Lembra que eu prometi falar do melhor pirão que já comi, no restaurante Caetês, lá em Paraibuna? Pois estava esperando até o momento de testar a receita, o que fiz nesta semana. Fomos lá com o amigo João Rural, grande pesquisador da comida e costumes dos povos do Vale do Paraíba. O assunto "invólucros" da aula do Paladar ainda estava fresco (o efeito residual daquelas comidas embaladas você ainda vai sentir durante várias quintas-feiras) e foi um alento ir a um restaurante com este nome, que combina culinária caipira com a caiçara com todas aquelas influências africanas já indissociáveis da nossa cultura. O proprietário, Denis Dreaux Junior, já foi gerente em outros restaurantes mas agora está assumindo carreira solo num espaço agradável, com janelões, terra para plantar, bananeiras na porta (eu só tiraria aquele balcão enorme de granito, resquício da antiga ocupação do imóvel) e muitos projetos.
A comida fica aquecida em panelas pequenas num grande fogão de lenha que fica num canto do salão, para quem não quer esperar. Mas você pode também pedir a la carte seu peixe na folha de caetê.
Espero que nossos palpites - do João, do Marcos, da minha irmã, do cunhado e meu - não tenham ofendido mas incentivado o Denis a levar o peixe à mesa ainda embalado na folha. É que, embora a promessa fosse o peixe na folha, à mesa chegou um filé dourado apoiado sobre uma folha bem limpa, só colocada no prato de enfeite. Protestamos. Cadê nossa folha toda queimadinha, dourada? O vapor cheiroso do pacote que sonhávamos embaçar nossos óculos e assanhar nossas papilas nos foi roubado. Cadê? Tarde demais, foi pro lixo.
Quis ir à cozinha recuperar nossos invólucros. Denis, simpático, me mostrou como fazia. Embalava os filés, dourava na chapa, jogava fora o caetê queimado, dourava o filé um pouco mais na chapa quente e levava à mesa o peixe despudorado, desvestido, bronzeado. Pois queremos o prazer de despi-lo. Denis nos mandou, então, o peixe pudico, mais pálido e discreto com suas vestes. Ao abrir o pacote, não é o dourado que nos chama mas o vapor de aromas. O caetê tem um perfume diferente da folha de bananeiras e, sendo a bananeira asiática, era esta a folha de embalo dos nossos antepassados índios. Aliás, João sempre faz questão de afirmar: "... todo mundo fala em folha de bananeira usada peslo índios, mas aqui não tinha bananeira. Os índios mudaram a tradição assim de repente?". Bem, eu gosto das duas, caetês e bananeiras, ambas conferem um perfume muito bom à comida. Só falta agora o Denis adotar um peixe da região em vez do filé do asiático Panga, mais barato que a tilápia regional, mas vamos por parte, que é só o começo.
|
O primeiro chegou assim |
|
Cadê nosso caetê queimado? está no lixo |
|
Ah, agora sim, muito mais elegante! |
|
Aromas quentes e aprisionados são soltos à mesa |
Este post não era pra falar do peixe na folha, e sim do pirão na folha ou melhor, da moqueca na folha. Ou, sendo mais precisa, da poqueca. Como quase todo mundo eu achava que moqueca vinha de moquém, que é aquele equipamento usado pelos índios para conservar pela fumaça e leve calor peixes e carnes. Parece que não. O moquém não é usado para preparar alimentos, mas apenas para desidratar e conservar. A carne e o peixe moqueados terminam de cozinhar depois, no momento de servir. Então, a moqueca caipira (esta, tem aqui) vem de poqueca, que é o jeito de cozinhar embalado - no borralho ou na chapa quente do fogão.
Veja o que diz o João Rural: Sempre li a origem de pokeka, como sendo algo embrulhado ou alimento embrulhado. Sempre achei em dicionário tupy que moquém é uma grelha, feita de madeira, de assar as comidas. Então, a meu ver a evolução de moquém para moqueca fica um pouco fora de sentido. E a pokeka antiga era mais assada na cinza ou brasa, mas também podia ser moqueada. Pode vir daí a confusão. Acho que merece um pouco mais de pesquisa sobre o assunto.
|
A moqueca, base para a poqueca ou pirão |
|
As poquecas embrulhadas vão para a chapa só para dourar |
Bem, fui pesquisar no Câmara Cascudo e em alguns artigos. Acho que este, da Ana Maria Pinto Pires de Oliveira, do Departamento de Letras, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS, que fala sobre as unidades lexicais classificadas como brasileirismo/ regionalismo por Aurélio Buarque de Holanda, vale uma leitura, caso se interesse por isto. Para ver o texto inteiro e as referências bibliográficas, faça dowload do artigo aqui. Agora, reproduzo só um trecho:
Por fim, temos a unidade léxica moqueca que, segundo o Dicionário Aurélio, é "prato típico brasileiro, em geral de peixe ou de marisco ... e que consta de um guisado temperado com coentro ... sobretudo com leite de coco, azeite-de-dendê e pimenta-de-cheiro", tem étimo quimbundo e um sinônimo regional (PA), poqueca. Registra também Aurélio o vocábulo moqueca, estruturado a partir de moquear, por influência de moqueca, caracterizando-o como um brasileirismo do AM, decrevendo-o como "o peixe moqueado envolto em folha de bananeira". Já Teodoro Sampaio (1987, p.285) assinala que moqueca é vocábulo de origem Tupi, "apesar de alguns escritores afirmarem que é africano". Esclarece o autor que "o assado de peixe guisado, envolto em folhas de bananeira, feito pelos índios era chamado pokeka, de que se fez moqueca, corruptela de moqué ou po-ké que significa feito embrulho, o embrulhado, o envolvido." Daí o sinônimo regional usado no Pará. Esta lexia foi dialetalmente marcada como um brasileirismo geral. Também Antenor Nascentes (1988, p.426) atribui-lhe étimo tupi mokeka, significando "feito embrulho". Em meio a esses desencontros Câmara Cascudo (1968, p.236) também menciona a existência de dois tipos de moqueca, uma de origem africana, cujo preparo recorre ao leite de coco, ao azeite-de-dendê, usando peixe ou camarão e outra, a moqueca indígena, mais seca, envolta em folhas de bananeira e assada em fogo lento ou no borralho. Menciona também esse autor que a receita indígena da moqueca é ainda feita pelos índios, mas que já se perdeu completamente no âmbito da sociedade, tendo em vista a preferência pela receita de procedência africana. Encontramos em Beaurepaire-Rohan (1956, p.166) o registro da unidade léxica moqueca definida como "espécie de iguaria feita de peixinhos ou camarões, tudo bem apimentado e envolto em folha de bananeira". Informa ainda esse autor que no Pará o alimento assim preparado tem o nome de poqueca. Explica o autor que, além dessa espécie de moqueca, que é seca, "há também outra feita de peixes ou mariscos, com molho de azeite e muita pimenta". Entendemos que a lexia moqueca tem procedência Tupi e representa uma iguaria preparada de modo diferente, pois usa apenas o peixe e a folha de bananeira para envolvê-lo, costume esse difundido sobretudo na região Norte do país (Amazonas e Pará), área na qual houve grande concentração de vários povos indígenas. A mesma iguaria foi recriada, em termos de ingredientes, sob influência africana que a temperou a seu gosto, transformando-a em alimento feito com peixe e camarão, azeite-de- dendê, leite-de-coco, pimenta e ervas, conforme seu habitual paladar. Parece ter havido alguma confusão em relação ao étimo do vocábulo moqueca e os diferentes modos de preparar essa iguaria. Assim, o preparo desse alimento terá suas variações conforme a realidade sociocultural de cada comunidade. Pela semelhança verificada no preparo deste alimento e, sobretudo, pelo fato de a receita de tendência africana ter sido a mais difundida em várias regiões do país, a iguaria ficou conhecida como um alimento de origem africana. Certamente em razão disso, também a lexia foi considerada, por alguns estudiosos, como de procedência africana. De: Ana Maria Pinto Pires de Oliveira - Alia, São Paulo, 42(n.esp.): 109-120,1998
|
Um pouco mais na chapa e ele fica dourado como se vê na primeira foto |
|
Dourado ou não, não sobra nada. Com caipirinha de limão rosa então... |
E agora uma referência ao moquem dos Tupinambás, no século 16: Quando querem preparar uma comida de peixe ou de carne, que deve durar muito tempo, deitam o peixe ou a carne sobre pequenos paus à altura de quatro palmos acima do fogo, que fazem em baixo, de tamanho adequado, deixando o alimento assar e defumar até que fique completamente seco. Quando mais tarde querem comê-lo, cozinham-no de novo. Chamam a esta comida moquém.
1554/ Enseada de Mangaratiba, Rio de Janeiro
STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil (1547-1554). São Paulo, Belo Horizonte, EDUSP/ Itatiaia Editora, 1974. p. 164
Ah, sim, eu ia falar do melhor pirão que já comi (e pirão vem de pira, pira é peixe e por aí vai...). Denis ora o chama de pirão, ora de poqueca e, feito com mandioca ralada, em vez de farinha, fica muito saboroso, com uma textura muito macia, como um nhoque quase. Ele primeiro faz uma moqueca com filé e usa todo o preparo para o pirão, mas você pode separar uma parte, como ele complementa na receita que me deu e que você pode interpretar ao seu modo (afinal, estas receitas são feitas intuitivamente aumentando um tempero aqui, diminuindo outro ali). Denis se sentou conosco e foi recompondo a receita que faz de cabeça. E todos os conceitos de moquecas e poquecas estão ali, afinal leva leite de coco e o dendê, influências africanas que foram para a panela com o peixe para fazer a moqueca baiana, e o açafrão-da-terra, asiático, amplamente assimilado por todo o Brasil e é simplesmente dourado na chapa, mas poderia ser também no borralho ou na brasa, pois o pirão já está cozido. O que importa é que este pirão é de pirar. A minha interpretação vou deixar para o post de amanhã, que este já está indo longe demais, já está na hora de almoçar e partir para outros trabalhos.
|
Clique para aumentar e ler melhor |
Por enquanto, fique com a fórmula que ele me deu. Se quiser fazer, já adianto que na minha receita usei apenas 3 xícaras do caldo e 300 g de mandioca ralada - ficou diferente da dele, que usa a moqueca toda, feita com filé. Você faça como quiser que, tenho certeza, nunca ficará como a do Denis (ainda assim vai ficar deliciosa). Agora, o melhor mesmo é se você puder ir comer esta poqueca lá no Caetê. Vale a pena. Ah, e tem caipirinha de limão rosa (com ou sem pimenta).
|
Denis e as folhas de bananeira na porta da cozinha |
|
Darly, Marcos e João Rural no salão |
|
Tem também lojinha com ovos caipiradas em cama de folhas |
|
E doces regionais |
Restaurante Caetê
Rodovia dos Tamoios Km , 35 - Bairro Caracol - Campo Belo - Paraibuna, SP - Tel. 12 3974-7105
Quero provar essa folha!
ResponderExcluirA cara e ótima.
Jesus!!!!!!
ResponderExcluireu entrei por acaso neste blog e juro, fiquei com fome e tb com vontade de sair a fazer coisas.
Amei, amei, amei.
Vou seguir e seguir e seguir.
Parabéns!
Um abraço carinhoso e o meu muito obrigada.
Tânia
www.nossascoisasecoisas.blogspot.com
Incrível a sua pesquisa da nossas raízes, e das coisas de nossa terra, tão fabulosa em ingredientes, um Balsamo nesse óasis de azeites trufados , e copias mal feitas .
ResponderExcluirparabéns , adoro seu blog.
Neide, desculpe minha ignorância, mas a mandioca ralada no pirão para fazer a poqueca é crua ou cozida?
ResponderExcluirIzabel
Neide, o Azul Marinho também é uma moqueca?
ResponderExcluirNeide,não sei se já falei aqui mesmo mas em Caçapava, cidade onde o Ocilio já morou ,nos aniversários mesmo de crianças,era comum na década de 50 e mesmo 60 servirem moqueca de galinha, era este pirão bem encorpado envolto em folha de bananeira, bem apimentado,feito com galinha caipira.Era delicioso!Mais tarde passaram a fazer embrulhados em papel alumínio, não é a mesma coisa.Nos aniversários de minhas filhas,na década de 80, em SãoJosé dos Campos eu fazia as tais moquecas para relembrar meus tempos de criança.Fiquei feliz de você ter mostrado como se faz.É desse jeito mesmo que eu conheço.
ResponderExcluirTambém fiquei feliz de ver você falar da taioba. Em casa de minha mãe comíamos sempre esta verdura.Hoje, acho às vezes, emÁguas da Prata, achava em terrenos baldios, ninguém dá valor, mas é muito gostosa. Corta-se mais grosso do que a couve e fica muito macia. Para acompanhar um frango caipira com angu não tem igual.
Abraços,
Dalva
SEMPRE FAÇO PRATOS NA FOLHA DE BANANAS ESSAS RECEITAS SÃO INOVADORAS,OBRIGADO MINHA Família ama
ResponderExcluirola eu sou estrangeiro e moro em sao paulo estou na procura da folha caete não se onde posso comprar pra fazer um produto de meu pais caso alguém tivera informação pode-me chamar no whatssap (11) 994318699 obrigado
ResponderExcluirOlá vc vai encontrar a folha do caete em meio a mata atlântica, em Caraguatatuba é bem fácil de encontrar, mas nem todos conhecem,se quiser entrar em contato comigo é só me adicionar no Facebook Marcy Cabral ou email cabralmarcy@hotmail.com boa sorte
ExcluirOlá o blog é bastante interessante, sou caiçara de Caraguatatuba, minha irmã morava em Paraibuna hoje ela não vive mais lá, mas me lembro muito bem de quando eu era criança eu ia na casa dela e comia pamonha no caete, hoje com 53 anos ainda me lembro do cheiro e do gosto, é impressionante como a folha do caete é aromática! As vezes quando vou a Caraguatatuba ainda faço pamonha e pirão no caete aliás se deixar embrulho tudo no caete.rs. Amo minhas raízes caipira do Vale do Paraiba a minha herança da roça carregada no fogão a lenha, beber água da bica, maracujá de cerca, requeijão de prato! Que delícia! A se as pessoas de hoje soubessem do quanto era delicioso os sabores da roça! Me lembro quando criança que minha mãe fazia pamonha no caete era festa, paçoca de amendoim no pilão, QUE SAUDADE! Hoje sou chefe de cozinha e sempre que posso eu vou para Caraguatatuba e me escondo no refúgio em a mata atlântica onde é mais fácil encontrar a folha, retiro algumas e levo pra casa pra cozinhar com elas, vida boa..RS deliciosa comida! Parabéns pelo blog compartilho de sua experiência degustativas!
ResponderExcluirOlá sou do Amazonas e desde meus bisavós a poqueca (eles chamavam de puqueca) de peixe. Meu pai fazia com sardinhas todas recheadas com uma vinagrete e cheiro verde com azeite. Era um embrulho grande de uma folha toda de bananeira e pra mais de 50 sardinhas. Muito farto. Acredito ser tipico da culinária indigena brasileira e não africana. O moquem que é um defumado de ancestrais antigos. A moqueca sim que é o cozido de peixe,frutos do mar talvez tenha a influencia portuguesa-africana.
ResponderExcluirMuito legal o post. Tem lembrança afetiva. Obrigado.