Olena, vilarejo medieval, do século 12
Tenho muitas coisas na gaveta amadurecendo e envelhecendo involuntariamente, por simples falta de tempo. Afinal, é preciso também trabalhar por dinheiro. E não é o caso do blog. Mas também temas vão ficando para traz às vezes por preguiça ou por um sentimento de incapacidade que me domina quando acho que nunca conseguirei fazer com minhas palavras jus ao que recebi em troca adiantada. E este é o caso aqui. Mas, embora a sensação persista, pelo menos que se faça conhecer um pouco da pessoa, do lugar e da bebida. E que me perdoem escritores e entendidos de vinhos
Sobre a Toscana, falei das coisas mais simples para mim, que são as comidas. Mas, muito por influência do meu amigo Luiz Horta, de uns cinco anos pra cá, além de continuar bebendo e apreciando vinhos, também tenho gostado de saber mais sobre a bebida, muito timidamente diga-se, embora ainda não saiba falar decentemente sobre ela. Sou do pelotão das panelas e, portanto, só vou relatar um pouco do que foi a viagem a Isole e Olena.
Quando fiquei sabendo da minha ida para o encontro da Arca do Gosto, do Slow Food, na Toscana (sou da Comissão Nacional da Arca), já fui pedindo indicação pro Luiz Horta sobre uma vinícola que indicaria para uma visita. Embora ele seja craque em vinho espanhol, seu conhecimento vai além. E me fez lembrar que experimentamos juntos no Encontro Mistral de 2004 o vinho do casal italiano Paolo Marchi e Marta. Lembrei imediatamente da cara dos dois, mas não do sabor dos vinhos feitos por eles, afinal estava ali a nata da vinicultura mundial. Mas me recordei do encontro. O Luiz já foi me puxando pelo braço pra mostrar os maravilhosos vinhos italianos. O casal foi simpático, nos serviu e explicou alguns vinhos (o Luiz já indo pela segunda rodada), e partimos para outros, Catena Zapata, Luis Pato, tantos outros. Do casal me lembrava bem, talvez pela proximidade geográfica de origem dela, uruguaia. Pois esta foi a indicação do Luiz, visitar a Isola e Olena. E não teríamos tempo para outras.
De Florença partimos, Kátia, Mônica e eu, em direção a Siena seguindo as orientações do Paolo. Queria ter feito a lição de casa e estudado um pouco sobre os Chianti e a uva Sangiovese antes da viagem, mas foi tudo muito corrido e cheguei lá imatura como o mosto que sai da prensa. Depois de subir e descer estradinha de terra que serpenteia as colinas da região povoadas por vinhas e oliveirais, chegamos à vinícola Isole e Olena, respirando devagar para aproveitar cada baforada da terra pedregosa e quente. Para sentir se aquilo era mesmo de verdade. A iluminação dos dias de verão parece tornar toda a Toscana meio mágica.
Não fomos a trabalho, mas a passeio e o casal, Marta e Paolo, nos receberam com simpatia e generosidade, No final havíamos ganhado de presente quatro de suas preciosas horas. Nada como ser amiga do Luiz Horta, pensei. O moço tem o maior cartaz entre vinhateiros.
No começo, o tom da conversa era um pouco de entrevista, afinal estava com minhas duas amigas jornalistas; a Mônica com gravador. Mas na segunda onda da colina a conversa já estava para a informalidade, ele mandando bem no espanhol. Embora sem perder o foco no objetivo da nossa visita que era, afinal, saber um pouco mais sobre o vinho feito ali.
Ele nos contou desde a sua história pessoal e profissional até causos de assombração no cemitério antigo entre ciprestes. Deu um panorama histórico do Chianti e da sua propriedade. E, entre a aula e a degustação, ainda tivemos direito a um passeio pelo vinhedo e pelo casario abandonado da Olena. Lá pelas tantas, ainda perguntei, na cara-de-pau, quanto pagavam a hora para se trabalhar na vindima e fiquei pensando se a 8 euros a hora não valeria a pena, pelo menos durante uma estação, fazer daquilo um spa com laborterapia. Fiquei de pensar.
O brasileiro que trabalha no vinhedo e mora na Isole
A trajetória pessoal
Paolo é sério no papel de vinhateiro e gentil e alegre com os visitantes
Paolo seguiu o exemplo do pai e do avô, também vinhateiros no norte do Piemonte. Mas seus conhecimentos atravessam fronteiras. Formado em agronomia e especializado em enologia pela Universidade de Agricultura de Turim, passou seis meses estudando a evolução da indústria vinícola da Califórnia. Trabalhou para o Instituto per l'Enologia Sperimentale di Asti e conserva laços estreitos com Faculdades de enologia das Universidades de Beaune, de Montpellier, de Turim, de Geisenheim e Califórnia em Davis. Portanto, ele não fala só de Chianti, embora os conhecimentos abrangentes sirvam para aperfeiçoar os seus e situá-los entre os melhores da região. Sobretudo, está interessado sempre e com entusiasmo na troca de idéias e experiências. E por isto não sossega, tem sempre em sua propriedade, que toca desde 1976, algum vinhedo experimental.
Tradição e modernidade: tudo o que pode contribuir para um bom vinho
A propriedade
Vinhedo com vista para Olena, o vilarejo medieval
Se você tem uma imagem de sonho de um vinhedo na Toscana, com vilarejo medieval amontoadinho e protegido, rodeado de ciprestes que separam ou agrupam oliveiras e videiras; casas de pedra com janelas floridas de gerânios, que se abrem para o céu límpido de verão; e tantas outras imagens de filme, isto não é imaginário. Este lugar existe e fica bem ali, no alto daquela colina.
Olena é hoje uma das duas propriedades da família Marchi que forma o complexo Isole e Olena. Documentação remota situa a vila no século 12 e era apenas uma das muitas vilas que se espalhavam pelas colinas de Chianti. Eram feitas propositalmente agrupadas numa só quadra posicionada em lugar estratégico para prover proteção contra invasões e ainda garantir espaço no campo em volta dela para a produção de alimentos.
Olena hoje, com moradias abandonadas (ah, um hotel ali!)
Já a Isole é também lindíssima e concentra a adega, o escritório, sala de degustação e as casas dos trabalhadores, incluindo a do casal Paolo e Martha. Mais modernas que as de Olena, mas também com janelas ornadas com gerânio. Moram e trabalham lá dois felizardos brasileiros que o Paolo adora e dos quais fala sempre com alegria. Isole é hoje o principal centro de produção da propriedade. Estão ali os vinhedos produtivos e os experimentais.. As propriedades foram compradas e juntadas numa só pela família Marchi em 1950. Até então funcionava o sistema mezzadria - ou produção participativa, em que famílias cultivavam produtos variados nas terras e rachavam ao meio, com o proprietário, toda a produção. Seriam como os meeiros daqui. O sistema deu lugar, aos poucos, aos vinhedos especializados.
O Vinho da região
O pedaço de terra entre Florença e Siena sempre foi conhecido pela qualidade de suas uvas e excelência do vinho feito com elas. E é incrível notar a mudança de personalidade das uvas de acordo com os inúmeros microclimas encontrados nesta região. A uva Sangiovese é a grande estrela da Toscana e a alma do Chianti. Faz vinhos frutados e ácidos, difíceis de se beber jovem; exigem envelhecimento. Mas eram assim grande parte dos vinhos que se bebiam nos bares e cantinas ao redor de Florença: ásperos, ácidos, embalados no fiasco – os frascos bojudos protegidos com palha. Até 1850 o vinho feito nestas colinas toscanas levava apenas pequenas doses de Canaiolo, só para temperar. Naquele ano o Barão Ricasoli resolveu acrescentar certa quantidade de Malvasia, pra tornar o vinho mais ligeiro, pronto e melhor pra se beber jovem ou para ser consumido no máximo em um ou dois anos.
Para infelicidade dos vinhateiros que continuavam a fazer seus Sangiove corretos, envelhecidos em barris de carvalho, quando chegou a primeira legislação para o Chianti Clássico, era desta forma que a maioria dos produtores estava fazendo seus vinhos – com uvas brancas. E, a partir dali, todos os vinhos que quisessem receber a denominação teriam que levar obrigatoriamente uvas brancas na fórmula. Para se ter uma idéia, até 1970 o Chianti poderia ter até 30% de uva branca. A grande parte destes vinhos, feitos totalmente de acordo com o regulamento, eram medíocres, pobres de corpo e de espírito, de tom alaranjado. E a imagem do Chianti ficou por muito tempo empobrecida. O vinho passou ainda por outros períodos críticos.
Em 1984 houve mudanças na lei para que as uvas brancas reduzissem para no máximo 5%. Outras uvas tintas foram sendo experimentadas. Muitos foram adicionando variedades de Cabernet, mas também Merlot, para dar ao vinho uma característica mais internacional, melhorando a cor e o sabor. Alguns produtores, contrariando a regra dos Chianti, fizeram vinhos varietais com 100% Sangiovese. Nascia o Cepparello. Hoje poderiam ser chamados de Chianti Clássico, já que não é mais obrigatório o acréscimo de outras uvas, mas muitos preferem manter o nome.
A legislação mudou as regras várias vezes, para chegar finalmente ao que os bons vinhateiros queriam. Nada mais de uva branca. E esta é situação atual. Hoje é possível fazer bons vinhos, de corpo médio a encorpado, seco, ácido, frutado, com leve amargor de especiarias, somente com Sangiovese. Nos Chianti que tomei na Toscana e especialmente os da Isole e Olena, identifiquei um sabor comum e acho que agora consigo reconhecer uma Sangiovese. Acho, veja bem. Daí à certeza vai uma fileira de Chianti.
A fórmula que Chianti atual permite mas não mais obriga a adição de outras uvas tintas a uma proporção de até 20% (ou já mudou para 15%?). Também ao longo do tempo demarcaram regiões. A denominação Chianti Clássico abrange os vinhos feitos na região delimitada das colinas, entre Siena e Florença. Já o Chianti (genérico) pode ser feito em outras cidades em toda a Toscana. Vinhos excepcionais podem ser encontrados na pequena e na grande área de abrangência. Portanto, dentre os Chianti genéricos há vinhos bons e ruins, de todo o preço.
O vinho na Isole e Olena
Quando, em 2003, a lei finalmente determinou: nada de uva branca no Chianti e que tivesse no mínimo 80% de uva Sangiovese e o restante de outras tintas, os vinhos da Isole e Olena passaram a usar 15% de Canaiolo para compor esta quantidade. É muito boa para o Chianti por deixá-lo mais suave ainda jovem, pois é mais aromático que Sangiovese. Com menos acidez e taninos mais suaves. Mas não é bom para vinho Reserva. Para estes, usava sua cota de uvas tintas em Syrah, Chardonet e Cabernet. Plantou Cabernet em sua propriedade, como todo mundo, quando era moda acrescentá-lo ao Chianti. E a terra era boa para esta uva.
Inicialmente pensava em melhorar o corpo e a cor, mas depois viu que a Cabernet se sobressaia à Sangiovese e isto ia justamente em caminho contrário à sua busca pela tipicidade. Num dado momento, chegou à conclusão de que o melhor tempero para a Sangiovese era a Syrah e decidiu plantar alguns hectares com ela. No meio do caminho, porém, parou e retomou sua idéia com mais força. Afinal, a força da Toscana residia mesmo na expressão dos seus vinhos e a Sangiovese estava ali, era ela que devia se sobressair mostrando o melhor de si. Por isto passou a trabalhar a seleção clonal ou variedades selecionados da própria Sangiovese. Lembrou do sentido da palavra tradição, que vem significa receber e entregar. É isto que ele quer continuar fazendo: transmitir, entregar, fazer esta transferência do que recebeu para os dias modernos. Basta dizer que sua adega têm equipamentos de última geração que garantem a qualidade do trabalho artesanal.
Com as uvas francesas Cabernet e Syrah ele hoje não faz Chianti, mas outros vinhos excelentes, que estão entre os melhores – nomeados como “Collezione de Marchi”, premiadíssimos. Paolo não citou premiações em nenhum momento da conversa, mas a gente sabe.
E tem ainda o grande Cepparello, um Super Toscano, super refinado, super 100% Sangiovese. A expressão pura da Sangiovese, sem concessões. Pela definição atual, que permite que o Chianti Clássico seja feito com 100% Sangiovese, o Ceparello poderia se enquadar na denominação, mas, por enquanto, continua um soberbo Cepparello. E o da Isole e Olena, safra 2003 já recebeu 95 pontos do Robert Parker. Já a revista Decanter deu 5 estrelas (o máximo) para a safra 2004. Envelhecidos em carvalho novo, são muito elegantes e podem ser considerados os "Grands Crus" da Itália. O Ceparello é um vinho elegante e expressão pura da Sangiovese. Sem concessões. De uns tempos para cá, Paolo também mudou as formas de cuidar das plantas. Faz dois anos que substituiu as práticas convencionais com uso de defensivos, por cuidados mais naturais usando apenas o sulfato de cobre e enxofre para proteger de pragas.
Gallo Nero: no selo é obrigatório para todos. Nos rótulos, só permitido aos Chianti Clássicos associados ao Conzorcio. Ou seja, nem todos os Chianti excelentes são associados e, portanto, não trazem o galo no rótulo.
Este símbolo só aparece nos Chianti Classico dos produtores associados ao Conzorcio.
Os Guias turísticos da Toscana nos dão a entender que todo Chianti tem que ter o símbolo de um galo negro no rótulo. Na verdade, Gallo Nero é marca registrada do Consorzio del vinho Chianti Classico, cuja adesão é voluntária e o símbolo só pode ser usado no rótulo do produtor associado. Então há bons Chianti sem o símbolo, sendo o contrário também verdade. Mas todos os Chianti, Clássico ou não, têm que ter selo oficial da denominação do Estado no lacre que vai sobre a tampa. Neste sim um galo negro tem que estar necessariamente presente. Ou não é Chianti de jeito nenhum. Sobre o porque do galo, há uma lenda que situa sua origem no tempo da rivalidade entre Sienna e Firenze, nos anos medievais. O fato é que todo vinho com o símbolo do galo negro do Conzorcio é um Chianti Clássico, mas nem todo Chianti Clássico tem o galo negro. É o caso do chianti do Paolo. Portanto, dos dois lados há vinhos bons e medíocres. Ou excelentes, como os do Paolo.
Fiasco: em desenho de Paolo, nos explicando o formato
Aquelas garrafas bojudas que encontramos penduradas nas cantinas é o recipiente clássico do Chianti, mas nos anos 70 quase desapareceu. Hoje grandes vinhos optam pela garrafa moderna, usada para a maioria dos vinhos, muito mais fácil de transportar. Sobre o sentido, na nossa língua, para a palavra fiasco como fracasso, veja aqui a explicação perfeita do Claudio Moreno.
Evolução da garrafa ou fiasco ao longo do tempo - Clique & Amplie (do livro: Viaggio in Toscana - Alla scoperta dei prodotti tipici - Giunti Gruppo Editoriale, Firenze)
Os concorrentes
Paolo tem uma visão interessante sobre seus concorrentes. Não são opositores, mas são os que caminham juntos. Só são concorrentes aqueles que são bons produtores quanto ele. São colegas, já que têm objetivos comuns. Não fosse assim, não seriam concorrentes. Cita Felsina Berardenga e Fontodi como concorrentes fortes.
Vin Santo
Ainda tenho dele. Bebericando de pouquinho, às vezes com cantucci
O Vinho Santo é feito com uvas desidratadas para concentrar açúcares antes de serem prensadas. O que ganhamos do Paolo emprestou umas gotinha preciosas ao risoto que fiz com flores de abobrinha certa noite no apartamento que alugamos em Florença. Considerei certa heresia com o vinho tão santo, tão aromático e cremoso, quase pra ser tomado a conta-gotas. Mas era a única bebida que havia em casa e o risoto, com perfume e doçura da Trebbiano e Malvasia que leva na fórmula (uma parte da primeira, duas da segunda), ficou um encanto com o Vialone Nano. De resto, é uma preciosidade pra se tomar aos poucos, como vacina em pipeta. E, se for pra beber molhando no cantucci, que seja pingado de mansinho, em vez de encharcar o biscoito, que é desperdício. Afinal, a jóia é produzida em quantidades minúsculas na Isole e Olena (800 garrafinhas anuais ante 10.500 de Chianti Classico).
O azeite
Como quase todas as propriedades rurais da Toscana, Paolo e Marta produzem uvas para os vinhos e azeitonas para os azeites. Este também estou usando a conta-gotas. Muito perfumado, frutado. Basta abrir a garrafa, que a mantenho guardada em local escuro para durar mais, que parece escorrer com o fio untuoso herbáceo e cheiroso toda a paisagem da Toscana. Apenas 400 meias-garrafas são produzidas anualmente. Aqui no Brasil, os vinhos Isole e Olena podem ser encontrados na Mistral. Se quiser visitar a vinícola, entre em contato:
O azeite
Como quase todas as propriedades rurais da Toscana, Paolo e Marta produzem uvas para os vinhos e azeitonas para os azeites. Este também estou usando a conta-gotas. Muito perfumado, frutado. Basta abrir a garrafa, que a mantenho guardada em local escuro para durar mais, que parece escorrer com o fio untuoso herbáceo e cheiroso toda a paisagem da Toscana. Apenas 400 meias-garrafas são produzidas anualmente. Aqui no Brasil, os vinhos Isole e Olena podem ser encontrados na Mistral. Se quiser visitar a vinícola, entre em contato:
Oi, Neide,
ResponderExcluirSou doida pra trabalhar numa vindima. Aqui ou lá. Se um dia vc se animar me chama q eu topo! bj Sill
Qualquer dia desses faço uma convocação geral em casa e vou até aquelas bandas. Não sei se se pode visitar A Isole e Olena sem alguma indicação, mas acho que se eu disser que sou leitora assídua do teu blog, vão liberar a visita e não só.
ResponderExcluirÓtimo post, como sempre. Eu gosto muito de vinho, embora não tenha, infelizmente, nenhum conhecimento maior.
Obrigada por tantas informações legais.
Gabriela (da Itália, só para te localizar)
Que maravilha! Não deixa essas experiências ma gaveta, não. Obrigadíssimo por compartilhar conosco.Saúde!
ResponderExcluirNeide querida,
ResponderExcluiracho que logo mais você vai virar colunista de vinhos. Aprendeu bem com o mestre Luis Horta; deu para viajar por Isole Olena através do seu relato.
Eu morro de vontade de um dia fazer a pisa de um vinho no lagar. Você topa este programa? O melhor lugar é o Douro, mas talvez na serra gaucha também seja possível. beijo, Sofia