Venha cá, Neide, eu vou lhe mostrar o lugar mais lindo que você nunca viu, o lugar que você vai guardar no seu coração, que você vai querer voltar toda vida aqui, que é o lugar mais lindo de lindo do mundo, que você vai dizer pra todos seus amigos, que você nunca na vida vai esquecer, calma, calma, que está chegando, você vai ter uma surpresa, que você vai ficar emocionada de ver, que vai contar pro seu pai e pra sua mãe que viu um lugar mágico de maravilhoso. E assim Joaninha, filha de Nenê, irmã de Pietro, sobrinha de Jussara, neta de Joana, foi saltitando com pezinhos descalços se arriscando nos espinhos de xique-xique e cabeça-de-frade, me conduzindo pelas mãos, emendando uma palavra na outra sem vírgulas mas com ritmo, fantasiando frases adultas. Pietro, mais tímido, seguia atrás, em silêncio, correndo pra compensar os passos curtos.
Viu, eu não tinha razão? Miúda, atravessou a cerca de arame farpado como uma cabritinha, seguida pelo irmão, pra me mostrar de perto. Confesso que tive que disfarçar meu ar de decepção quando vi uma pocinha rasa quase barrenta e esverdeada no fundo de um poço de pedra - um pequeno açude. Mas disfarcei bem, a tempo de perceber a importância daquela pequena poça de água que ainda resiste sob o sol forte e a estiagem de meses. Imaginei a beleza daquela visão na época das chuvas. É esta água, que sobe por força de motor até a caixa d´água, que abastece a água encanada da casa destinada para banhos e limpeza e que tem cheiro de lodo. Para beber e cozinhar, a água limpa, clara e inodora, vem da cisterna, que recolhe água no período das chuvas.
Há por lá também quem tenha dom de encontrar cacimbas (poço, como conheço). Algumas pessoas, usando hastes de arame, galhos ou cipós, segurados em duas mãos, tem sensibilidade para detectar onde tem água no subsolo. Segundo Joana, tem gente que descobre não só o ponto, mas sabe a qualidade, a profundidade e a vasão. Há quem não distingua água de minério, há quem não saiba a vasão nem a profundidade e há aqueles que não distinguem água salobra de água boa. Então, os que acertam sempre são excessivamente requisitados para um trabalho que não se costuma cobrar. Mas a perfuração de cacimbas também custa caro e os pontos não são encontrados em todas as propriedades. Veja um vídeo sobre hidroestesia aqui.
Um grande açude no caminho para Bendengó - BA |
As cisternas são fundamentais |
Nas nossas andanças por Uauá, notei que a água limpa de beber é guardada com zelo em lugar de destaque da casa. Os filtros recebem toalhinhas e capas de crochê ou pano bordado denotando a reverência. As canecas usadas para servir, areadas como prata, dão destaque ao líquido precioso.
Para que nunca nos esqueçamos de que água é vida, é bom de vez em quando ler e/ou assistir ao Deus e o diabo na terra do Sol, O Quinze, Guerra de Canudos, Vidas Secas.
Ontem começou uma série sobre o assunto, na Record. Veja a lá o lugar por onde andei. A primeira parte do vídeo está aqui. Segue hoje à noite no Jornal da Record.
Já falei da água no Senegal - veja lá, a problemática é parecida.
Nunca me esqueci da criança que comeu mandioca brava em "Vidas Secas". Ainda bem que as de Uauá, pelo visto, tem mais sorte. Qual é o segredo para fazer brilhar os utensílios de alumínio daquele jeito, com tão pouca água à disposição? Bjs. Izabel
ResponderExcluirPS. Acho "Morte e Vida Severina" também muito representativa da vida sofrida do sertão nordestino.
Izabel,
ResponderExcluirBoa lembrança! Não me lembro disto da mandioca brava no "Vidas Secas", mas no "O Quinze". O menino come, se rola de dor e morre. Tem também no Vidas Secas?
Um abraço,
N
Acho que não, Neide. Na verdade já faz muito tempo que eu li ambos os livros e achava que era em "Vidas Secas". Bjs. Izabel
ResponderExcluirEssas fotos dos filtros com copos de alunminio muito bem areados são a cara da minha infância. Onde eu nasci, graças a Deus, havia muita água. Mas minha mãe também tinha que andar com baldes de água na cabeça para que bebessemos a melhor água do nosso povoado.Tive a sorte de nascer em uma parte do Nordeste onde a carência de água não é tão grande. Na verdade depois virou brejo o lugar onde nasci, ou seja água sempre. Lindo post.
ResponderExcluirAbraços!
Hildeny Medeiros
Olha, Neide, esses seus escritos são tão bons, mas tão bons, que você devia pensar em fazer um livro com eles.Esse post vale por mil campanhas sobre preservação da água. É antropologia, filosofia, tudo junto. É botânica, culinária, aventura. E, acima de tudo, coração. Abraço.
ResponderExcluirMari
Aiaiai, to eu aqui às lágrimas com a história da água, das canequinhas brilhando, do entusiasmo contagiante da Joaninha! Lindo mesmo! Bjs e obrigada
ResponderExcluirNeide,
ResponderExcluirSempre amei o blog, mas essa série de posts, por falar de uma área que tem a ver um pouco com a minha infância, me deixou especialmente emocionada. Sou antropóloga da alimentação - no momento, estudo comida baiana - e seu blog é uma fonte linda de informações.
Não resisti e fiz uma menção pro seu blog no facebook, porque você é merecedora de todos os comentários positivos que puder ter. Como você não está por lá, transcrevo aqui a menção: "A Neide Rigo é alguém que eu queria ser um pouquinho. Ela é nutricionista, mas também é dotada de uma sensibilidade antropológica tocante pra falar de comida (além da cachorrinha no pé da pia também se chamar Dendê!). Já rodou um bom pedaço de mundo, observando panelas, tábuas, pessoas e pratos cheios. E compõe relatos muito lindos, em seu blog, o Come-se. Depois de sua última viagem pra Uauá, na Bahia, para o Festival de umbus, achei que devia partilhar com vocês o primor que é a série de posts dela sobre o assunto.
Começa aqui: http://come-se.blogspot.com/2012/03/uaua-parte-1.html
Mas vale ler o blog inteirinho!"
Um beijo, Neide! Keep it up!
Hildeny,
ResponderExcluirfiquei sabendo pela Eliane que quando não havia palha de aço, as canecas em areadas literalmente com areia bem fina em bucha improvisada com fibra de cisal.
Mari, obrigada pelas palavras e incentivo. Eu gosto mesmo é de escrever blog.
Letícia, a Joaninha está indo pro mesmo caminho da avó Joana.
Taís, poxa, um elogio desse vindo de uma antropóloga da alimentação é pra me deixar muito envaidecida. Obrigada!
Um abraço, N
Neide
ResponderExcluirComo não ficar emocionada. Pelo relato, pela Joaninha, pelas canecas, pelo açude (ou poça d'água :)). O Brasil de milhares de faces, abundância de histórias e imagens. Aqui no RS chove neste exato momento muitos milímetros de água... abundância em outras formas.
Só tenho a agradecer e reafirmo, quando vieres para o sul, nosso sítio está totalmente a tua disposição.
Beijo grande
Estou adorando essa série de textos! Será que ainda vai ter um texto específico sobre a festa do umbu e/ou sobre o trabalho da Coopercuc?
ResponderExcluirAbraços, Marcelo
Oi Neide,
ResponderExcluirLeio seu blogue já tem um tempo e gosto dos teus posts de comida, mas os que me interessam mais são esses sobre as diferentes culturas e formas de existência. Adorei teus posts sobre o Senegal, mas nunca comentei. Esse aqui foi lindo, grande sensibilidade a tua, em falar da forma como a água é armazenada, com uma certa deferência... Enfim, obrigado pelo blogue, é excelente.
Paulo
Paulo, fico feliz de saber que arruma tempo para ler meu blog - e ainda comentar. Obrigada, um abraço, N
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