quarta-feira, 2 de abril de 2014

Joaninha no coração do sertão. Ou três ariados na Caatinga.


Para quem não conhece, já falei de Joaninha nos dois anos anteriores, quando estive no festival do Umbu em Uauá. 
http://come-se.blogspot.com.br/2012/03/uaua-parte-5-agua.html
http://come-se.blogspot.com.br/2013/03/o-sertao-de-joaninha-parte-2.html

Esta foi minha terceira vez por lá e é sempre encantado o passeio com Joaninha, que cresce cada vez mais fabulosa, inteligente, trágica, divertida.  Desta vez teve uma pitada de suspense. 

O almoço estava praticamente pronto. Nenê, mãe de Joaninha, fez comida baiana especial pra nós: vatapá, caruru, xinxim de galinha, pratos não muito comuns no sertão. Foi quando decidi dar um passeio rápido com a menina que estava ansiosa pra me mostrar o coração do sertão. Fez segredo do que seria o coração. Eu veria em breve, tivesse paciência. 

Antes, arrodeou a casa para me mostrar os assuntos mais ligados ao cotidiano. A água do açude, o lajotão para captação da água da chuva que vai para uma cisterna e uma hortinha de ervas medicinais brigando com o sol estorricante e a falta de água (aspas daqui pra frente são para as falas dela):  "Olhe aqui, Neide, é de por na comida. Tome, sinta, cheire, maciozinho, né? Aqui chama de hortelão. Serve para por ao lado da comida para ficar bonita. Põe também no tempero. Se você quebrar, vai ver a água das folhas. Possui água só que não pode beber. Porque é muito perigosa. Se beber, fica doente ou talvez morra. Tempera feijão, às vezes pode fazer um arroz temperado ou quem sabe uma sopa não fica gostosa? Bem, na maioria das vezes só fica boa se a pessoa sabe cozinhar."  Falava da hortelã baiana, aquela gordinha. 

"Já o capim santo, se for uma panela grande, quase cheia, você pega um punhado e corta miudinho. Se não cortar, vai gastar mais, e a gente quer gastar pouco. Se puser muito açúcar, vai ficar azedo. Tem que por pouco que fica bom, no máximo 1 colher. Não põe junto, pois já imaginou os efeitos desastrosos de cozinhar o açúcar? Pode queimar".  Ué, pode colocar bastante água, Joaninha, disse só pra provocar. "Mas se a gente aqui no sertão não tem muita água, a água vai ser pouca e pode queimar sim". 

"Olhe, Neide, um pauzinho reto no chão. Não se vê um desses todos os dias. Os paus aqui são tortos. Quando estão no chão, os passarinhos vêm e fazem o ninho. Quebram com os bicos e com as patas. Vamos sair deste sol que o cabelo vira palha. Se mexer num ninho a mamão pássaro vai te explicar."


Terminada esta fase da visita perto de casa, atravessamos a cerca para adentrar o sertão. Pietro, o irmãozinho vinha atrás da gente descalço. Pedi para colocar sapato porque o chão é todo salpicado de pedras e espinhos. Lá fomos nós. 

"Neide, você quer ir pro Norte, Sul, Leste ou Oeste?". Certa de que Joaninha me mostraria preciosidades em qualquer das direções que escolhesse, respondi Oeste sem pensar muito. "Oeste? Eita! O caminho é traiçoeiro". Não cheguei a me assustar, porque Joaninha é sempre trágica.  "Vem cá, olhe o que está brotando. É aquele cacto cabeça de frade, que quando cresce fica bem cheiozinho. Olhe, Neide, esta pedra brilha, tome pra você. É difícil encontrar este cacto, ele está em extinção. Olhe o cansanção, ele espinha e dói como muriçoca.  Alguns espinhos quando misturados com larva de sapo, se pisar pode até matar. É que contém um líquido que entra no corpo que vai desenvolver um álcool altamente tóxico". Meu Deus, de onde esta menina tira tudo isto?, pensei. 

"Hora de fazer uma pausa aqui neste umbuzeiro. Lugar perfeito para um piquenique, mas o meu piquenique planejado é bem no coração. Você vai ver que maravilha é o coração, Neide. Está chegando. O cansanção além de fazer doer os humanos com seus espinhos, ele é útil porque se protege e protege outros animais. Se tem uma lagarta em suas folhas e se alguém quer comer esta lagarta, o cansanção salva a lagarta, embora a lagarta coma suas folhas". Mas e este coração, Joaninha, tá chegando? estou achando que estamos nos distanciando muito.  Joaninha olha para o chão, encontramos alguns galhos, muitas pedras. Ela olha, olha e saltita: "estamos chegando, estamos chegando, chegamos".  Era  um lindo umbuzeiro de copa arredondada e raízes aparentes que saiam do tronco como raios de sol. Parecia um árvore esculpida simetricamente. "A natureza nos dá muitas coisas bonitas, então a comunidade resolveu também fazer coisas lindas para a natureza."  Larissa, uma cabrinha, até este pondo nos seguia. A partir do coração, sumiu.  "Aqui era um rio antigamente. É lindo, não é, Neide? Toalha de piquenique eu não tenho, mas que este lugar é bonito, é." 

Dá pra passar um verão todo aqui, disse o quieto Pietro. "Posso trazer todos os materiais que preciso e morar aqui, fruta, água, comida. Não precisa de toalha, é só se sentar na raiz do umbuzeiro", continuou Joaninha.  Encontramos ao redor da árvore mágica um cogumelo seco já sem o chapéu, como este que mostrei aqui. "Dentro desses cogumelos tem um pó que se mistura com água vira tinta". Como sabe isto, Joaninha? "Bem, se eu já peguei um, já misturei, já fiz uma tinta, vi que deu certo, é como sei". 

O coração do sertão. Umbuzeiro. 
Umbuzeiro com seus xilopódios ou batatas que armazenam água

Depois do umbuzeiro coração do sertão e do cogumelo sem chapéu que também parecia encantado, não conseguimos mais achar o caminho de volta. Ficamos andando, andando. Achei que Joaninha sabia onde estávamos indo, mas não. O sol era forte, nos esperavam para o almoço, o solo era pedregoso, a paisagem começou a ficar monótona. Catingueiras, favelas, cansanção, palmatória, cabeça de frade, mandacaru, espinhos no chão. Íamos pra lá, pra cá, tentávamos o norte, o leste, nada. Nenhum sinal de casa, de gente, de cabras. Só a solidão da caatinga. De vez em quando um sininho de cabra. Tentei manter a calma das crianças que começaram a ficar agoniadas, com sede, com fome.  Andamos por quase duas horas sem que reconhecêssemos o caminho de volta. Conseguimos chegar novamente ao coração, mas não descobrimos de que lado chegamos. As árvores são todas baixas, a vegetação é rala, mas não víamos nada diferente além dela. Eu, menos ainda. Meti os dedos na boca e comecei a assobiar, mas ninguém retrucava, nem um caga-sebo que fosse. A esta altura Pietro já chorava alto, rezava e gritava "mãezinha de Cristo, mãezinha de Cristo". Joaninha me dava bronca: Eu não disse que o caminho era traiçoeiro? eu não disse? Eu devia ter ficado em casa. Passamos por um umbuzeiro cheio de xilopódios à mostra. Tentamos tirar uma dessas batatas para sorver sua água, mas quem diz de conseguir? Estávamos com sede. 

Chegamos a uma imburana de cheiro, árvore linda, com tronco todo descamado e com porte bom para trepar e tentar avistar algum sinal de civilização. Minhas pernas já estavam repletas de espinhos e por várias vezes experimentei a sensação de ter enfiado as pernas num formigueiro raivoso quando passava raspando nas folhas espinhentas e venenosas de cansanção. Descobri rapidamente que não devia coçar nem reclamar que logo a dor passava.  Um espinho grande havia atravessado o solado de minha sandália e machucava a sola do pé sem que eu conseguisse tirá-lo. 

Pietro machucando os dedos nos espinhos
A imburana cheia de marimbondos
Já Pietro metia voluntariamente a mão nos espinhos do facheiro e gritava "Até minhas mãos estão sofrendo, até minhas mãos". A todo momento eu tentava convencê-los de que hora ou outra alguém nos encontraria. Resolvi subir na imburana. Se estivesse lá em cima poderia avistar a casa, quem sabe. Pietro me advertiu: esta árvore é venenosa. Mesmo assim, ainda tirei uma foto antes de me aventurar a subir. Foi só botar a mão no tronco de cair pra trás tropeçando em pedras e espinhos do chão, me debatendo e gritando. Nesta hora as crianças pararam de chorar e riram um pouco do meu escândalo. Era ali uma casa de marimbondo, caba, inxu, caboclo, só sei que nervosos. Diferente da injúria do cansanção, as duas picadas que levei só foram piorando.  Pietro voltou a chorar. Pedi para ter calma que agora eu começava a descobrir a direção.  Quando já estávamos no caminho da trilha um homem surgiu na nossa frente como uma aparição, do nada. - Estão perdidos? E eu já tinha assobiado, as crianças gritado. Era o tio delas que havia chegado e resolveu ir nos procurar pois demorávamos para o almoço.  


Isso foi só o começo. Inchou muito mais e só melhorou com corticoide. 

As crianças correram aliviadas e depois Joaninha ficou amuada, chateada, não queria nem falar comigo. Dona Joana disse que ficamos andando em círculo e que nunca acharíamos mesmo o caminho porque estávamos ariados. E quando se está ariado não se vê nada, embora afirmem que passamos várias vezes a poucos metros da casa - ouviam nossas vozes, achavam que o assobio era brincadeira e o choro do Pietro resposta às provocações de Joaninha. 

No outro dia, em Caratacá, a notícia já tinha corrido. Ah, é esta moça que se perdeu? perguntou dona Otacília. Olhe o que o caboclo fez com ela, disse dona Joana. Contei a história da imburana. Dona Joana diz que não é árvore que traz sorte ter perto de casa, por isto talvez Pietro tenha dito que era venenosa. Certamente porque é abrigo de marimbondo. Ah, minha filha, você não ia enxergar nada lá de cima, não. Quando se está ariada, não se vê nada, disse dona Otacília. 

Foi isso. Será mesmo que eu me ariei? 


10 comentários:

  1. Você é muito boa para contar um caso! Coitada da Joaninha, deve ter morrido de vergonha, se é que não levou um pito. Eu é que não queria passar o aperto que você passou, e depois de passar ainda consegue escrever um texto assim. Só você mesmo!

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  2. Nossa, Neide Rigo, que perrengue, hein?!
    Cansanção com caboclo, receita que nunca ouvi falar, rs.
    Bom texto, como sempre.

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  3. Neide, que história!! até me ensuvaquei de nervoso, espero que suas mãos, pés e pernas estejam melhor. Que menina FOFA meudeus! muitos beijos

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  4. Primeiramente quero parabenizar pelo seu blog. Gostei bastante ... Qual quer coosa pode visitar o meu http//:joaokcv.blospot.com.br

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  5. Neide, voce se deixou levar pela magia da garota e o resultado, além de suas feridas , é um belíssimo conto.Uma viagem!
    Parabéns mais uma vez pela inteligência, beleza e
    generosidade.
    Bj. Denise Abdalla

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  6. Gilda, agora só tenho motivo para rir da situação. Mas na hora foi um aperto.

    Patrícia, nem queira conhecer o tal de cansanção. Nem os tais caboclos, cruzes.

    Fer, no outro dia mão e perna estavam inchados como pão, mas tomei remédio e pronto. Não quis esperar pra regredir sozinho, pois estragaria minha viagem, já que doía muito. Saudade de você!

    Obrigada, João!

    Denise, pois é, a magia nos ariou. Da próxima vez vamos marcar o caminho.

    Um abraço,n

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  7. Voçe é uma contadora de causos, amei,parabéns. Pode sair um livro, me fez lembrar de outros causos teus.bjs.(Diulza)

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  8. Maria Aparecida Burato Hiraoka3 de abril de 2014 às 16:49

    Neide, só de ver sua mão e perna senti o ardor, a dor, o inchaço e tudo o mais... Deus do céu, isso dói muiiito. Ah, mas sua história dispensa comentários...Gostou do coração do sertão???? kkk
    Beijos,
    Maria Aparecida Burato Hiraoka

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  9. Nossa, eu amei essa historia, apesar de "trágica".. Me lembrou muito meus tempos de criança! Eu não entendia como meu avô lembrava todos os caminhos por dentro da caatinga, dentre tantos lajedos, espinhos e cansanções. Joaninha parece ser uma criança diferenciada, sabe da natureza, interpreta os sinais das folhas, só não lembro o caminho de casa, afinal é um criança, rs.
    Acaatinga é de fato um lugar incrivel. Parabéns.

    querendo conhecer o que escrevo, fica o endereço:
    www.modoaleatorio.blogspot.com

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  10. Que conto fascinante Neide! Cada vez mais fico fã de seus talentos!
    Que Deus lhe conceda sempre essa luz!

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