Jussara, da Coopercuc, e seus pimpolhos que adoram umbu |
E aqui deixo o texto integral:
Umbu de fim de safra |
Festival do umbu no Sertão
do São Francisco
O
propósito da viagem era o festival, mas não
nos limitemos. Para um turista à procura de aventuras gastronômicas envolvendo
a fruta símbolo da Caatinga, o Festival
de Umbu que costuma acontecer no começo do ano em Uauá, interior da Bahia, pode
não corresponder à expectativa da exploração fácil. Você não vai encontrar ali fartura
de umbu e seus produtos, cozinheiros em barracas com pratos à base de umbu nem
muito assunto sobre a fruta. Pelo
menos do jeito que a gente costuma ver
em festivais que homenageiam um produto. Não se engane. É que para quem vive ali tudo
parece tão óbvio, nem precisa mostrar. Mas
o umbu que dá nome ao grande encontro está nas entrelinhas ou impregnado nas pessoas,
nos animais e nas coisas. A pequena cidade, em todos os tempos, na safra ou na
entressafra do umbu, é o próprio festival.
Neste
ano foi no final de abril a oitava edição e desde a primeira quem está à frente
da organização é a Coopercuc – Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá
e Curaçá, que começou com um grupo de mulheres arretadas em busca de
independência financeira no final da década de 1990. Hoje, vende geleia de umbu e maracujá-da-caatinga até
para a Europa, e no repertório de
produtos locais tem até cerveja artesanal feita com a fruta por cervejeiro
jovem da comunidade que foi estudar fora bancado pela cooperativa.
Para
a cidade, o evento representa a oportunidade de se discutir políticas públicas,
questões agrárias, merenda escolar, território
e tantas outras demandas que vão se acumulando.
Sem deixar de lado os concursos de poesia, de pintura, as apresentações de
teatro e de cantoria.
Normalmente
acontece em plena safra de umbu, mas neste ano, além de a produção ter sido
fraca por causa da seca, atendeu-se a um
pedido de religiosos para que a festa fosse depois da quaresma , afinal os
estandes de produtos da agricultura familiar da região, as barracas para venda
de comida à noite na praça e o grande palco para shows de forró são muito
animados, ficam bem juntos da igreja e não cai bem tanta alegria nesta época de
recolhimento. Então o umbu foi mesmo a
raspa do aribé neste ano, só para citar o grande tacho de barro onde na
temporada se cozinhavam os umbus para o doce ou o vinagre quando não havia alumínio.
Agora,
por que ir a um festival em plena terra do bode, a mais de quatrocentos
quilômetros de Salvador, a mais de cem
do Vale do São Francisco, em pleno sertão de céu azul que nos distrai de
tudo? Exatamente por tudo isto.
A
distância da capital contribui para a preservação dos hábitos, das lendas, da
cultura. Por ali passou o cangaceiro Lampião e seu bando, aconteceu ali a
primeira batalha da Guerra de Canudos e foi na região que Glauber Rocha gravou
Deus e Diabo na Terra do Sol chapando o céu de branco que era pra quem visse não
se perder nele esquecendo do resto. Agora, andar pela Caatinga com gente do
lugar tendo o sol quente sobre a cabeça e espinhos de toda natureza sob os pés
é um presente que ninguém há de esquecer ainda que esta situação não pareça
confortável. E esta gente, pode
apostar, está toda na cidade quando rola o festival. É ali que você vai encontrar seus melhores
guias, homens, mulheres ou crianças que vivem na roça, e sabem tudo da flora, da fauna, das comidas,
dos remédios e das lendas da Caatinga. É
como ter a companhia de vários Riobaldos saídos do Grande Sertão de Guimarães
Rosa. É gente que vem de vilarejos e
cidades próximas. Um é de Bendengó, outro de Caititu, ou de Cocorobó, Caratacá,
Creitu, Marruá, Macururê, Curundundum,
Patamuté, Quinjingue, Quembrenguenhem, ou ali de pertinho, do Sítio do
Tomás, da Serra da Besta.
Dificilmente
os dias amanhecem pesarosos e cinzas em Uauá. Pelo contrário, o céu é de um azul
extravagante e as núvens são tão brancas, fofas e próximas que parecem bolas de
algodão grudadas nos galhos secos das catingueiras. Geralmente são assim os dias na época do
festival. E um chuvisquinho de nada de um dia para outro faz da paisagem
esbranquiçada um tapete dourado com as folhas clarinhas e flores amarelas da catingueira, também conhecida como
pau-de-rato.
Aliás, não vai ser no café da manhã do hotel em Uauá
que você vai tomar um delicioso chá de flores de catingueira, mas quem sabe na
casa de alguém no Caratacá ou em Bendengó, cidade vizinha onde caiu há 110 mil
anos o maior meteorito de que se tem notícias no Brasil e onde se pode tomar
num bar sem alarde a bebida servida
direto da garrafa térmica em copo de plástico, sem nenhuma pompa. Tampouco o chá de amburana, tão perfumado,
usado mais como remédio pra dor de barriga, ou o chá de flores branquinhas de
umbuzeiro cheirando a mel e servido por prazer aos mais íntimos às vezes para
substituir o café e acompanhar o o autêntico manuê. Assim é chamado o bolo de
milho duro demolhado e triturado que leva, além do grão, apenas água e açúcar e é assado no forno de lenha.
Dona Joana Maria de Souza vendia o bolo até o ano passado em Caratacá, um
povoado de Uauá, mas já deixou de fazer e ninguém a substituiu.
A
gente jovem da cidade está mais ligada a assuntos urbanos e, com algumas
exceções, há pouco interesse em explorar o conhecimento dos pais que, por força
das circunstâncias, aprenderam a tirar o melhor proveito dos recursos naturais
da caatinga – que por muito tempo foi tida como um bioma a ser combatido. Hoje mesmo os jovens da cidade já sabem da
importância de sua preservação e dali pode se tirar o que comer, o remédio para
se tratar e fibras para o gobó de carregar umbu.
Se você conseguir companhia para um dia de
caminhada pelas roças, vai descobrir o verdadeiro festival do umbu. Pessoas
como Dona Joana, Dona Juvita e Seu Isaias, por exemplo, te levam para o léxico fantástico do sertão
onde reina o umbuzeiro, hoje tão reverenciado e bem tratado, em parte pelo trabalho de conscientização da
cooperativa.
É
o umbuzeiro que mantém suas folhas verdes quando todas as árvores já se
despiram. Isto, graças à grande quantidade de água que reserva em suas batatas
subterrâneas que são comparadas às cacimbas para armazenar água da chuva a ser
usada na estiagem. Mas quando a seca é
muito intensa, de um dia para outro o umbuzeiro despeja toda a carga de folhas
no chão para evitar perder mais água.
Os
bodes se viram bem na caatinga e com suas pontas conseguem até abrir o cacto
cabeça-de-frade para comer seu miolo. Porém, a natureza se defende como pode. Os amontoados
de macambira, uma bromélia espinhenta, e de cansanção, a urtiga do sertão,
ajudam a proteger dos bichos as plantas pequenas que vão germinando até que
ganhem força para resistir ao assédio.
Ninguém queira levar uma surra de cansanção, diz Dona Joana. Nem precisa ser uma surra. Um simples encosto
no cansanção ou na faveleira leva à descoberta do que seria estar nu sobre o inferno de um formigueiro raivoso. Pior que isto só mesmo se apoiar num pé de
amburana-de-cheiro e encontrar em suas forquilhas uma casa de caboclo,
marimbondos destemidos que picam doído sem piedade. Ou cair sobre os espinhos da palmatória, do
xique-xique, do mandacaru, da palma de ema.
Ou ainda ficar ariado e se perder na caatinga enganado pela
Caipora. Tudo é possível, mas os bodes
com seus cascos fortes, estes andam bem por aqueles terrenos pedregosos e
espinhentos e você pode ir atrás deles, seguindo a veredinha que vão deixando.
E, claro, sempre de sapatos.
Dona
Joana diz que bode come cansanção quando não há outra coisa, mas, embora possa até engordar, é bicho que não dura muito quando entra nesta
dieta. Já folha de umbu deixa o bode
esperto, com o pelo bonito, lisinho, logo ganha peso, logo a fêmea está
parindo. Estas folhas são
gostosas pra gente também, ácidas como vinagreira, podem ser comidas até cruas
na salada, embora não seja muito do hábito na cidade nestes dias atuais. Tampouco é comum encontrar quem ainda coma a
batata do caroá, um tipo de gravatá, ou mocó de macambira, que é o broto
docinho, macio e crocante da bromélia espinhuda. Ou o miolo do cacto xique-xique assado, ou a
cabeça-de-frade assada recheada com carne de caça. Mesmo porque há muitas
destas plantas já em extinção e a caça, ninguém se atreve a comer, pelo menos
publicamente.
Considerada
a capital do bode naquele Sertão do São Francisco, Uauá tem a melhor carne
porque ela já vêm temperada, dizem os criadores. A dieta seleta composta de frutos e folhas de
umbu, macambira, quebra-facão, carqueja, favela, é complementada ainda com velame, uma erva
aromática abundante na região. Os entendidos na carne sabem quando o bicho se
alimentou com esta erva que serve também para intercalar as mantas embaladas
para transporte. Vai mandar bode para o
filho em São Paulo? Coloca galhos de
velame no meio, que é pra não estragar.
Além
do velame, há outras ervas aromáticas na Caatinga, como o alecrim-do-campo que
em Uauá tem um perfume e em Canudos já é outro. Ana Luiza Trajano, do restaurante
Brasil a Gosto também esteve no festival e ficou fascinada com o perfume do
alecrim de Canudos que tem folhas muito miúdas, ramagem seca e sabe à lavanda. Quando tem oportunidade, o bode se tempera
também com ela.
Acontece que quase
toda a carne consumida em Uauá é de bode de sol. Ou de galinha de capoeira. De
vaca, quase não há. O bode é abatido, limpo
e aberto com o primor de um cirurgião a dissecar para que fique como um tapete
pintado em branco e vermelho. O sal é
pouco, que é só pra suar. Com o tempo seco, em cerca de 24 horas a carne já
está desidratada, pronta para ser vendida no galpão coberto que é a grande
atração na segunda-feira, dia de feira
de rua, outro acontecimento na cidade.
Que raça é, pergunto ao vendedor de bode. Pé duro, responde. Tudo ali é
pé duro. Porco pé-duro, bode pé-duro, gado pé-duro e galinha de capoeira, o que
quer dizer que é tudo animal sem raça definida, rústico, mestiço.
E aí está o segredo daquele bode criado sem
ração, só com a comida e o tempero que a Caatinga lhe dá. Pra não dizer que o bode se vira sozinho, às
vezes corta-se raquete de palma ou sapeca-se mandacaru pra tirar o espinho e
alimentam-se assim os bichos. Há quem cultive mandacaru só pra servir de ração
aos bodes. É o caso do Seu Afonso Almeida da Silva, que tem em sua casa um
banco de sementes comunitário invejável e produz, além de maracujá-da-caatinga,
uma roça de mandacarus sem espinhos desenvolvidos pela Embrapa.
Pelo
menos bode a gente encontra em todos os restaurantes e é sempre muito bom. Pode ser carne em molho ou assada, mas saiba
que assada quer dizer frita em óleo até ficar sequinha. Dá pra ir comendo em lascas, deliciosa, com
farinha. Só falta mesmo para acompanhar
o vinagre de umbu, que quase ninguém mais faz. Lembrando que vinagre de
umbu não é límpido como aquele ácido acético que gente conhece com tal,
mas um fermentado de umbu, reduzido no fogo de lenha até ficar preto, ácido e
doce sem ter levado açúcar. Pode ser comido puro com carne ou feijão, usado
fazer refresco e até umbuzada, o nosso
iogurte do Sertão feito também com o fruto fresco maduro e cru ou inchado e
cozido.
Carne
de bode também pode ser a refeição dos padeiros quando acabam de assar a
fornada de pãozinho depois de uma jornada exaustiva. Com o forno quente, aproveitam
para assar, e aí sim é assar, pedaços de carne que comem como aperitivo ainda
pela manhã. As padarias artesanais têm lindos fornos de lenha e valem uma
visita. Os padeiros geralmente desconhecem fermentação natural mas usam uma
quantidade mínima de fermento comprado, deixam a massa trabalhada manualmente
fermentando a noite toda e assam em grandes fornos de barro de madrugada. Padarias fazem apenas pão, um ou dois tipos,
além da xeba, um pão chato feito com a mesma massa do pão salgado, só que coberto
com açúcar, quase como um focaccia doce. E favor não confundir padaria com
confeitaria, esta sim com vários tipos de pães, bolos, doces e outros
confeitos.
Então
o festival do umbu é assim, bem grande, a perder de vista naquele tapete
amarelo de catingueiras. Pra ficar perfeito, só falta ter produtos de umbu nas
confeitarias, nos restaurantes, nas
lanchonetes e na merenda escolar. E
cerveja de umbu nos bares, que ninguém é casco duro como bode.
E aqui, algumas fotos:
Alecrim de Canudos e flores de catingueira - duas aromáticas do Sertão |
Sabores do Sertão na cachaça |
Carne de bode, lanche dos padeiros |
Juan e dona Júlia fazendo umbuzada |
Pietro e Joaninha do Sertão |
Lindíssimo texto Neide! Uma aula de cultura regional brasileira desenvolvido com muito estilo! Guimarães Rosa ficaria orgulhoso...
ResponderExcluirmarlene
Neide, lendo suas aventuras, lamento já estar nos 79, ou iria pedir pra ir junto! Já andei muito por esses lugares e sinto não ter mais o pique necessário... Como você, curtia o povo de cada lugar, aprendia muito com eles. Saudade! Se há alguma coisa que não me agrada por estar velha, é essa impossiilidade física de caminhar pelo sertão com sol a pino. Mas as memórias são tão boas que acabo me conformando em ser só leitora. Obrigada por escrever (e tão bem) sobre lugares e me proporcionar essas "viagens"! beijão da Adelia
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