quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Ginga com tapioca. Coluna do Paladar, edição de 07 de dezembro de 2017


Ligeiramente atrasada.. Espero que os leitores e leitoras do Come-se tenham vivido boas festas e que tenham um ano novo lindo de muita fartura de coisas boas.  Deixo aqui registrada a última coluna do Paladar antes que chegue a próxima.  Está também na versão online do caderno Paladar.



GINGA COM TAPIOCA EM NATAL, O SANDUÍCHE DE MARINHEIRO
Lá na Redinha se ressentem, bugueiros não costumam atravessar a ponte do Rio Potengi para levar turistas à zona norte de Natal. Uma pena!  Mas viajantes escolados logo descobrem o que não podem deixar de ver ou provar, principalmente se são recepcionados por potiguares. Estes não voltam pra casa sem ter visitado o Mercado Municipal da Redinha e provado o sanduíche de marinheiro mais aclamado da capital. Está ali o berço do prato-símbolo de Natal, a ginga com tapioca. Chamam-no de petisco. Mas vem no prato e vale por uma refeição. Só não espere encontrar em restaurantes. É prato de bar, de boteco, de ambulante, de beira de praia.

Como quase sempre tenho a sorte de ter bons anfitriões por onde passo, não poderia ter voltado sem ter vivido esta experiência. Estive em Natal, a convite da professora Michelle Medeiros Jacob que me recebeu em sua casa para participar do Ciclo de debates sobre sistemas alimentares sustentáveis para segurança alimentar e nutricional organizado pelo Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Nos intervalos, claro, sempre se consegue dar uma fugida para conhecer o maior cajueiro do mundo, botar o pé na areia e comer aquilo que nos diferencia.  Com a ginga foi um pouco diferente e Michelle foi ótima anfitriã.

Já cheguei determinada a experimentar a iguaria para finalmente deixar de me sentir uma charlatã toda vez que faço em minha casa o tal prato ao meu modo ou do jeito que tinha ouvido falar, sem nunca ter provado, sem nunca ter visto o preparo. Vou continuar comendo em casa um arremedo - e assim mesmo delicioso, garanto. Porque o original vem adornado de história e paisagem e foi só no último dia que matei a vontade e a curiosidade.
Digo que foi diferente porque logo que cheguei à universidade fui presenteada com  o livro Ginga com tapioca: de Dalila à Ivanize. Das origens à atualidade.  A autora Rebekka Fernandes Dantas também é professora do departamento de nutrição e me entregou o livro pessoalmente e autografado sem desconfiar que estava me dando de bandeja a resposta aos meus anseios. No primeiro dia, o livro para introduzir. No último, provei a arte concreta.      
Finalmente iria entender que raios de peixe era este tal de ginga, pois nunca soube direito. Diziam que era manjuba, sardinha, lambari,  pipitinga.  Mas qual era a ginga? Bem, no mercado, ao vivo,  diante daquela ponte enorme, daquela aguaceira verde sem fim e do sol que te obriga a procurar abrigo na sombra, a chegada do prato pelas mãos da filha de Dona Ivanize do livro, do quiosque mais famoso do mercado, já explicava muita coisa.  Mas, primeiro comer e depois entender.

Trata-se simplesmente de uma tapioca com coco fresco recheada em meia lua com um espeto de peixes pequenos fritos. Segura firme os peixinhos com a tapioca, puxa o espeto e come a iguaria acompanhada de cachaça ou cerveja. A tapioca é branca, granulada, elástica e salpicada de pontos crocantes e dourados. Os peixes são sequinhos e dourados, pra comer inteiros, com espinha. Simples. Não muito diferente do que faço em casa, a não ser pelo coco fresco que nunca usei e confere a crocância e o sabor. E, claro, falta a brisa, a areia, a água do rio encontrando o mar.  Outra diferença é que gosto de fazer tapioca com a borda lisa, formando um círculo perfeito,  e a que comemos ali tinha borda disforme, rendada, se desarrumando como os limites da areia daquela praia invadindo falhadamente o calçamento que precede o mercado. E ali este desenho praiano na borda da tapioca faz todo sentido.

Conversando com Dona Ivanize,  ela me conta sobre a origem do prato que hoje é servido em todas as praias de Natal com suas variantes. Há as temperadas com manteiga de garrafa, as servidas separadamente tapioca e peixe, as completadas com queijo coalho, carne de sol e até com mussarela - assim como há tapioca servida com peixe em todo litoral nordestino. Mas Dona Ivanize se orgulha de fazer e servir a sua tal qual seus pais faziam quando a criaram. Até o palito de coqueiro para manter os peixes unidos é o mesmo.

Entre as décadas de 1950 e 60 o pai Geraldo Januário era administrador do Mercado da Redinha, fundado em 1949 junto à foz do Rio Potengi, a 2 km do centro de Natal, onde antes era uma vila de pescador. Naquele tempo ninguém dava valor aos peixes pequenos que vinham agarrados à rede de pesca de peixes grandes. O grandes eram vendidos nos boxes, os pequenos não serviam pra nada. Gente pobre vinha buscar, outro tanto era enterrado. Seu Geraldo Preto, como era conhecido, cansado de assistir a este desperdício,  resolveu recolher estes peixes, metê-los num espeto feito com a palha do coco, empanar na farinha de mandioca, fritar e juntar à tapioca que a mulher, Dona Dalila, já fazia por ali. Aliás, já vendia peixe frito, mas não do pequeno,  e já vendia tapioca. Foi, então, só ajustar a estética e a semântica para uma genial jogada de marketing, se visto pelos olhos de hoje.

Chamou de ginga a estes peixes porque vinham gingando, se debatendo, nas redes.  A combinação passou a fazer sucesso entre pescadores e frequentadores do mercado. O povo gostou, o nome pegou e a moda correu o litoral. Assim como os dadinhos de tapioca do chef Rodrigo Oliveira do Mocotó, que escapou da Vila Medeiros e hoje pode ser encontrado em todo o Brasil, a ginga com tapioca é a cara do litoral potiguar . Dona Ivanize não se incomoda de mostrar como faz nem que outros façam. Fica, sim, orgulhosa de ter criado os filhos graças ao empreendimento dos pais. Em sua banca trabalha também a filha com a neta, ainda menina, sempre por perto e às vezes ajudando na ralação do coco. Já chegam, assim, à quarta geração no negócio.

Espiando a bacia com as gingas recém entregues pelo pescador, vejo sardinhas pequenas manjubas e outros como lambaris. Havia também uma posta grande e Dona Ivanize explica que às vezes pedem postas grandes fritas em vez das gingas. Fora um pedido ou outro, ela segue à risca a técnica da mãe.

Tempera os peixes limpos e sem cabeça só com sal, coloca enfileirados no espeto feito com palha do coco, 5 ou 6 a depender do tamanho, pelo que vi  – este serviço estava sendo feito na frente do mercado pelo Seu Manoel -, passa por farinha de mandioca e frita em pouco óleo. Os peixes não ficam submersos e a gordura usada é uma mistura de óleo comum, que ela chama de óleo de comida, com azeite de dendê. Enquanto os espetos são fritos, ela faz a tapioca. Coloca na frigideira quente uma mãozada de goma ou massa para tapioca (em colunas passadas já mostrei como se faz), espalha para formar um círculo, espera um pouco e joga por cima um tanto de coco fresco ralado. Vira, cozinha do outro lado, passa para um prato com o lado do coco para cima, coloca o espetinho de peixe no meio do círculo, dobra, formando meia lua  e coloca no meio da tapioca.



Bem, não é só no quiosque da Ivanize nem só no Mercado da Redinha que podemos comer um bom espetinho de ginga com tapioca em Natal, mas quem chega ali vem atraído pela delícia da iguaria e também pela história sólida de uma família que se fez de encontros e união. Da tapioca da mulher com a ginga do marido, da técnica indígena com o dendê africano, do peixe com a mandioca, de peixes diferentes num mesmo espeto e das gerações que seguem transmitindo o preparo da ginga às próximas - os pais de Evelize já morreram, mas a neta está aprendendo a arte.

Por fim, a união de uma boa ideia com muito trabalho impede que a tradição ofusque a qualidade. E todo o gingado desta família para manter há décadas a mesma delicadeza da tapioca e o mesmo frescor do peixe tem por testemunhas rio e mar em encontro emblemático logo ali em frente ao mercado. Então, se for visitar a Fortaleza dos Reis Magos, marco da fundação da cidade de Natal, atravesse a ponte que une norte e sul da cidade e experimente a ginga com tapioca da Evelize com cerveja gelada. Ou, se estiver longe de lá, experimente abstrair o cenário e variar as comidas das suas festas de fim de ano com gingado. Use os peixinhos que tem por perto, sendo que os outros ingredientes temos em todo o Brasil. É um prato descontraído que combina com praia e calor. A receita abaixo, registrei ao observar Dona Ivanize fazendo.  



Ginga com tapioca. Observando Ivanize Januário

6 peixes pequenos (manjubas, lambari  etc)
Sal a gosto
3 colheres (sopa) de farinha de mandioca para empanar
Cerca de 1 xícara de óleo misto (óleo vegetal mais azeite de dendê) para fritar
1 porção de massa para tapioca (ou polvilho doce umedecido) com uma pitada de sal
3 colheres (sopa) de coco fresco ralado

Tempere os peixes com sal, coloque-os em espeto, empane-os na farinha de mandioca e frite no óleo quente.  Faça um disco de tapioca, colocando o coco por cima, Cozinhe dos dois lados, coloque no meio o espeto de peixe e sirva.

Rende: 1 porção 

3 comentários:

  1. Que post incrível Neide! Seu olhar para o que realmente importa na nossa culinária é o que mais admiro. E essa ideia de fritar os peixes em meia porção de óleo vegetal e meia de azeite de dendê é genial.

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  2. Eu tive a grata satisfação de experimentar essa delícia na fonte há dois anos atrás, lá no antigo Mercado da Redinha. Acompanhado de um legítimo potiguar, que nos apresentou com muito orgulho a tapioca com ginga. Que simplicidade deliciosa! E lembrei desse post enquanto puxava o espetinho!!!
    Comeria várias se tivesse tempo e fome naquele momento. E com certeza pedia, exigia uma cerveja gelada. Cerveja comum, de lata, no copo de plástico. A simplicidade daquele lugar não exige nada além disso. Só não bebi porque eu estava no volante com toda a família. Mas foi uma experiência que levarei para a vida! E que espero repetir num futuro próximo!

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  3. Que delícia ler a história da “Ginga com tapioca “ contada com tanto afeto e respeito. Sou Natalense, cresci distante e ao mesmo tempo bem perto desse, que para mim, é um símbolo de nossa cidade, provei como turista, quando aqui, vinha nas férias. Passei a adolescência aqui, sem reconhecer o valor dessa e de outros valores do meu lugar. Adulta, hoje me vejo na dúvida, se a melhor forma de preservar esse símbolo, é assim, guardando somente para os “descoladas” que são apresentados a Ginga com tapioca por alguns “locais” que entendem que esse turista vai curtir o prazer da simplicidade ou se divulgar essa bela história e estimular o consumo em toda a cidade seria o melhor. Fato é que a paisagem contribui e muito para a experiência autenticamente NATALENSE de comer no Mercado público da redinha é sem igual. Obrigada pelo carinho Neide.

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