quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Receita do Chibé da Mara e delícias de Dona Brazi no Tordesilhas


Mulheres de verde-e-amarelo. Dona Brasi, de São Gabriel da Cachoeira, e Mara Salles, na cozinha. Tordesilhas unindo terras descobertas e a descobrir
Dona Brasi é aquela cozinheira talentosa da etnia baré, de São Gabriel da Cachoeira (AM), que conquistou Alex Atala, esteve no evento do Paladar no primeiro semestre (mostrei um pouco aqui) arrebatando plateias, saiu na revista Pororoca, palestrou na livraria Cultura neste final de semana no Entre Estantes e Panelas e ontem nos presenteou com sua comida boa, simples, tão nossa e ainda estranha.
Mara Salles é aquela que consegue nos traduzir o estranhamento em comida familiar e confortável, numa apresentação primorosa. Aos poucos, vai acontecendo quase que um reconhecimento ancestral de pratos com nomes estranhos.
Apenas 50 convites a R$ 120,00 foram vendidos antecipadamente para o jantar de ontem no restaurante Tordesilhas. E logo lotou, havendo fila de espera que não se desfez, afinal ninguém quis abrir mão de experimentar o beiju curadá, grande e espesso, traíra moqueada com caruru e as sauvinhas de sabor cítrico no vinagrete com tucupi preto, quinhampira de piraíba, salada de cubiu, bochechas de queixada com cuscuz de farinha ovinha e legumes, manjar de tapioca com formigas no mel de abelha nativa mandaçaia, sorvete de cupuaçu com banana ouro, molho de açaí e coisas assim. As quatro mãos femininas ainda contaram com a ajuda do chef Leo Botto e foram só elogios.
As pimentinhas doces foram trazidas pela dona Brazi (imaginem a mala desta mulher!) O beiju curadá, em pedaços espessos, podia ser comido com manteiga de
tucumã e jiquitaia (pimentas ardidas indígenas secas e piladas com sal - também juquitaia, inquitaia ou juquirai).
Quinhanpira ou quinhapira - caldo de peixe ricamente temperado com pimenta-de-cheiro



Traíra moqueada com caruru (aquela verdura que pode ser encontrada por aí, cuja presença é indicadora de solo fértil - já falei dela aqui). O peixe já veio desfiado, sem espinhas e com gostinho de fumaça muito leve. E o principal, vinagrete de tucupi preto (tucupi reduzido) com saúva-limão, que sabe à casca de cítricos, melissa, capim-santo, citronela. Com todo este tempero, não tem como ser ruim este vinagrete. E a crocância da formiga é quase como a de um piruá menos resistente.


As cabeças de queixada foram compradas aqui em São Paulo mesmo e desossadas no restaurante. Deliciosas e macias as bochechas agradaram em cheio e não sobrou nem o courinho quase cremoso pra contar história. Acompanhadas de cuscuz de farinha ovinha (farinha de Uarini - já falei dela aqui e ali). Dona Brazi só não gostou nada por terem jogado fora os miolos.


Salada de cubiu (tomate-de-índio ou maná-cubiu). Cruas, estas frutas não são muito gostosas, ácidas sem muito doce, mas cozidas e temperadas com mel e outros condimentos na forma de tirinhas que vieram com a salada, ficam deliciosas. Já falei desta fruta aqui.
Manjar de tapioca com formigas no mel de abelha nativa mandaçaia. Estava uma delícia, mas Mara me pediu para falar caso alguma coisa pudesse ser melhorada. Então, pretensiosamente, lá vai minha sugestão: em vez do manjar, talvez também ficasse bom um mingau de tapioca com leite de coco, com o mel e formigas por cima, colocado na hora de servir. Ou o mesmo manjar, só que cortado redondo e apoiado em prato não-branco para o mel aparecer. Pronto, falei.
As bananinhas-ouro foram assadas, abertas num corte e servidas assim, molinhas e doces, com o sorvete de cupuaçu por cima. Com o creme de açaí por baixo e crocante de farinha ovinha por cima. De lamber o prato.

A luz estava fraca e as pimentas em carnaval foram de minha responsabilidade - só para dar mais vida. O que vale é o que vai nesta cuia preta.
O Chibé foi o grande destaque. Está aqui por último, mas foi o primeiro. Ninguém, em sã consciência, pediria água e farinha, esta comida de subsistência indígena, num restaurante. Mas Mara deu uma incrementada incrível, sem se perder nos sabores da terra. E prometeu colocar no menu do Tordesilhas logo logo. Com farinha ovinha ácida e crocante mergulhada na água gelada, com temperos como pimenta-de-cheiro e coentro e servida como se vê, com uma mini cuia no lugar de colher.
Tradicionalmente o chibé vai passando na roda em recipiente grande com uma cuia coletiva boiando e cada quem pega seu tanto e glupt. Ou, comido isoladamente, basta tirar com a cuia um pouco de água do rio e jogar aí um punhado de farinha.
A noite estava quente e as pedrinhas de gelo no caldinho ácido e bem temperado tornaram o simples chibé numa entrada refrescante e refinada. E ainda a cuia veio apoiada numa cumbuquinha preta de cerâmica com mais gelo. Alguém resiste? Como disse Nina Horta, é o nosso gaspacho. E a Mara me deu a receita. Lá vai:

Chibé da Mara Salles

1 pimenta fidalga ou murupi fresca
1 litro de água muito gelada
Sal (pouco porque a acidez da farinha e do limão potencializam o sal)
1 dente de alho micropicado
1 cebola média micropicada
2 colheres (sopa) de coentro micropicado (sem os talos)
2 colheres (sopa) de salsinha micropicada (sem os talos)
4 folhas de
chicória-do-pará micropicada
Suco de 1 limão-cravo ou siciliano
10 colheres (sobremesa) de farinha d’agua (a
ovinha é a melhor que já usei)
Modo de preparo: judie a pimenta fresca no fundo do recipiente onde será feito o chibé, numa baciinha, bowl, tigela... Adicione água gelada e também, se quiser, pedrinhas de gelo (ela colocou, nota do Come-se). Adicone o sal e todos os demais ingredientes, menos a farinha. Misture bem. Distribua pelas cuais a farinha d’agua, 1 colher de sobremesa em cada uma. Distribua também entre elas o caldo gelado temperado. Deixe descansar por 10 minutos - não mais, para a farinha inchar sem perder totalmente a textura. Sirva imediatamente.
Rendimento: 10 cuias médias

Um pouco de formiga
A profecia do naturalista francês Saint-Hilaire, Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil, foi repetida por muitos autores, mas ainda não se concretizou. Talvez os ratos de Brasília... Porque, se depender da aceitação desta iguaria por aqui, logo logo não haverá mais saúvas sequer aqui na Lapa.
Aliás, elas cismaram com o quintal da Veronika, minha vizinha-de-grito, e viraram umas pragas, mas elas que nos aguardem - já esprememos a cabeça de uma delas para dar o exemplo às outras e o cheiro de limão é o mesmo daquelas da dona Brazi.
Pelo que apurei, vários tipos de saúvas são consumidas e apreciadas, inclusive em São Gabriel. As principais são a Atta sexdens, A. laevigata, A. bisphaerica, A. opacipes e A. capiguara. Parece que as cítricas que consumimos são da espécie Atta sexdens, mas aceito contestações. É também chamada de saúva-cortadeira ou saúva-limão.
Em 1560, o Padre José de Anchieta relata "Das formigas, porém, só parecem dignas de menção as que estragam as árvores; as chamadas Içás têm a cor arruivada, esmagadas cheiram a limão, abrem grandes buracos no chão." Hoje os nomes içá e tanajura são destinados às fêmeas que possuem asas. E é claro, cada etnia deve ter um nome popular para suas formigas preferidas.
O sabor e aroma cítrico se dão quando a cabeça é triturada. Isto porque são secretados na glândula mandibular feromônios de alarme, importantes armas de alerta para momentos de perigo ou agressão e reconhecimento. Mas esta secreção também serve para inibir o crescimento de possíveis fungos contaminantes do próprio jardim de fungos cultivados e benéficos para a colônia. Inibe até o fungo Botrytis cinerea, o mesmo que coloniza videiras - às vezes propositalmente, para a casca da uva ficar mais porosa, desidratar e ficar mais doce. Além de fungicida, a secreção é também bactericida. E isto deve ser de alguma importância para os comedores de formiga, que, além de se garantir nutricionalmente (já que são mais ricas em proteína que a carne), ainda se protegem de certas doenças.
No final, ainda ganhamos as pimentas-de-cheiro doces (praticamente sem ardor) que estavam na mesa e foram trazidas pela dona Brazi. Sobre as pimentas indígenas, veja artigo interessante aqui.

Uma sacolinha com três revistas Pororoca - lindas e ótimas (neste último número tem um texto meu sobre carne de búfalo e receitas de chefs famosos como o Rodrigo do Mocotó)
E jiquitaia, mistura picante feita com pimentas orgânicas cultivadas por mulheres de várias comunidades do Rio Negro. São secas ao sol ou torradas ao forno e socadas com sal. Presente do Instituto Socioambiental (veja sobre a visita dos Chefs Alex Atala e Pascal Barbot em São Gabriel da Cachoeira
aqui).

6 comentários:

  1. Há quase dez anos partimos de São Gabriel da Cachoeira e pelo Rio Negro e depois pelo Içana, fomos em direção à fronteira com a Colômbia. O Rio Içana é o país do povo Baniwa, um rio de água preta com praias de areia muito branca, tudo muito lindo. mas o que impressiona mesmo é a comida maravilhosa preparada pelos Baniwa: mujecas, quinhapiras, peixes moqueados... e as pimentas!!!! quanto à saúvas.. uh! queremos experimentá-las como sobremesa numa jantar no início do ano que vem, e nosso 'bródi' JoãoRé nos mandou uma sugestão:

    "Escrevo para sugerir um mel para a Saúva.
    Se ele precisa ser ácido, sugiro um mel encontrado no Cerrado conhecido popularmente como "Mel Limão". Não sei o nome científico da abelha, mas sei que é uma melipônea que lá popularmente é chamada de "Tubi Manso" ou "Tubi de Macaco". Vejam que coloquei o "ou", não é "e/ou". São duas espécies diferentes, mas agora não sei qual é exatamente.

    Esse mel é tão ácido, que se guardado dentro de um pote de metal, com o tempo (não muito, coisa de 3 meses) esse metal é corroído.
    É um mel muito fino, de cor bem clara. Quem o experimenta pela primeira vez, acha que o mel é "adulterado", uma mistura de algum mel com suco de limão concentrado."

    mmmmm... talvez seja ácido demais, né...

    saludos fraternos!

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  2. Uau! Que jantar!
    Pelo menos passou pela minha cabeça ir comer por lá!
    Dá pra imaginar um fiscal da alfândega pedindo pra D Brasi abrir a mala e, melhor ainda, a explicação dela pra cada um dos ingredientes!! rs
    Muito bom!
    E tem mais: perdi mais uma chance de conhecer a Nina Horta!! haha

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  3. neide, precisamos descobrir como pegar as tais saúvas. aspirador de pó? fita dupla face? e montamos a banquinha na 12.
    que jantar! fiquei curiosíssima. e que descrição!
    bjs. v.

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  4. Fundación!
    Que inveja! Fiquei doida com esta imagem do Rio Içana e as comidas. E agradeça ao seu bródi João Ré pela dica preciosa.

    Edu, mala que quem cozinha é sempre assim. Mas dona Brazi deve ter sempre uma boa desculpa para as moambas. Pena mesmo não ter conhecido a Nina. Pensei que conhecia.

    Veronika,
    que tal colocar no caminho das saúvas garrafas pets cheias de folhas chamativas? você deve saber da predileção delas. Quanto à barraquinha na 12, acho que vai dar mais certo vendermos seus livros ou passaremos fome se dependermos das formigas.

    Um abraço, N

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  5. sempre fico surpreso com a diversidade desse país tão rico.

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  6. deve ter sempre uma boa desculpa para as moambas. Pena mesmo não ter conhecido a Nina. Pensei que conhecia.

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