PANC DA PERIFERIA
Este era o tipo de planta que se cultivava no fundo das casas e se enganchava nas cercas que separavam os quintais nas periferias, reproduzindo na cidade um pouco da cultura da roça daqueles migrantes de todo o Brasil. Um tipo de provisão perene para toda a vizinhança, embora só comêssemos as vagens verdes. E a mãe não se cansava de preparar daquele mesmo jeito, sempre com as vagens cortadas ao meio deixando escapar uns feijões imaturos que se misturavam com o alho picadinho e, às vezes, com o toucinho defumado. No final, a salsa e cebolinha cortados grosseiramente para conservar o perfume e a coloração viva faziam contraste com o verde claro do legume cozido. Com o arroz ainda úmido e fumaçando, feijão e sardinha frita, o prato era um clássico.
A textura cremosa e aveludada na boca é uma das minhas mais
ancestrais e inesquecíveis experiências sensoriais. Orelha-de-padre - era este
o nome - e a taioba, segundo minha percepção infantil, estavam na mesma categoria de comidas de
conforto tátil. Se o sabor fosse ruim, claro, a textura não seria suficiente
para conquistar. Um amargo ligeiro com
discreto adocicado e notas herbáceas formam, no entanto, uma combinação
agradável até para crianças.
Há muitas variedades de mangalô mundo afora, mas falo daquele de
flores brancas e de feijões vermelhos que povoa minhas lembranças e é o mais
comum de ser encontrado por aqui – muitas vezes apenas como planta para
adubação verde nos cultivos agroecológicos.
Meus avós o cultivavam no sítio e meus pais e vizinhos plantavam
aqui em São Paulo, de modo que entre nós era um legume tão costumeiro quanto a
vagem. Mas isto tem algumas décadas e de lá pra cá a espécie, que já não tinha
cultivo comercial, caiu em completo desuso e está incluída no livro dos pesquisadores
Valdely F. Kinupp e Harry Lorenzi como uma panc (planta alimentícia não
convencional).
Eu nunca perdi de vista esta panc da periferia e assim que tive um
muro para chamar de meu tratei de aumentar sua altura com uns fios para dar
suporte à trepadeira. Assim, tenho folhas,
flores, vagens e feijões em vários estágios durante o ano. A planta toda, hoje
sei, é comestível. Até a raiz pode ser aproveitada se a planta for cultivada
como a jícama ou o jacatupé, podando sempre a parte vegetativa, para que a
batata ganhe mais amido. De minha parte, não faço questão da raiz, que
arrancada mataria todo o pé, se com ele tenho alimento farto para duas casas. É
que a planta lança seus longos ramos sobre qualquer aparo que lhe faça as vezes
de um tutor, sem respeitar fronteiras.
No inverno, o pé de mangalô fica menos vistoso, perde um pouco das folhas, mas
continua ativo. Já na primavera, ele se renova com folhas tenras e flores
vistosas ao mesmo tempo que novas plantas começam a surgir a partir dos feijões
maduros que caíram. Poucos dias após o
aparecimento das flores, as vagens já podem ser colhidas e o auge da produção
se dá entre maio e agosto. São espessas e planas, com projetos de grãos dentro
delas. São estas que, quando cozidas, têm textura aveludada.
Os estágios que se seguem permitem que tenhamos na mesma planta
diferentes ingredientes, afinal vagens e feijões secos têm usos diversos.
Quando os feijões começam a engordar, as vagens vão ficando finas e mais
claras. Neste ponto, elas podem ser abertas e descartadas para que se
aproveitem os grãos verdes como se
fossem ervilhas, com ou sem pele – ela escorrega fácil quando os grãos são
apertados um a um e os feijões ficam mais delicados na mordida. No interior da Bahia não é difícil encontrar
nas feiras, quando é época, os grãos do feijão mangalô assim, já pelados. Poucos dias depois, os grãos começam a
avermelhar e continuam tenros para comer como feijão verde. E quando as vagens
se desidratam completamente, os grãos estão secos e podem ser debulhados,
estocados e preparados como os feijões que compramos nos mercados. Demolhados e
cozidos, eles são deliciosos e lembram um pouco sabor e textura de favas e
caroço de jaca, conservando um pouco daquele amargo da vagem fresca.
Aliás, o toque amargo e o bom sabor que sentimos nos feijões e nas
vagens tem a ver com a presença de glicosídeos cianogênicos, que geram ácido
cianídrico, como nas mandiocas bravas ou nas amêndoas amargas. Porém, o perigo de
intoxicação é eliminado com a cocção.
Se quiser se aprofundar no estudo deste
feijão, vai se deparar com conflitos sobre o nome científico, Lablab
purpureus e Dolichos lablab, por exemplo, e quanto à sua origem,
África ou Ásia. O que se sabe é que
hoje está espalhado por vários países tropicais e subtropicais da América,
África e Ásia e que ao Brasil chegou com africanos, vindo daí o nome mangalô. Nomenclatura
é um grande problema das plantas exóticas em relação às nativas, pois ganham
vários nomes locais emprestados de outros donos, relacionados ao formato, ao uso
ou à origem, tais como orelha-de-padre,
ervilha orelha-de-padre, feijão do Egito, feijão de pobre etc. Mangalô e lablab são meus preferidos, mas
pela tradição a orelha do padre continuará a arder por aí.
Agora, algo fascinante de ver quando se
embrenha nas pesquisas sobre o uso da planta na África e na Ásia é a
diversidade de pratos feitos com suas partes. Muito diferentes do que costumamos
preparar por aqui, especialmente as vagens. As folhas jovens são usadas como espinafre
(fiz um purê de mandioca com as folhas cozidas e trituradas e ficou muito bom),
os grãos maduros e secos podem ser
germinados ou fermentados e as vagens planas, cortadas em tiras e cozidas, fazem diferentes saladas, só para citar
alguns exemplos.
Se você frequenta feira de produtores,
pergunte pela planta (talvez eles a conheçam como orelha-de-padre). Já
encontrei em sacolão, mas não é comum. E se puder plantar, as sementes são
encontradas em lojas virtuais e hortas
urbanas. Saiba que a planta é rústica e se adapta a qualquer solo desde que
tome sol e receba água. Há variedades bastante
ornamentais de flores e vagens roxas que às vezes aparecem nos mercados
orientais do bairro da Liberdade.
Para ampliar estas informações e eu
recomendo, confira os nomes que o feijião mangalô recebe mundo afora: Lablab, frijol jacinto, hyacint bean,
quiquaqua, caroata chwata, poroto de Egipto, dolique lab-lab, dolique d'Egypte,
fiwi bean, chicarros, frijol caballo, gallinita e frijol de adorno entre tantos
outros.
Como preparar
As vagens: lave bem e puxe o fio que há entre as duas partes da vagem. Cozinhe em
água levemente salgada por um minuto e escorra. Use inteira ou picada em
saladas, refogados, sopas, fritadas etc.
Os feijões: o tempo de cozimento vai variar conforme a maturação dos grãos. Feijões
verdes devem cozinhar em cerca de 20 minutos mais ou menos. Para tirar a pele, basta puxá-la grão por
grão. Os secos devem ser deixados de
molho por 12 horas, escorridos e cozidos na pressão em nova água por cerca de
20 minutos. Ficam bons com carnes gordas.
As folhas: escolha as jovens e tenras e cozinhe em água salgada até que fiquem
macias – cerca de 15 minutos. Escorra, pique e use em sopas, refogados e como
complemento verde para massas de panqueca, macarrão ou nhoque, por exemplo.
VAGEM MANGALÔ REFOGADA
1 colher (sopa) de azeite
3 dentes de alho picados
2 colheres (sopa) de bacon picado
1 colher (chá) de pimenta dedo-de-moça picada
200 g de vagem mangalô (lab lab) sem o fio, aferventada e
cortada ao meio
½ colher (chá) de sal ou a gosto
Água quente
Pimenta-do-reino triturada na hora a gosto
Salsinha picada a gosto
Aqueça o azeite com o alho e o bacon e espere o alho começar a dourar.
Junte a pimenta e a vagem. Tempere com sal, junte um pouco de água,
misture delicadamente, tampe a panela e deixe cozinhar por cerca de 5
minutos.
Prove o sal e corrija, se necessário. Espalhe salsinha por cima e sirva
como acompanhamento.
Rende: 4 porções
Na horta comunitária |
Adorei conhecer os tipos e vou tentar esta receita, muito bom!
ResponderExcluirBeijos
CamomilaRosa
A coluna veio na hora muito certa! Fiz a primeira colheita do nosso pé hoje e logo logo irão para a panela. Primeiramente no refogado clássico, tal qual permaneceu tanto tempo na minha memória gustativa.
ResponderExcluirAdorri saber que as folhas são comestíveis! Come-se é sempre uma excelente e completa fonte!!
Neide, Essa planta cresce colada ao muro, se for conduzida? Ou cresce somente em cercas, pois não se dá bem com o calor do muro? Estou procurando uma trepadeira que ajude a criar um micro-clima mais agradável pra minha horta - e queria uma de comer, claro. ; -) Alguma sugestão? Abraço!
ResponderExcluirOi. Se fizer um varal preso ao muro , além de criar um microclima favorável aínda terá grande produção, se não faltar água.
ExcluirMeu mangalô é cor de creme. Plantei o primeiro pé e tive que cortar, porque a vizinha não parava de reclamar, com toda razão, do abuso da planta que teimava em invadir o lado dela. Plantei do outro lado da casa. Tenho que podar sempre, ou ela é capaz de entrar por baixo das telhas. Mas tendo tentado convencer os feirantes a plantar nas roças deles, para eu poder comprar depois, e vendo que nem ao menos um deles fez a tentativa, fico eu mesmo cuidando e tirando proveito do meu. Tem muita gente que não sabe o que está perdendo. E foi você que me fez conhecer e procurar (muito) por esta delícia.
ResponderExcluirMeu tio tem no quintal , aqui no RS. Só que no inverno ele seca todinho. Será o clima ou falta de cuidados? Plantei um e ele acaba de brotar aqui em casa.
ResponderExcluirEssas leguminosas são suscetíveis ao frio intenso, principalmente geadas.
ExcluirMeu tio tem no quintal , aqui no RS. Só que no inverno ele seca todinho. Será o clima ou falta de cuidados? Plantei um e ele acaba de brotar aqui em casa.
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirEspero que ainda possa responder essa postagem... Ontem pela primeira vez comi a vagem do feijão mongolô, como chamaram aqui onde moro, zona de expansão de Aracaju. Cozinhei na água com temperos durante uns 5 minutos,na pressão. A vagem já não estava tão verde, mas o feijão sim, bem grande. Percebi que a vagem estava muito fibrosa e apenas experimentei algumas, comi algumas mais verdes, que o feijão ainda estava miúdo. Tirei o feijão da vagem e comi vários... Bem, acordei com os olhos inchados, abaixo dos olhos, na verdade, bolsas inchadas no topo da bochecha, bem abaixo dos olhos. Será que foi uma reação alérgica? Não comi nada de diferente, além do feijão...
Luciane
A cocção elimina as toxinas. O ideal e utilizar as vagens tenras, quando os grãos estão pouco desenvolvidos. Refogado fica ótimo
Excluirporque meu mangalo fica amargo...
ResponderExcluirOnde posso consegui as sementes pra plantar aqui no Rio de janeiro não consigo encontrar 😞
Excluirporque meu mangalo fica amargando...
ResponderExcluirmeu nome -denilson
Bom dia primeiramente vc deixa ferver e escorre aquela água depois faz um refogado e cozinha
ExcluirTenho bastante semente seca, se vc quiser posso te mandar
ExcluirRitaalcara@outlook.com
Meu nome e jak
ResponderExcluirMeu nome e Jak moro em brBrasíl tenho um pé de Mangalô tem uns 3 anos só que tava lindo com flores e feijão derrepente tá secando as folhas teve gente mexendo com veneno perto sera q e normal ou foi envenenado?
ResponderExcluirSocorro! Preciso de sementes! Pode me vender? Suplico!!!
ResponderExcluirGrato pela informação, pois fiquei surpreendido com tamanha utilidade do feijão mangalô.
ResponderExcluirConheço de muitos anos esse legumes, mais não sabia se poderia aproveitar quando os grãos secam
ResponderExcluirlembro demais da minha mãe fazendo esse feijão no fim de semana... tinhamos muito plantado e as cabritas gostavam das folhas. Uma vez cortei o pe mais bonito que ficava na frente de casa, sem querer com a roçadeira, ai fiz uma cirurgia e prendi de volta com fita durex bem enrolada e fiz um monte de terra em cima. podei uma parte das ramas e não é que o pé vingou?
ResponderExcluirainda devo ter alguma semente guardada, vou ver se germina.
Hoje acordei lembrando desse feijão. Senti até o gosto, o cheiro. Lembrei da minha mãe colhendo as vagens, nas cercas do caminho de casa. Que saudade! Abri o Google pra pesquisar sobre e encontrei esse artigo maravilhoso, completo. Muito obrigada!
ResponderExcluirEncontramos um pote com várias sementes de feijão bangalô nas coisas da minha falecida mãe. Não sei se vão germinar pois devem ter uns 15 anos, mas não custa tentar. Coloquei alguns em papel toalha umedecido dentro de um pote simulando uma estufa e outros plantei direto em sementeira própria. Espero que brotem 😉
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