Hoje o caderno Paladar é dedicado a bacalhau e batatas, mas tem também um pedaço pra coluna Nhac sobre feijão, que está reproduzido lá no blog do caderno: http://blogs.estadao.com.br/paladar/pure-de-feijao-por-que-nao. Reproduzo a versão completa, já que temos cá espaço de sobra pra textos e fotos, eba!
Feijões de outro
jeito
Minha primeira experiência glutônica, fiquei sabendo por outros, tão
tenra era a idade, do tempo em que a família ainda não tinha geladeira. Era
prática cozinhar feijão dia sim, dia não e, para não azedar, colocava-se a
panela na parte mais fria da casa – dentro de vasilha bem tampada, embaixo do
guarda-louca, sobre o cimentado frio. Pois alcancei o local engatinhando e fui
encontrada ali, ajoelhada ao lado do caldeirão vazio, com as duas mãos, cara,
boca, olhos e pés lambuzados de feijão frio. E o pior é que não passei mal.
Podemos até não admitir, mas já fomos um povo papa-feijão: do arroz com feijão, do feijão com farinha,
da feijoada. E ainda assim quase não encontramos receitas com os grãos nos
livros, como se não houvesse nada a fazer com eles além do feijão tropeiro, da
feijoada, do tutu, do baião de dois. O ensopado feijão de todo dia, então, é
como se todo mundo soubesse fazer, como se fosse sempre uma coisa só. Porém,
cada família vai adquirindo temperos próprios e não registrado nos livros de
receita - há quem o tempere com cebola e
alho, só alho socado, toucinho fresco ou defumado, carne de fumeiro, courinho
de porco, uns pedaços de orelha, um naco de carne seca, umas rodelas de lingüiça,
pedaços de legumes, folhas de louro, coentro, salsinha, cebolinha e até tempero
pronto. Tirando estabelecimentos populares, a maioria dos restaurantes também o
ignora como se feijão fosse ingrediente menor.
O fato é que o IBGE já constatou que diminuímos o consumo de feijão. Nem
bem exploramos o uso deste ingrediente e já vamos declinando. Por mim, daria
mais atenção às nossas clássicas formas de consumo, mas também aos usos que
fazem dele nossos vizinhos da América Latina.
Papa-feijão assumida, lembro do meu avô paranaense que, quando comia,
engrossava seu feijão do prato com farinha de milho bem amarela e crocante,
fazia capitão e entregava aos netos, que achavam mais divertido comer feijão em
bolinhos sólidos com as mãos que com caldo,
no prato, de colher. A imagem do feijão cozido lentamente em fogão de
lenha na panela de ferro completam a magia da lembrança, mas mesmo os grãos
feitos em panela de pressão têm seu encanto. Aliás, sem a ajuda deste
utensílio, indispensável para a economia de tempo e energia, o uso do feijão já
seria coisa do passado. O chiado da panela de pressão começava logo cedo, antes
de as crianças irem para a escola, e estava para o ambiente feminino e
doméstico nos dias úteis como a voz do narrador de jogo de futebol no rádio de
pilha longínquo estava para os homens nas calçadas aos domingos pela tarde.
Antes que os grãos cozidos com folhas de louro, ainda insossos e com líquido ralo, fossem jogados em outra panela com refogado de alho socado com sal e cozido mais tempo até engrossar o caldo, eu roubava um pouco deles num prato, polvilhava com sal e comia como se fossem pinhões ou amendoins cozidos. Era divino o sabor do feijão recém-cozido, íntegro. Um dia era feijão roxinho ou rosinha; no outro, canário; às vezes, o jalo; o preto, só para feijoada e, por último, quase sempre, o carioquinha. Gostava de todos eles, assim, puros, sem adornos. Às vezes temperava sem preconceitos também com açúcar.
Minha mãe nunca ouviu dizer que alguns baianos comem feijão de leite (com
leite de coco e açúcar) na Semana Santa, mas lhe contaram que japoneses comiam
doce de feijão. Ninguém deu a receita de tsubu-an
nem falou que usam o feijão azuki no doce que recheia pãezinhos e pequenos
bolos de arroz, mas bastou saber que de
feijão se faz doce para que ela transformasse os grãos cozidos e passados em
peneira em delicioso doce em pasta, temperado com cravo e canela, como um doce
de batata-doce com consistência de creme de castanha portuguesa. Era muito
gostoso, um jeito de satisfazer as crianças com ingredientes baratos que tinha
sempre em casa. Por isto, eu não achava estranho provar feijões com
açúcar.
Enquanto em casa o feijão imitava batata-doce já que não conhecíamos
creme de castanhas, uma amiga me contou que a mãe húngara escalava o feijão
tropical para se fingir de castanhas europeias no creme de marron temperado com rum e servido com chantilly, como
comia em seu país. E todo mundo
adorava. Sim, o doce de feijão lembra o
de castanhas.
Se aqui o feijão é, assim, um grande imitador e mais consumido salgado,
em grãos inteiros ou no máximo machucados, em vários outros países da América
Latina (de onde o Phaseolus vulgaris
é originário), o feijão é usado também na forma de purê. México, Peru, Costa
Rica, Cuba, todos usam purê de feijão como ingrediente de doces ou salgados. Pode
ser feito em casa, mas também é encontrado para se comprar, em lata. E
variações de empanadas de platano, por exemplo, doces e salgadas, estão espalhadas por aí. A combinação de
banana-da-terra (platano), o único
ingrediente da massa, com feijão preto é imbatível.
Como em nossos mercados não encontramos purê enlatado, embora seja a
coisa mais fácil do mundo deixar o feijão de molho e depois cozinhar em panela
de pressão (e pode ainda ser congelado sem prejuízos), resolvi procurar alguma
solução para abreviar o tempo do leitor. Comprei o feijão cozido e embalado a
vácuo, mas só depois de provar percebi que já vinha com sal e temperos. Para o recheio salgado, tudo bem, mas para o
doce, não temos alternativa senão cozinhar os grãos. A vantagem é que ainda temos muitos tipos de
feijões Brasil afora, além do dominante carioquinha, e podemos ir fazendo
variações sobre o mesmo tema.
E só para lembrar, feijão é um alimento de fibra – solúvel e não solúvel,
com percentual calórico comparável ao pão, baixo teor de gordura e alto teor de
proteína (melhor aproveitada quando acompanhado de arroz e outros grãos), além
das vitaminas, minerais e fitoquímicos que nos protegem de doenças e nos ajudam
a viver melhor. E poder ser guardado seco durante meses e
Então, para que as pesquisas do IBGE não continuem acusando baixas no
consumo, se é impraticável comer todos os dias o bom e caldoso feijão para
acompanhar o arroz, ao menos vamos mantê-lo por perto com outros preparos. O
doce e as empanadas de platano são bons exemplos do potencial que temos ao
nosso alcance.
Como cozinhar para
fazer o purê: lave bem o feijão, que pode ser rosinha,
rajado, roxinho, canário, carioca, preto etc,
escorra, cubra com água fria na proporção de 1 litro para cada
xícara, e deixe de molho por cerca de 4
horas ou até que todos os grãos estejam hidratados, sem rugas. Pode ser deixado
de molho um dia para outro, sem problemas com excesso de hidratação. Escorra a
água do remolho, junte mais água - para que cubra os grãos, com folga de uns
cinco centímetros acima da superfície, e coloque na panela de pressão. No caso
do feijão preto, não despreze a água, para que ele fique mais escuro, apenas complete com mais água. Coloque em panela de pressão, tampe e leve ao
fogo alto. Quando a válvula começar a chiar, abaixe o fogo e cozinhe por cerca
de 20 minutos. Desligue o fogo, espere acabar a pressão e só então abra a
panela. Em panela comum, a cocção pode levar de 1 a 2 horas dependendo da idade
do grão. Deve-se acrescentar água quente à medida que for secando. Se os grãos
estiverem bem macios, estão prontos. Se não, tampe a panela e cozinhe mais um
pouco, juntando mais água quente se necessário.
Separe o caldo e passe os grãos por passador de legumes e depois na
peneira. Ou passe direto pela peneira,
amassando com uma colher. O purê tem que ficar lisinho, sem pele. Se você
cozinhar 250 g de feijão, vai obter cerca de 750 g de feijão cozido e 500 g de
purê peneirado. Reserve o caldo para sopas e as fibras, para virado ou capitão.
Doce básico de
feijão
2 xícaras ou cerca de 500 g de purê de feijão (250 g dos grãos crus devem
render esta quantidade)
1 xícara (180 g) de açúcar
1 pitada de sal
Aromas*
Coloque o purê, o açúcar, o sal e os aromas numa panela, misture bem e
leve ao fogo, mexendo devagar com colher de pau para não deixar pegar no fundo.
Quando levantar a colher e os pingos ficarem marcados quando caírem na
superfície, ou quando o doce começar a se soltar do fundo da panela, está pronto (cerca de 20 minutos). Coloque em
vidro aferventado e seco, tampe e guarde na geladeira por até duas
semanas. Sirva, se quiser, com creme de
leite e gergelim preto torrado por cima.
Ou use como recheio.
*Variações de
aromas
Feijão preto: junte 2 dentes de cravo
triturados e 1 colher (café) de canela em pó.
Feijão rajado: sementes socadas de três vagens de cardamomo e 1 colher (chá) de canela.
Feijão rosinha: 7 sementes de amburana (lembre-se de tirar com o doce pronto).
Feijão canário
(bolinha ou amarelo): sementes de uma fava de baunilha
Opção para servir o doce: com nata e gergelim preto torrado
Empanada de banana-da-terra com recheio de doce de feijão preto
Lave 4 bananas-da-terra pequenas e maduras (ainda firmes), corte as extremidades e divida cada uma em 3 pedaços. Coloque-as em panela e cubra com água. Leve ao fogo e deixe cozinhar em fogo alto até que a casca se rompa. Se preferir, cozinhe a banana sem água por 3 minutos no microondas. Espere esfriar e descasque. Passe por processador ou peneira pra ficar um purê liso. Deve render 1 xícara. Deixe esfriar bem, separe o purê em 4 bolas e deixe na geladeira até gelar. Achate estas bolas entre duas folhas de plástico com o fundo de uma panela ou com prensa de tortilhas pressionando sem força, de modo que forme um círculo de 5 milímetros de espessura, mais ou menos. Retire a folha de plástico de cima e coloque no centro uma colherada de doce de feijão preto (para 1 xícara de purê de banana, vai precisar de cerca de meia xícara de doce). Dobre o pastel com a ajuda da outra folha de plástico, pressionando bem a emenda. Coloque um pouco de manteiga numa frigideira antiaderente e deixe dourar dos dois lados do pastel, retirando com espátula, com cuidado para não machucar. Se quiser, frite em óleo abundante como as tradicionais empanadas de platanos, mas não precisa, pois tanto a banana quanto o recheio já estão cozidos. Polvilhe com açúcar e canela.
Variação do pastel salgado: em vez de usar doce de feijão, use como recheio o purê temperado com refogado de alho, cebola e pimenta fritos em azeite. Jogue o purê sobre o refogado, tempere com sal e mexa. Se quiser, junte folhinhas de erva-de-santa-maria (epazote) e fatias de queijo fresco.
Para aproveitar o caldo do feijão, faça Sopa
Refogue 1 dente de alho picado, 1 colher (sopa) de bacon picado e 2 colheres (sopa) de cebola picada em 1 colher (sopa) de óleo e junte 1 litro de caldo de feijão. Tempere com sal, junte ½ xícara de macarrão padre-nosso e deixe cozinhar por cerca de 8 minutos. Junte salsinha picada, rodelas de pimenta dedo-de-moça e pimenta-do-reino.
Para aproveitar as fibras do feijão, faça Capitão
Numa frigideira, em fogo médio, frite 2 colheres (sopa) de bacon em 1 colher (sopa) de óleo. Junte 2 dentes de alho socados e 1 cebola pequena picada. Quando começar a dourar o refogado, acrescente 3 colheres (sopa) de cubinhos de pimentão de cores variadas e 1 pimenta dedo-de-moça picada (opcional). Misture e deixe amolecer. Acrescente 1 xícara de resíduo do feijão e mexa. Tempere com sal e pimenta-do-reino. Junte ½ xícara de farinha de milho e misture bem. Se a mistura estiver muito seca, junte um pouco de água ou caldo de feijão. Deve formar uma farofa úmida que possa ser modelada. Retire porções e faça bolinhos com as mãos.