sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

As oficinas culinárias no Senegal

Beñes sem fritura - 100% trigo free
Continuando o post de ontem, falo agora das oficinas cujo objetivo era incentivar o uso de cereais e amiláceos locais na panificação e nos produtos feitos tradicionalmente com trigo, além de introduzir outras formas de uso para os ingredientes abordados: milhete, sorgo, milho, amendoim e mandioca. Com a diminuição da dependência da farinha de trigo importada, espera-se reforçar a economia e promover a soberania alimentar. E, claro, melhorar o valor nutricional dos itens preparados, diminuir a pobreza, melhorar a qualidade de vida etc. Sem falar do menor impacto ambiental causado pelo alimento consumido localmente. 


A primeira oficina aconteceu em Koumpentoum, na região de Tambacounda, a quase 400 km de Dakar.  A segunda, num vilarejo de Louga, na região de Thiés, mais perto da capital, cerca de 200 km. 


No caminho plano para Koumpentoum, a paisagem tem cor de terra rosada seca e arenosa. Passamos por vários vilarejos parecidos - na estrada, vendedores de laranjas locais, maiores, manchadas e esverdeadas, e as de Marrocos, menores, de viva cor e casca pouco aderente como tangerinas. E também bananas, baobás, hibiscos secos e melancia, muita melancia. Aqui e ali, plantações de bissap e amendoim. A época de colher milho, sorgo e milhete já acabou ou está no fim. Uma vista bonita são as moradias compostas de várias cabanas com cobertura vegetal.  Mas isto é assunto para outro post.  


Nesta fase do trabalho, Marianne, da Solidarité, que trabalha na organização, ainda estava conosco e dormimos no mesmo quarto com estrutura muito precária. Sorte que tinha levado um corte de chita, que colocamos na porta do banheiro como cortina. O mosquiteiro que cobria a cama dela estava todo furado e, sorte, eu tinha levado agulha e linha, de modo que reparei todos os furos. A cobertura de capim seco ajuda a dissipar o calor, que ainda é forte até o meio da noite. Mas no começo da manhã fazia frio e, sorte, eu ainda tinha ainda tecido suficiente para dividir entre nós duas à guisa de lençol. Água não tinha - só a representação física de uma torneira, uma ducha e uma caixa para descarga. Havia dois galões que quando esvaziavam tínhamos de reabastecê-lo no quintal - isto quando havia água na torneira. Mas deu tudo certo, pois descobri que com menos de 20 litros é possível tomar banho, usar a mesma água para ensaboar a roupa usada no dia, se enxaguar e enxaguar a roupa com água limpa e aproveitar toda esta água usada para descarga. Água é um luxo, vamos combinar. 


A parte operacional das oficinas estava a cargo de associações de agricultores locais, mas, como disse no post anterior, as coisas por lá funcionam em outro ritmo. Quando chegamos,  o local para as oficinas em Koumpentoum ainda não estava totalmente decidido. Foi tudo resolvido na hora. O espaço para os padeiros, Michel e James, era aberto e vários homens se incumbiram de fechá-lo minimamente com cercas vegetais. Já minha cozinha era apenas um salão da Cruz Vermelha com bancadas de concreto, algumas coisas entulhadas e nada mais. Sequer havia sido varrida. Precisei pedir várias vezes para que fosse limpo um dia antes de começar. No começo bate um desespero, porque parece que nada estará resolvido até a hora do início. E realmente não estará, mas isto não parece ser um problema, porque as coisas vão acontecendo tudo ao mesmo tempo, tudo de última hora, mas sem estresse, que isto é coisa nossa.  


Alguns dos ingredientes

Medidor improvisado 

Ingredientes para o beñe

Beñes com pozinho de baobá
As mulheres que participariam da formação, que trabalham no setor informal de alimentos, chegaram dois dias antes, porque vieram de povoados mais distantes e aproveitaram a carona com os padeiros que começariam o curso antes. E ficavam ali, em frente à sala, sentadas em cadeiras, conversando, rindo, me observando, sem pressa de começar. Neste tempo, fomos ao mercado, compramos alguns poucos ingredientes e, de resto, tive que praticar a arte do improviso. Primeiro, precisei descobrir como fazer nixtamalização do milho sem cal. Por sorte, havia consultado na internet em Thiés sobre a possibilidade de usar cinza - no início, o nixtamal era preparado assim e o nome tem a ver com "cinzas". Foi a saída para alcalinizar a água, embora acho que não tenha encontrado ainda a proporção correta.  Fiz também chapatis com milhete, sorgo, milho e amendoim, mas as mulheres não gostaram muito - pareceram muito secos. O que fez mais sucesso foram os bolinhos com farinha de milho e amendoim recheados com banana que, a princípio, quis que se parecessem com blinis, dourados na frigideira untada com pouquíssimo óleo. Aos poucos, porém,  foram acrescentando mais e mais óleo de fritura até que virassem beñes, que são bolinhos fritos como nosso bolinho de chuva,  muito populares por lá entre as vendedoras de rua. Também é assunto para outro post.  Pronto, ficou com gostavam. Também apreciei a ideia, especialmente depois de ter polvilhado os bolinhos com baobá passado em peneira para virar um açúcar de confeiteiro ácido e perfumado. Todo mundo achou graça, pois nunca pensaram em usar o baobá assim. E, além de variarmos as farinhas, mantendo sempre a farinha de amendoim, fizemos uma versão salgada com peixe seco, que se chama fataya e ficou muito boa (na segunda oficina, em Louga, ficou melhor, com uma quantidade maior de peixe).  Para acompanhar as tortilhas, foi preparado  um yassa, que é um molho apimentado de cebola - também melhor na segunda oficina, com menos óleo. Aliás, usa-se muito óleo. E muito açúcar. 


Ensinei às mulheres ainda algumas noções de higiene como, por exemplo, a importância de se lavar os ovos e as bananas antes de usar - uma coisa é fazer em casa para você e sua família, outra é cozinhar para coletividade, quando todo cuidado é pouco.  E, incrível, como acataram cada dica que dei - com a de quebrar os ovos um a um separadamente para não ter o risco de perder os outros ingredientes. Mesmo quando eu estava longe, percebia o cuidado que cada uma tinha em fazer do jeito que havia ensinado. Muitas delas eram analfabetas e só uma ou duas falavam francês. Ainda assim, nos entendíamos bem, mesmo quando era hora da reza do tradutor. Embora tenha usado balança, transportava a quantidade usada para canecas ou medidores improvisados em garrafa pet cortada para que tivessem noção do volume. 



No começo, ninguém se preocupava em lavar as louças (lá fora, em bacias, no chão) ao fim do trabalho,  pela manhã e pela tarde.   Quando comecei a lavar os panos e organizar as bancadas,  logo imitaram e, a cada término, num segundo deixavam tudo limpo, as louças lavadas no lugar e os panos limpos, sem precisar pedir. Uma assistente me fez muita falta. Em compensação, as mulheres foram incríveis, ajudando no que puderam. Elas são alegres, carinhosas, delicadas, solícitas e brincalhonas - em alguns momentos, se o movimento era muito repetitivo, elas começavam a cantar e bater palmas dando gargalhadas. E queriam me convencer de que é bom ser uma entre três ou quatro esposas - todas muçulmanas. De vez em quando eu tinha que me virar com olhos marejados -  quando uma dizia ter perdido a filha de seis anos de malária, porque não teve atendimento médico, ou quando outra me perguntava se não tinha um remédio para estômago porque tinha uma dor insuportável e crônica e não tinha dinheiro para pagar uma consulta ou quando as mães carinhosas de bebês (nas duas oficinas) me perguntaram se eu não queria trazê-los para o Brasil (para lhes dar um futuro melhor). 


Ralando a mandioca - rala um pouco, come um pouco
Várias mãos trabalham juntas sempre
Na segunda oficina, em Louga, além de todas as farinhas, tínhamos mandioca. Tinha pedido fécula para as tapiocas, mas só fiquei sabendo que não tinham encontrado quando cheguei. O local da oficina também foi escolhido na hora.  Tive três espaços em construção para escolher.  Quanto à fécula para as tapiocas, tivemos que providenciar ralando 40 quilos de mandioca. Algumas tapiocas não ficaram muito boas pois parece que a proporção amilose/ amilopectina é diferente da fécula que temos aqui, mas no final começaram a sair mais finas e flexíveis.  As mulheres gostaram da aprender a extrair o amido e de comer a tapioca recheada com coco fresco ralado e leite condensado. A massa da mandioca foi usada para fazer cuscuz bijajica com o amendoim triturado, farto por lá. Na falta de cravo e canela, usamos raspas de limão, gengibre, água de flor de laranjeira. Pena que desta vez foi tudo mais rápido, porque o encerramento caiu bem no dia da festa do cuscuz. E logo cedo tivemos que terminar. 


Nas duas oficinas houve um encerramento com autoridades locais, imprensa e muitos pães de milho, sorgo, milhete e amendoim, além dos itens 100% sem trigo, como o cuscuz bijajica, as tortilhas e os beñes. Muitos disseram que vão colocar em prática os aprendizados e nossa maior vontade é que sejam também multiplicadores da ideia.  Falo das oficinas de pães e dou receitas dos beñes depois.  Por enquanto, veja as fotos. 

11 comentários:

  1. Neide, muito incrivel tudo isso, especialmente a sua flexibilidade para adaptar, improvisar, criar, melhorar! vou mostrar meu lado bem futil com o que vou dizer, mas adorei os vestidos das mulheres nas fotos. quero uns pra mim! ;-) um beijo,

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  2. Que cores!
    Lembrou-me o livro Assando Bolos em Kigali.
    Como assim"nunca tinham usado baobá desse jeito" E Quem é que usa baobá sem ser o Pequeno Príncipe??

    E como elas vão manter o conhecimento na cabeça se não sabem ler? pergunto pois eu aprendo uma coisa, na hora sei, depois.. pf! como é mesmo? Sem escrever não guardo, crente que guardo, mas não guardo.

    Coitado do Marcos!! caramba, nem posso imaginar se fosse comigo, alexandre teria ido à brasilia, embaixado e parado no senegal.

    Quero esse bolo com banana também.

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  3. Neide, muito obrigada por nos proporcionar conhecer um lugar e uma cultura que nem sempre ouvimos falar! Pessoas lindas, o colorido é maravilhoso. Seu post está fantástico! Parabéns!!!! beijos, Ro

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  4. Como nossa terra é abençoada! Como somos ricos e reclamamos.
    Não temos a mínima idéia do que é mundo.
    Os padeiros que lhe acompanharam também tem blog?

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  5. Admiro profundamente seu trabalho, sua coragem e determinação, Neide!
    Quisera ter um pouquinho disso tudo...

    Importantissimo conviver com uma realidade tão diferente da nossa. Essas pessoas são muito mais ricas do que nós, no momento em que cantam enquanto trabalham, vivem alegres e também assimilam o que lhes é ensinado.

    Os tecidos são maravilhosos, sim !

    Obrigada por mostrar um mundo ainda - quase ! - natural, e parabéns pelo belíssimo trabalho que faz !!!

    Beijo

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  6. Que relado lindo e emocionante, assim como as fotos. Sinto que ficou um pedacinho de você no Senegal. Obrigada por partilhar conosco todas as suas descobertas e nos fazer sentir um pouquinho do que você experimentou.

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  7. neide, parabéns pela sua maneira de transmitir seus conhecimentos, a outras pessoas de maneira simples e acontecendo na pratica.Dando ex: de que maneira tudo e resolvido,bela iniciativa;obrigado por compartilhar conosco, este mundo cheio de desigualdade social... abraco, fragoso de s.c.

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  8. Olá Neide!
    Que maravilha seus relatos!
    Quanta coisas novas e diferentes vc nos mostra!
    Gosto muito da sensibilidade do seu olhar, é de emocionar.
    De tudo que vc fala, fico imaginando as crianças: o olhar, a ingenuidade, a simplicidade tudo junto num ser em formação.
    Ea vida seguindo seu rumo...
    Bjs

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  9. Neide, quantas cores, cheiros, emoções, saberes e sabores trouxe dessa viagem. Essa assistente que te fez falta... quem dera! Lindo trabalho, obrigada por compartilhar tanto do bom e do melhor.

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  10. Ola Neide, nao sei se ira ver mas, amei seu post!!! Vc disse que uma ajudante lhe fez falta, entao me coloco a disposicao, se precisar... tambem sou nutricionista e adoraria poder fazer algo deste tipo! Parabéns por tudo!!! Meu email alenlim@gmail.com

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