quarta-feira, 19 de março de 2008

Estômago, um filme de Marcos Jorge


O cara podia tá roubando, tá matando, mas tá lá cozinhando... Mesmo porque já fez uma destas coisas e por isto está lá. Se a moda pega, vai ser um tal de jumbo com pimenta-do-reino e alecrim disputando espaço com maços de cigarro, produtos de limpeza, roupas e bolachas. Pra quem não sabe, jumbo é esta sacola de coisas que a família leva para o preso em dias de visita. É que Raimundo Nonato, que gostaria de ser conhecido por Nonato-Canivete mas vira Alegrinho, Paraíba, Cearense-cabeça-chata e até Parmalate, descobre como reinventar sua vida na prisão a partir do conhecimento da arte de transformar qualquer xepa-gororoba em comida saborosa. Até sujos, feios e malvados se rendem ao encanto do aroma do alho e da cebola fritando em azeite. Basta um fogareiro ligado a qualquer gato, uma panela encardida e comprar o dono da cozinha com maços de cigarro. Vejam só o diálogo quando os presos reclamam da droga que estão comendo:
NONATO: Olha, não carece de saber, não. Se tiver um pouquinho de alho, pimenta, cebola, azeite pra refogar, um pouquinho de queijo ralado e alecrim... Com o que tiver, nós dá jeito.
BUJIÚ: É mesmo? Ô, Lino?
LINO: Fala aí.
BUJIÚ: Vê com os caras lá da cozinha lá meu. Manda eles trazerem esses bagulhos aí. E esse tal de alegrinho..
NONATO: Não é alegrinho não, é alecrim!
BUJIÚ: Então...Alecrim! Traz esses negócios aí pro... Qual o teu nome mesmo, paraíba?
NONATO: Nonato Canivete.
BUJIÚ: Ô Lino, traz pro Nonato esse Alecrim, que amanhã eu quero comer bem.
Pedaços de frangos que chegam como ensopados em lavagem são enxaguados e refogados com temperos. Viram xinxim, ainda que sem camarão. Arroz sem vida ganha leite de coco e ervas. Um dos presos conta sobre formigas tostadinhas que comeu na Colômbia, quando foi levar droga. Não demorou e todas as formigas que vagavam por ali entrando em narizes ao ar viraram farofa.
Receita
: Frite alho e cebola em óleo. Junte uma pá de formiga e deixe dourar. Acrescente a farinha, sal e deixe aquecer até ficar tudo crocante. Sirva como tira-gosto. E prepare-se para apanhar do chefe do pedaço que vai adorar, mas não pode perder sua dignidade comendo bichos.
Duas histórias paralelas vão se desenrolando no filme ao mesmo tempo, alternadamente. E é claro que no meio há sempre uma estória de amor. A primeira conta desde a chegada do nordestino ao Sul em busca de oportunidades até o motivo da prisão. Passa por pela ascenção de auxiliar de boteco boca-de-porco onde fazia uma coxinha imbatível e pastéis sequinhos, que leva pinga na massa, a cozinheiro de restaurante italiano chique, cujo proprietário faz a sobremesa romeu-e julieta virar anita-e-garibaldi com goiabada e gorgonzola; mostra-lhe a posição do filé mignon na carcaça de um boi no açougue; o jeito certo de dourar alho para não amargar e o segredo de cozinhar macarrão (azeite na água? Só se o macarrão não presta!) e até o porque de guardar vinhos deitados. Destaque aqui para um vinho Sissicaia 1983, guardado para os 60 anos do homem, mas que assim como seu dono tem destino diverso daquele planejado. A segunda parte é aquela que já contei, a saga na cadeia.
Feios, pobres, sujos e malvados nas mãos de alguns diretores brasileiros costumam resultar em filmes pesados e deprês que nos mostram aquele Brasil que queremos enfiar debaixo do tapete. Mas não este. Tem tudo aquilo, mas tem o tempero que lhe confere a graça e a leveza. É um filme cujo sabor vai além do sal bruto. Tem alho, cebola, alecrim, pimenta.
Algumas cenas engraçadas: o gorgonzola chulezento empesteando é obrigado a dormir fora da cela, pendurado no varal junto com os tênis. O macarrão à putanesca vira macarrão à putavesga nas palavras da puta Iria. O carpaccio volta pra dourar na frigideira porque preso que é homem não come carne crua ainda mais com este nome carrapato. Gente malvada bebe cerveja gelada e jamais um vinho enfrescalhado tipo Chianti que pode ter aroma de flores do bosque, mas também de cachorro molhado. E se não tem cerveja, vai de maria-louca mesmo, que é o destilado feito pelos presos com resto de alimentos. Com três gotinhas de angostura fica melhor, supõe Nonato.
Co-produção Brasil-Itália, Estômago já vai estrear com vários prêmios na bandeja. Só por ter Paulo Miklos (do Titãs) já vale. Quem viu o filme O Invasor sabe como ele sabe fazer cara de mal. Agora, tendo o João Miguel como protagonista, tem que correr ao cinema. Até hoje não só sua atuação sempre surpreendeu, como ele deve escolher diretores a dedo, porque os filmes em que atua são sempre muito bons. Pelo menos todos os que já vi até hoje: Cidade baixa, de Sergio Machado; O Céu de Suely, de Karim Aznouz; Cinema, Aspirinas e Urubus de Marcelo Gomes e Mutum, de Sandra Kogut - estes dois, os meus preferidos.
Filmes como Estômago, de baixo orçamento, mostram que não é só com dinheiro que se constroem bons filmes. Assim como sabemos que para fazer comida boa não é preciso usar panela Le Creuset e o filé de cordeiro do Santa Luzia. Com um cozinheiro talentoso e resiliente, ingredientes honestos e, vá lá, alguma graça como alho e alecrim, qualquer panela colabora.
Minha versão de anita-e-garibaldi. Gorgonzola derretido banhando apenas a pontinha da goiabada.
Curiosidades
- Luiz Mendes Jr. foi consultor de comportamento no cárcere – passou 31 anos na prisão, onde escreveu Memórias de um sobrevivente e é colunista da revista TRIP (os textos dele são ótimos).
- As cenas foram rodadas em Curitiba e em São Paulo.
- Foi inspirado no conto Presos pelo Estômago, do livro Pólvora, Gorgonzola e Alecrim, de Lusa Silvestre.
- A chef Geraldine Miraglia, do Oil Gastronomia, de Curitiba, foi a consultora de comportamentos, panelas e comidas.
- A trilha sonora é do italiano Giovanni Venosta, que também fez a do filme Pão e Tulipas (2000), entre outros.
- O filme ganhou os prêmios de melhor filme e melhor ator, para João Miguel, no XI Festival Internacional de Cinema de Punta del Este; em sua estréia internacional, em Rotterdam, ganhou o prêmio Lions Award 2008 e ficou em segundo lugar na escolha do público, entre 196 filmes. No Festival do Rio 2007, foi eleito o melhor filme segundo o público, além de melhor direção, ator principal, João Miguel, e menção especial pelo coadjuvante Babu Santana (Bujiú).
- Luiz Miguel ganhou 2 vezes o prêmios de melhor ator no Festival do Rio, por "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005) e "Estômago" (2007) e também no Festival de Guadalajara, por "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005).
E que seja dito:

- João Miguel é um cara legal que pode ser visto eventualmente no restaurante Gopala Prasada e freqüenta a academia EcoFit, onde o o Marcos dá aula de aikido.
- O Paulo Miklos já pegou uma carona de guarda-chuva comigo quando sua filha Manoela estudava na Escola da Vila com a minha Ananda.
- E viva o cinema nacional!
Quando: o filme deve estrear em São Paulo em breve. Mas a agência Salem Guerilha convidou ontem para uma pré-estréia apenas blogueiros de comida, de cinema e de publicidade. Desta vez "é nóis"!
Para saber mais, veja ficha técnica e trailler no
site do filme.
Veja também no youtube
:

5 comentários:

  1. Neide,esse filme ja saiu? Nossa, fiquei curiozíssima pra ver...Ontem vi sem reserva e depois desci pra minha cozinha pra cozinhar de tanta vontade que fiquei!!Quero ver Estômago!! Beijão.

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  2. Neide, como eh duro ficar de fora dessas paradas...
    Felizmente tenho seus relatos em textos impecaveis, e a esperanca que esse filme chegue por aqui.
    Adorei essa versao da goiabada com queijo. Vou fazer, com um ultimo pedaco de cascao que ainda tenho.
    Que bacana! :-)) beijao,

    *o Gabriel dah aulas de taekendo e agora faz um tal de hapkido, que o Marcos deve sacar.

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  3. Neide:
    À época em que filmaram aqui em Curitiba eu vi alguma coisa no jornal, até porque moro próximo à antiga Penitenciária que serviu de locação para o filme. Outros locais utilizados foram o Bar Palácio, tradicional da cidade e muito famoso e o Mercado Municipal que como todo mercado tem lá seu charme, suas bancas diferenciadas, peixarias e lojas.
    Vi o trailer do filme e despertou maior interesse. Você superou de novo dona menina. Parabéns e um abraço.

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  4. Uau, Neide... você é incrível nos detalhes.

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