza e fomos sonolentos mas animados caminhando até
o ônibus que esperava o grupo na praça. Mariângela preferiu ficar dormindo e
nos esperar para o almoço, com um delicioso arroz de açafrão e camarão. Rui
estava animadíssimo e preparou sacola na falta de cesta e um guarda-chuvas no
lugar do cajado. Explicamos para o
motorista nossa situação de insistentes e ele repetiu o conselho da
funcionária: quem sabe o guia não os aceita?
Pois
o guia Josep não só nos aceitou, como foi simpático e solícito o tempo todo, me
chamando para mostrar espécies, posando o cogumelo para foto entre outras
delicadezas. Antes de seguirmos pelas
trilhas pedregosas do Parque Natural de Sant Llorenç del Munt i l’Obac, paramos para uma pequena refeição energética
para podermos enfrentar com disposição a subida à montanha. Não que fosse uma
tarefa muito árdua, afinal o aclive é suave, podendo ser vencido com facilidade
por gente de qualquer idade, mas faz parte do ritual. O restaurante La Pastora
atende a catadores de cogumelos e ciclistas trilheiros especialmente, mas está
aberto a quem quiser tomar um autêntico café da manhã montanhês. Duas grandes fatias
de pão quentinhas, com tomate sucoso esfregado e azeite para encharcar, ladeadas
por butifarras, que podiam ser da brancas, só com carne de porco, ou negras,
com sangue. Na dúvida, Rui e eu pedimos as duas para dividir. E, por suposto,
uma garrafa de vinho tinto da casa – simples, gelado, ácido, mas um vinho.
Depois, uma xícara de café ou chá, afinal aquilo era um café da manhã.
Nossos companheiros de aventura eram dois homens e
duas mulheres, todos muito motivados. Um dos homens, muito entendido de cogumelos, trajava roupa camuflada que ganhou da mulher – “já
que gosta disto, que faça direito”, teria dito. Aliás, pude perceber, a mulher
é a grande incentivadora dos caçadores de bolets, como mulher de pescador que
espera o marido para limpar o peixe. Rui já tinha me contado que, numa coleta
anterior, seus dois companheiros receberam várias ligações das mulheres perguntando
sobre o andamento da empreita. Nesta expedição
não foi diferente. A mulher do moço mais novo ligou algumas vezes
querendo saber como estava a cesta, se já tinha coletado alguns, que tipos, se
daria para o almoço. Mariângela não ligou para o Rui nem para mim porque nós
dois esquecemos celulares em casa. Mas não as sacolas e estávamos empenhados a
enchê-la. O ideal é que se levem cestas, pois, além de arejar os cogumelos coletados,
facilita a dispersão dos esporos garantindo fartura para a próxima temporada. O
cajado serve para afastar as folhas mas nunca para cavoucar e o canivete ajuda
a cortar os cogumelos nos pés, sem precisar arrancá-los.
Logo
na subida descobri que tenho bons olhos para perceber os cogumelos mimetizados
entre folhas outonais, porém uma fosca bola de cristal para acertar os
comestíveis. Já o primeiro, grandão e
carnudo, que encontrei era um tal de mataparents.
A outro, ainda maior, chegaram a chamá-lo aos risos de mata-família-real, já com intimidade com a brasileira. Em compensação, encontrei uns três exemplares
raros de pota de perdiu, que fica
lilaz depois de cozido. Encontramos muitos
de um tipo amarelo que ninguém queria, não porque fosse tóxico, mas dava
trabalho para preparar – tinha que tirar a película e uma esponja abaixo do
chapéu, que são amargas. O restante solta muita água, mas é gostoso. É daqueles
classificados como sem interesse gastronômico.
Ficamos com todos. Já os rovellós, bicolores, rosa e verde, carnudos
e saborosos, reconhecidos pela seiva cor de sangue que solta ao ser cortados
(daí o nome Lactarius vinosus), eram os mais disputados e também os meus
preferidos desde que o provei em Barcelona.
Coletamos ainda outros tipos como os fredolics
e uma espécie apimentada do gênero Russula
– fiz um vinagrete picante usando apenas um pedaço do chapéu e comemos com
presunto. É incrível, arde mesmo como pimenta, e não é tóxico. São não se pode
usar muito, que estraga a comida. No risoto fica ótimo, me ensinou uma das
moças.
Na
montanha, passamos por ruínas milenares
com restos de azulejos e poços de gelo incrustados na paisagem que inclui
muitos ciprestes, medronheiros com frutos doces como morangos, além de
alecrins, tomilhos e pegadas de javalis, que inspiram um jantar completo. Mas nos contentamos com os cogumelos, que crescem taludos e manchados como se
tivessem a idade daquelas pedras. E só um raminho de tomilho perfumado para
temperar. O ônibus nos deixou em frente à estação de trens e foi ali mesmo, de
volta ao asfalto da realidade mundana, que somamos para depois dividir em
partes iguais o resultado da coleta.
À
noite limpamos e fatiamos os cogumelos e os preparamos com azeite, sal e
tomilho, separadamente, para apreciar cada sensação. De companhia, apenas pão,
vinho e presunto ibérico. Todos
deliciosos, os rovellós mais ainda,
pois são densos, aromáticos, com consistência de carne macia. Agora, o prazer
de coletá-los foi maior que o de comê-los.
Além
de ser um passeio divertido e instrutivo, se o aventureiro não consegue encher
a cesta, tem a chance de passar na loja
“La màgia dels bolets”, no Mercado da Independência, em Terrassa, e comprar um
sortimento de cogumelos silvestres frescos, como fazem os pescadores de
mentira. Lá você encontra também cogumelos secos e em conserva, silvestres e
cultivados.
Para
terminar, descobri que a diferença entre espécies comestíveis e tóxicas às
vezes está em um pequeno detalhe como a cor da seiva ou um determinado anel no
chapéu. E, para ter segurança, não dá para se guiar apenas pelo desenho, que pode mudar nas diversas fases - dependendo
da idade, uma mesma espécie pode ter chapéu plano, côncavo, convexo, branco,
rosa, roxo, uniforme, manchado. Eu mesma
já fotografei diversos cogumelos Brasil afora - e nós temos muitos -, fiz curso onde disseram
que não temos cogumelos mortais, tenho
guias de identificação, mas só coleto orelhas de pau frescas que conheço bem, ou
quem sabe os de eucalipto, Ramaria flava,
que cresce no Sul, pois se até catalães que aprendem sobre cogumelos no
maternal morrem anualmente por acidentes ou tem seus fígados consumidos por
toxinas, sorte nossa que já há pesquisadores estudando o assunto com afinco, pois eu que não me arrisco. Enquanto isto, ou fiquemos na cola de um guia
experiente ou vamos de cestinha colher serralhas e catar içás, que, aliás,
estamos em plena temporada.
Endereços úteis
Prefeitura
de Terrassa, que organiza o festival: www.terrassa.cat
Loja
“A màgia dels bolets”: www.mercatindependencia.com/parada.php?id=13
O café da manhã da montanha |
O grupo |
Cestinha da Rosa |
Coleta coletiva |
Cogumelo esponja, que ninguém quer, mas é gostoso - basta tirar a espuma e a película |
Rovelló |
Pota de perdiu |
Divisão no asfalto |
Menu degustação sobre o pão - Rui e eu preparamos com o tomilho que trouxemos da montanha |
Rovelló na casa da amiga Veronika, em Barcelona |
Rovellós e rossinyons ao forno com azeite e tomilho, da Veronika |
La màgia dels bolets”, no Mercado da Independência, em Terrassa |
La màgia dels bolets”, no Mercado da Independência, em Terrassa |
jo crec que anirem dissabte a buscar bolets! beijos. v.
ResponderExcluirv. que bo saber-ho. busqui rovellós! fer això per mi. bona caça! n
ResponderExcluirUm dos meus sonhos é esse, colher cogumelos na mata, como minha mãe fazia quando criança, com a família toda, na província de Gifu , no Japão.Na época encontravam Matsutake!
ResponderExcluirA guerra acabou com a mata nativa.Pena.
Eu colhi minha primeira orelha de pau este ano, aqui perto de casa!Adorei.
Beijo
Neusa
Fiquei encantada com esse post Neide...completamente enebriada...As fotos ficaram íncriveis, aumentando ainda mais a vontade de estar por lá, colher e preparar essa iguaria. Parabéns!
ResponderExcluirAh, hoje eu li a coluna no jornal :) Me senti transportada para lá, procurando os cogumelos junto com vcs. Demais isso de buscar seu alimento na natureza. Adorei ver mais fotos aqui, reforçou a admiração. Bjs e parabéns!
ResponderExcluirNeide, você sabe a quantas anda a classificação dos nossos cogumelos daqui? Lembro que você havia comentado no blog sobre isso uma vez. Hoje não existe nenhuma literatura segura a respeito.
ResponderExcluirParabéns pelo texto do Estadão, deu vontade de estar lá!
Neide, sigo seu blog ha uns dois anos, e nao imagina a alegria que me deu saber que visitou a nossa terra de novo e curtiu a tradiçao da caça de bolets!!
ResponderExcluirObrigada pelo post, um abraço!
Neide, o post ficou sensacional! Tu chegaste a enviar as pessoas por email? Tu tens o mail do pessoal da loja do mercado?Qualquer coisa posso passar lá e avisar!E o mico de eu ficar dormindo?Hahahaha!Está todo muito legal.Beijos!
ResponderExcluirLindos demais seu texto e suas fotos, Neide! Deu água na boca! Eu e meu esposo também adoramos cogumelos e como no Brasil infelizmente não temos esse costume de colher cogumelos silvestres, nos aventuramos em produzir no nosso sítio pleurotus para nosso consumo. Com a prática, desenvolvemos um método simples e prático que descrevemos e divulgamos passo-a-passo para todos que também quiserem se aventurar: http://sitiocurupira.wordpress.com/cogumeloshobby/, espero que goste!
ResponderExcluirNeusa, não sabia disto. Que pena. Mas que bom ter achado orelha de pau.
ResponderExcluirAdriana, obrigada!
Letícia, isto lá é tão forte. Obrigada!
Leo, infelizmente não temos muitas pesquisas ainda, mas já tem gente se preocupando com eles. É um começo.
Mariângela, eu te entendo perfeitamente. Aquele domingo era dia de ficar na cama. Mas você está aí, pode ir buscar cogumelos todo outono. E também, quem iria fazer aquele arroz com camarão delicioso pra nossa volta com fome?
Simone, acho lindo o trabalho de vocês. Já até pensei em ter cogumelos em Piracaia depois de ter visto lá no site todas as explicações. Obrigada!
Um abraço, N
parabens
ResponderExcluirmuito legal
ResponderExcluirah, els caçadors de bolets! que saudade!
ResponderExcluirI Appreciate this post. Struggling with your marketing assignment due to time constraints? We provide marketing assignment help in Australia. Our team of experienced assignment experts in Australia are here to help you out. Our services are highly-efficient and affordable, ensuring that you can submit the perfect marketing assignment without stress.
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