sábado, 28 de junho de 2008

O sertão está em toda parte - 100 anos com Guimarães Rosa

Para quem não conhece, um aperitivo do Grande Sertão. Para quem já teve a felicidade de ler, Guimarães não enjoa, nunca acaba, é leitura para uma vida. João Guimarães Rosa teria feito 100 anos ontem.

"A beleza aqui é como se a gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão." Grande Sertão: Veredas


Em 2004 visitamos sua casa natal em Cordisburgo - MG. Aqui, o armazém do pai.

Céu alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome - caça não achávamos - até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto - juro ao senhor - enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando: era criaturo de Deus, que nú por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher fincada de joelho, invocava. Algum disse: - "Agora, que está bem falecido, se como o que alma não é, modo de não morrermos todos..." Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam - "Aí, então, é a fome?" - uns xingavam. Mas outros conseguiram damulher informação: que tinha, obra de quarto-de-légua de lá, um mandiocal sobrado. - "Arre que não!" - ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, amulher ensinasse aquilo, de ser mandioca-brava! Esses olhavam com terrível raiva. Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepego esquisio, e enganava o estômago. Melhor engulir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada. Depois Medeiros Vaz passou mal, outros tinham dores, pensaram que carne de gente envenenava. Muitos estavam doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no corpo, e danado de doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma disenteria, garrava a ter nojo de mim no meio dos outros. Mas pudemos chegar na beira do dos-Bois, e na Lagoa Sussuarana, ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela temia de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. - "Quem quiser bulir com ela, que me venha!" - Diadorim garantiu. - "Que só venha!" - eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara gorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-burití, sempre ajudava.

João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas

2 comentários:

  1. Neide Guimarães Rosa tem tudo a ver com seu blog.Ambos deliciosissimos.

    ResponderExcluir
  2. Olá Neide Guimarães Rosa,
    Você está por aqui?
    Fui seu paciente na década de 70/80.
    Lembro que em 1980 devíamos ter contato.
    Sou o Afonso Pelli, irmão de Agda Pelli e filho de Irany Barroso Pelli
    Se realmente for você vou adorar ter notícias. Atualmente moro em Uberaba. Estou aqui desde 1994, a Agda mora em Belo Horizonte.
    Me envie um e-mail: afonsopelli@gmail.com
    Abraços,
    Afonso

    ResponderExcluir

Obrigada por comentar. Se você não tem um blog nem um endereço gmail, dá para comentar mesmo assim: É só marcar "comentar como anônimo" logo abaixo da caixa de comentários. Mas, por favor, assine seu nome para eu saber quem você é. Se quiser uma resposta particular, escreva para meu email: neide.rigo@gmail.com. Obrigada, Neide