sábado, 21 de novembro de 2015

Malassada, a tortilla do sertão


A base da receita é da Ana Rita Dantas Suassuna, registrada no seu livro "Gastronomia Sertaneja" como mal-assada. Já vi por aí malassada, que prefiro, para diferenciar de outro prato com este nome, que uma carne com molho.

Na receita de minha mãe, que a chama simplesmente de omelete, a malassada leva farinha de trigo. Mas provavelmente a original era com farinha de milho, coisa da roça. Também leva ovos com claras batidas em neve. Depois junta a gema, sal e pimenta-do-reino (e este perfume de ovos com pimenta-do-reino povoará pra sempre minhas melhores lembranças da cozinha). Ao final, sem mexer muito, junta cheiro-verde - salsa e cebolinha -, cebola picada e às vezes tomate, não muito para não aguar.

Na versão sertaneja, aos ovos em espuma junta-se farinha de milho - que é a farinha feita a partir do milho demolhado, triturado, peneirado e torrado. Mas já vi outras versões que levam a farinha de mandioca. Ou seja, você usa a farinha que quiser, em pequena quantidade, só para os ovos não baixarem. E, claro, pra fazer render a omelete.  A de Ana Rita também pede couro de porco. Os ovos são colocados sobre os pedaços de torresmo na mesma frigideira onde foram fritos. Bem, só tenho a dizer que é uma receita simples, dá pra ser prato único servido apenas com uma salada. Pode-se ainda acrescentar à massa outros temperos ou o que tiver às mãos como frango desfiado ou carne moída, segundo me disseram. Flexibilidade e simplicidade em pratos deliciosos são marcas fortes na comida sertaneja.

O registro do livro traz apenas o modo de fazer sem determinar quantidades, já que há muitas variações deste clássico da cozinha sertaneja. Por isto, aqui está a minha versão, com as minhas quantidades, baseada na receita da Ana. O torresmo, usei sem o couro, e ainda acrescentei ramos de almeirão com brotos de flores - aferventei antes, e fatias de cebola roxa.


Malassada 

100 g de barriga de porco sem o couro
3 ovos, com claras separadas
Sal e pimenta a gosto
3 colheres (sopa) rasas de farinha de milho (ou de mandioca)
3 colheres (sopa) de folhas de coentro picadas

Pique a barriga de porco em cubinhos e leve ao fogo na mesma frigideira onde fará a malassada. Vá mexendo até dourar e soltar a gordura. Escorra o excesso de gordura se for o caso e use para cozinhar arroz ou feijão, por exemplo. Reserve.
Bata as claras em neve. Em seguida, junte as gemas, o sal e a pimenta e misture. Acrescente aos poucos a farinha e o coentro. Mexa com delicadeza.
Aqueça a frigideira com os torresmos e despeje por cima a massa. Tampe e deixe cozinhar por cerca de 4 minutos ou até começar a se soltar das beiradas. Com ajuda de um prato, vire a fritada e deixe dourar do outro lado.

Rende: 4 porções

Nota: se quiser fazer como o meu, afervente ramos de almeirão (sei que vai ser difícil encontrar se não tem um pé),  ou qualquer outra verdura que tenha por perto - nirá, brócoli, cebolinhas etc, e coloque no fundo da frigideira junto com o torresmo. Acrescente cebola roxa, se quiser.

E tchau, tchau, que estou indo pra Cuité, na Paraíba! Volto em  uma semana.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Aquafaba para fazer merengues sem ovo

De uns tempos para cá começou a pipocar a novidade: fazer espuma razoavelmente estável sem aditivo com a água de cozimento do grão-de-bico. O jeito de fazer já foi publicado no facebook do Papacapim e parece que a técnica foi descoberta por Joël Roessel, que testou antes vários outros ingredientes vegetais, incluindo água de cozimento de outros grãos. O que teve melhor desempenho foi a água de grão-de-bico e atende pelo nome de "aquafaba".

Portanto, caros leitores, o que publico aqui não é nenhuma novidade. Simplesmente testei o que já tem aos montes espalhado pela rede. Mas vai que o leitor também demorou a saber, como eu.  Bem, na viagem ao Marajó, o chef espanhol Andoni Luis Aduris falou que tem usado a mucilagem da linhaça no restaurante Mugaritz, com o mesmo propósito. De garbanzo ou grão-de-bico, disse que não conhecia.

Com a linhaça, ainda não consegui, mas com o grão-de-bico, já testei duas vezes. A primeira, com a água de cozimento. A segunda, com a água de uma conserva pronta. Ambos deram certo. No caso de usar a água de cozimento, certifique-se que está bem reduzida - concentrada. Quanto mais concentrada, mais densa será a espuma.  Bata na batedeira para que possa incorporar muito ar.  Na mão, não vai ser fácil conseguir. Outra coisa, tente sempre aromatizar a espuma para disfarçar o sabor de grão-de-bico, que não é marcante, diga-se. Umas gotas de limão, essência de baunilha, raspas de limão, de laranja, cardamomo etc.

É um ótimo substituto para as claras nos preparos em que a espuma é fundamental. Não tem proteína para coagular, portanto não dará estrutura a um omelete, por exemplo. Mas funciona bem para aerar uma musse ou fazer coberturas para bolo ou tortas. Uma ótima saída para aqueles que não podem (ou não querem) comer ovos e ainda assim poderão continuar comendo guloseimas.

Minha espuma se transformou em suspiros, mas ainda não fiquei muito feliz com eles. Talvez devesse reduzir mais o caldo - estes, fiz a partir dos grãos em conserva.  Vou testar mais algumas vezes.

Bati meia xícara de caldo até espumar. Juntei 3/4 de xícara de açúcar de confeiteiro aos poucos. Achei que ficou muito frágil e juntei mais 2 colheres (sopa) de polvilho doce. Fiz os suspiros sobre uma assadeira levemente untada, levei ao forno bem baixo (tipo 100 graus) e deixei até que ficassem secos - cerca de 2 horas.  Depois de frio, guarde em recipiente bem fechado. O meu, aromatizei com açúcar de baunilha e juntei flores comestíveis.

Mas estando com o merengue pronto, inclua-o nas receitas em que usaria claras em neve e depois me conte.




quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Beiju de mandioca com içás

Estava no Marajó quando alguém postou no instagram um formigueiro em revoada. Imediatamente escrevi para os caseiros e recomendei que não se esquecessem de mim quando saíssem as içás.   Para minha surpresa, a revoada por ali já tinha acontecido e as formigas já estavam congeladas. De modo que tenho um certo suprimento de tanajuras para o ano, até o início da próxima temporada de trovoadas no ano que vem.

Pode fritar a formiga inteira e só depois descartar cabeça, tórax e cintura
(come-se o gordo abdômen). Ou já separa antes a parte comestível 




Sim, vou fazer a tradicional paçoca de içás, mas por enquanto o que me veio à mente foi usar a massa de mandioca que tinha na geladeira para fazer um beiju macio salpicado de crocantes içás que dourei antes na banha de porco até que ficassem cozidas e listradas - só a parte do abdômen, sem cintura, cabeça e tórax.   Foi só espalhá-las no fundo da frigideira junto com umas rodelas de pimenta e peneirar a massa de mandioca por cima. Fogo baixo, frigideira tampada, até se soltar das beiradas. Virei, deixei cozinhar mais uns minutinhos e aí está.

Já mostrei como fazer estes beijus de mandioca aqui e falei sobre içás ou tanajuras ali e acolá.  

Muito bom!

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Bricelets com flores e corações



Minha amiga Mônica esteve recentemente na Suíça e me mostrou fotos de bricelets com flores feitos por uma mulher que saí pela floresta coletando espécies comestíveis.  Bricelets ou brislets são biscoitos crocantes como casquinha de sorvete. Naquele país há formas elétricas como as de waffle, porém são marcadas com mandalas, flores e símbolos que desconheço -  deve haver muitos significados para cada impressão deixada no biscoito. No passado estas formas eram de ferro com cabo comprido para que as pessoas levassem a base até o meio da lareira para fazer os biscoitos individuais. As formas elétricas atuais fazem até 4 biscoitos de uma só vez. Enquanto ainda estão quentes, os biscoitos podem ser moldados em canudos ou telhas. Muitas são as variações de receitas. Algumas levam creme, outras só manteiga. Às vezes suco de limão, outras, licor de cereja.  Encontrei uma receita razoavelmente boa, mas se tivesse tempo, testaria outras versões. Só precisei adaptar a forma de assar. Na ausência da forma própria, improvisei com meu grill elétrico antigo que tem chapa lisa, sem frisos. Imagino que possam também ser levados ao forno. A vantagem de usar um grill é que o biscoito é pressionado ao mesmo tempo em que é assado por baixo e por cima. Cada biscoito - ou grupo de 3 ou 4, a depender do tamanho - leva cerca de 2 minutos e 40 segundos para ficar dourado. 

Outra adaptação que tive que fazer foi para conseguir introduzir na massa flores e folhas - usei flor de cosmus e folha de bertalha-coração. Quando colocava direto na chapa, invariavelmente queimava. Então, improvisei umas rodelas de folhas de amendoeira-da-praia, sete-copas, chapéu-de-sol (veja post sobre esta planta aqui). Elas funcionaram como papel-manteiga. 

Bem, aqui vai a receita adaptada: 


Bricelts com folhas e flores 

100 g de manteiga em ponto de pomada
125 g de açúcar
2 ovos
1 pitada de sal
1 colher (chá) de essência de baunilha
1 colher (sopa) de suco de limão
Raspas de 2 limões
250 g de farinha de trigo

Bata a manteiga com o açúcar até ficar um creme. Junte os ovos aos poucos, sem parar de mexer, até formar uma emulsão. Junte, então o sal, a essência de baunilha, o suco e as raspas de limão. Misture bem e junte, aos poucos, a farinha de trigo. Incorpore bem, enrole a massa em plástico e guarde na geladeira por 1 hora. Separe pequenas bolinhas (as minhas tinham 12 gramas), coloque no grill e feche. Asse por cerca de 2 minutos e 40 segundos. Ou faça primeiro um teste. Enquanto os biscoitos estão quentes, são flexíveis e podem secar sobre um pau de macarrão para que fiquem curvados como telhas.
Para colocar flores, fiz assim: coloquei flor de cosmus ou folhas de bertalha-coração sobre um círculo de folha de sete-copas com a parte brilhante virada pra cima e apoiei sobre a flor ou folha uma bolinha de massa. Fechei o grill e esperei assar. Tirei a folha de sete-copas e esperei esfriar.  Depois de frios, guarde-os em vidro bem fechado.
O rendimento? não sei, pois errei tanto antes de acertar...

Testando outras folhas, outras formas

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Andoni. Um chef estrelado no mangue do Marajó

Como já disse naquele post sobre o Marajó, o chef espanhol Andoni Luis Aduriz, do premiadíssimo restaurante Mugaritz, foi convidado a ir ao festival de Ópera no Marajó e aceitou. Já tinha estado lá uma vez, gostou da dona Jerônima, mãe de Kátia Brito, organizadora do festival, e lá desembarcou novamente junto com a mulher Garbiñe, preparados para passar alguns dias desfrutando o lugar, se abanando por causa do calor e se besuntando de repelente. Assim foi. Não reclamaram de nada. E não foram nada assediados - como se Roberto Carlos de repente se visse num vilarejo onde ninguém o conhecesse.  Quem conhecia Andoni por ali? Quase ninguém. Durante a estadia pediu caldo de turu, que já conhecia,  se encantou com o perfume da folha do cipó de alho e fez tudo com muita calma. Enfim, pode descansar como um mortal merecedor qualquer. E isto deve ser bom de vez em quando para celebridades como ele.

Andoni e Mara 

Andoni e a chefe Mara Salles, do restaurante Tordesilhas, eram apenas convidados especiais. Eu sou amiga de Dona Jerônima e da Kátia, e estaria ali preenchendo qualquer buraco. Acontece que o chefe acordado para fazer o banquete desistiu de ir porque não tinham como atender às exigências dele, então lá fomos nós para a cozinha ajudar dona Jerônima. Era muita gente pra comer todos os dias, incluindo músicos e trabalhadores da produção.

Andoni havia viajado 40 horas e embora Mara e eu tenhamos insistido para que descansasse, que nós daríamos uma força na cozinha, ele não quis saber, descansou meia hora e lá veio improvisar um molho de ceviche para uma salada de manga que servimos na cuia de um coco verde no primeiro jantar.  Ficou uma delícia, como já era de se esperar.

Andoni, Zeca Camargo, Mara Salles,
Dona Jerônima
A Mara eu já conheço e sei que é dessas de arregaçar as mangas e fazer a coisa acontecer. O que não esperávamos era que o chefe também entrasse na cozinha sem ter se programado para isto. Mas ele foi de uma simplicidade e generosidade ímpares. Acabou participando do projeto-piloto como se fosse da família. E ainda deu uma palestra sobre seu processo criativo, no meio da floresta, como se estivesse em Harvard. Depois de tudo terminado, ficou com os de casa, andou de búfalo, caminhou na praia da fazenda, nadou no mar, passeou de canoa pelo igarapé.



Na última noite, saímos para jantar e ele escolheu comer espaguete com turu, pediu uma cachaça - industrial mesmo, vá lá - que acompanhou o cigarro, enquanto Garbiñe se encantava com as caipirinhas. Garbiñe contou que a rotina do casal inclui tomar café da manhã juntos - mesmo ele tendo chegado tarde. Ela sai pra trabalhar na cidade de sua mãe, a 30 quilômetros de onde moram,  e leva junto a filha deles que fica na escola, perto da casa da avó. Na hora do almoço, come com sua mãe. No fim da tarde, volta para casa com a criança e a família janta junto -  é Andoni quem prepara o jantar:  frango assado, tortilla, salada, nada de glamouroso. Só depois, ele vai para o restaurante. Come de vez em quando no Mugaritz?, perguntei.  Não, aquilo é o trabalho dele. Ao ano, como lá umas duas vezes, quando muito, diz ela.  


E, claro, sempre ao redor da mesa, muita conversa interessante sobre o assunto que mais gostamos de abordar.  Mas não só.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Caju refogado

Na Ilha do Marajó, os cajus abundam nesta época
Não se trata de recomendar a "carne de caju" como substituto da proteína animal, afinal nutricionalmente falando uma coisa não tem nada que ver com a outra.

Não é dizer também que preparado com sal o caju seja melhor que consumido in natura. O que acontece é que quando é época de caju, cajueiros velhos dão muito fruto. Nem sempre compensa vender, nem sempre tem tanto bicho para comê-lo e ninguém dá conta de chupar tanta fruta ou tomar tanto suco.

Sobra, então, tentar aproveitá-lo de todas as formas. Neste sentido, a "carne de caju" é uma ótima opção. Basta cortar o fruto em fatias ou cubos e espremer bem no espremedor de batatas, restando assim só as fibras temperadas com o adocicado e perfume do fruto que combinam bem com temperos comuns na nossa cozinha: sal, alho, cebola, tomate, pimentão, pimenta, coentro, limão, leite de coco etc. (o suco espremido, você bebe, é claro). Basta fazer um bom refogado, juntar os pedacinhos de caju e deixar cozinhar um pouco, com água ou leite de coco. No final, umas folhas de coentro, umas gotas de limão e vai quentinho pra mesa pra comer com arroz. Mais um alimento proteico - um ovo, um pedaço de carne etc, uma salada de folhas e já está!

Na Ilha do Marajó, improvisei um tipo de moqueca com a carne de caju - não é nenhuma novidade, acho até que já publiquei alguma receita por aqui. Mas é só pra dizer que você pode aproveitar os pedacinhos de caju espremidos em vários pratos com molho. Se fizer um molho de moqueca, vai lembrar peixe. Se fizer um molho de estrogonofe, vai lembrar carne. Se fizer um curry, vai lembrar frango.

Cajuzinho amarelo, no Marajó

A foto está horrível, mas o sabor esteve bom - usei folhas de cipó de alho
 do Marajó picadas finamente com a pimenta.  E pimenta-de-cheiro, coentro,
 leite de coco. 


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

No Marajó com ópera

Na praia o Pesqueiro, a areia atingiu a copa do ajuru e pudemos colher do chão
as pequenas cerejas amazônicas. 
Estive semana passada na Ilha do Marajó, na mesma fazenda São Jerônimo, para onde sempre vou - são dos pais da amiga Kátia. Ela, que é do teatro, e seu parceiro Caio, que é da música, foram os organizadores do Banquete Ópera Festival. Era pra ser três dias de banquete com ópera. Teve coro, orquestra, cantores líricos, palcos no mangue e na floresta amazônica, tudo muito emocionante. O espetáculo foi mantido apesar de não terem apoio nem venderem ingressos. A parte do banquete é que ficou faltando. O chef convidado desistiu um dia antes porque não havia como atender às suas exigências. Com isto, todos, incluindo a chef Mara Salles e o chef espanhol Andoni Luis Aduriz, entraram na dança da cozinha ao menos para alimentar os que ali estavam. Ainda assim, Dona Jerônima conseguiu fazer pato no tucupi, arroz de jambu, frito do vaqueiro, moqueca de pirarucu, caldo de turu, sopa de caranguejo etc.

Na tarde da ópera no manguezal todo mundo se emocionou com o som e o cenário  - veja fotos e vídeos aí no lado, no meu Instagram.  Até o Zeca Camargo estava lá e marejou os olhos. No dia seguinte, passou no Jornal Nacional e os de casa se aboletaram na sala da casa de tábua, que é onde a TV pegava. Todos sentados em cadeira, na rede, na cama ou no chão. Nesta noite, Andoni e sua mulher Garbiñe se sentaram no chão sentindo-se como se fossem da família.  Com tanta coisa que deu errado, o chef espanhol não se abalou e disse que até se divertiu e descansou, já que o celular não pegava e ele se sentiu num raro momento de paz sem assédios.

E assim, mais ou menos, foi. Fique com algumas fotos - além de outras que já publiquei no Instagram.

Chef Andoni e sua mulher Garbiñe

Passeando de barco depois do festival 

Cena comum nas estradas do Marajó  - capim para o gado

A vizinha Juliana Gago também foi e trabalhou 

Cena comum no Pesqueiro, vila de pescadores

Praia particular e deserta na fazenda São Jerônimo

Praia do Pesqueiro 

Chef Andoni e o pessoal todo vendo o Jornal Nacional que
mostrou o festival 

Meus vizinhos Bruno e Maria também foram para ajudar 

Casario na vila do Pesqueiro 

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Beijus de massa de mandioca. Coluna do Paladar, edição 05/11/2015

Descasque a mandioca, rale, esprema numa pano e use a massa 
Acabo de voltar do Marajó, por isto não postei a coluna ontem. Mas aqui está, como está também no blog do caderno Paladar.  



Poderia dizer que estou simplesmente falando da mandioca  tratada como for – ralada, cozida, frita, amassada. Ou que seja especificamente da mandioca ralada, como raladas podem ser cenouras, abóboras e beterrabas. Mas não,  estou apertando ainda mais o tipiti porque o que o que fica ali é um ingrediente incrível, único, cheio de manhas e usado em todos os países onde a mandioca é nativa ou para onde foi levada.  Trata-se da mandioca não só ralada, mas também espremida, vulgarmente conhecida como massa de mandioca. E não é de qualquer mandioca, mas daquela mansa, conhecida como aipim ou macaxeira, com baixos níveis de glicosídeos cianogênicos que são fartos na mandioca brava. 

Na última coluna, falei da fécula, goma, polvilho ou tapioca, que é o amido usado para fazer beijus de tapioca extraído do líquido escorrido da mandioca ralada e espremida.  É justamente deste resíduo que ficou retido  no pano, no saco, no tipiti, ou em qualquer outro suporte usado para espremer a raiz ralada, que quero falar.


Para quem não sabe o que é tipiti, basta agora dizer que é  um utensílio indígena em formato cilíndrico feito com talas de miriti trançadas de tal forma engenhosa que funciona como uma prensa quando ele puxado para baixo. Tradicionalmente feito com palhas vegetais, hoje já é encontrado em plástico preto,  totalmente desprovido de graça.  Cestos achatados de fibras vegetais ou sacos de aniagem também são usados como o mesmo fim nas casas de farinha, porém são empilhados e prensados lentamente.   A massa prensada na maioria das vezes é usada para fazer farinha – é só peneirar para desfazer os torrões e assar, sem parar de mexer.  Mas uma parte geralmente tem destino doméstico ou é usada na própria casa de farinha para fazer beijus. Nas  casas, engrossa mingau, faz sopa, bolos e cuscuz, só pra ficarmos nos estilos mais comuns.

Entre os índios, porém, o grande uso da massa de mandioca é nos beijus e, para se aprofundar neles,  recomendo a leitura do livro “Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro”, organizado por Luiza Garnelo e Gildo Barreto Baré e publicado pela Fiocruz.  São apresentados ali vários tipos de beijus feitos com este ingrediente.  Os preparos são minuciosos, com técnicas complexas e misturas calculadas para o resultado que se quer. 

Não tem esta de dizer que mandioca é um ingrediente vulgar e pobre, como relatavam os escritores viajantes que primeiro a descreveram.  É, sim, nossa raiz comum e mais desconhecida.  Desconhecemos o léxico, os processos e suas infinitas possibilidades na cozinha, mesmo com o grande legado indígena que infelizmente não atingiu a todos.  

Voltando aos beijus do livro, entre as variações, a massa pode ser misturada com a goma fresca,  com goma já assada e com a massa puba  ou mandioca mole, como se diz, que é aquela deixada por vários dias na água para fermentar e amolecer.  Temperam-se os beijus com castanhas, formigas, caroço de umari e com as ideias que vão nascendo em nós à medida que avançamos na leitura. Os beijus podem ser ainda assados mais finos ou grossos, embrulhados em folha de sororoca ou de bananeira, cozidos no forno de farinha ou depois secos ao sol.  São beijuxicas, beijus secos, beijus molhados, marapatás, beijus lisos, beijus crespos, marapatás, curadás e tantos outros de norte a sul, com nomes locais a cada variação de formato, técnica ou tempero.   

Em Santa Catarina,  a massa é usada para fazer bijajica, um tipo de cuscuz doce que leva amendoim, açúcar mascavo e cravo,  e também um cuscuz com massa, açúcar e fubá que depois de cozido é fatiado e assado para ficar crocante como um biscoito – e que continua se chamando cuscuz.

Não vou dizer que é ingrediente simples de se ter em casa porque ninguém tem mais disposição,  tempo ou espaço para ficar ralando mandioca. Se bem que é um bom exercício para firmar o muque e definir o abdômen, que hoje todo mundo quer.  Mas os equipamentos modernos também podem ajudar a trazermos para perto a sabedoria ancestral no trato da raiz.



Para  quem tem um processador de alimentos, é só ralar e espremer num pano.  Se você tem por perto um feirante que venda mandioca descascada ou a massa pronta, tanto melhor.  

Já indiquei o baiano Manuel  (Tel. 11 – 94661-5219) para tanta gente, que ele agora vende a massa até para quem vem de outra cidade buscar em sua casa, onde tem ralador elétrico e prensa.  Na feira, vende pacotes de meio quilo, cujo rótulo é a recomendação de uma receita de bolo com coco - infalível, diga-se.  Do beiju, ele não sabia. Além dele, já vi por aí vendedores ambulantes empurrando carriolas de construção cheias de mandioca e a tal da massa. Um conforto comprá-la assim, pois ela pode durar dias na geladeira – mesmo que fermente um pouco, tudo bem, é da natureza da mandioca, que parece ficar ainda melhor.  E o bom é que congela super bem,  caso se queira guardar por mais tempo.

Nunca vi por aqui o produto industrializado, mas bem que poderia ter. No Vietnam, nas Filipinas e em alguns outros países onde a mandioca está presente, a massa pode ser encontrada nos supermercados facilmente. Com ela é feita uma infinidade de doces e salgados, muitos deles tradicionalmente preparados com arroz glutinoso e adaptados para o uso da mandioca. Pichi-pichi, puto e suman são alguns doces filipinos feitos com a massa, só para citar os que já provei e que são feitos com ingredientes que também temos aqui.   

Desde que não seja lavada com água, a massa é um produto rico em amido e fibras e quando é aquecida os grânulos gelatinizam e se aderem uns aos outros formando um bloco unido.  Diferente da goma, que só tem o amido, na massa as fibras ajudam a manter uma textura mais granulosa, macia e elástica nos beijus, que ainda ganham uma superfície crocante.   

Depois que você consegue fazer seus beijus tradicionais, só com a massa -  e sal, se quiser -, começa a ter vontade de experimentar grudar ali outros ingredientes:  sementes, castanhas ou amendoim triturados, folhas picadas e legumes ralados e espremidos.  Foi o que fiz para ter os beijus coloridos.  Faça um branco e depois invente os seus.



Beijus de massa de mandioca

Rale finamente e esprema num pano 1 quilo de mandioca descascada. Descarte o líquido. Esmigalhe o que ficou no pano e passe por uma peneira grossa de fritura para a massa ficar bem soltinha.  Ou compre esta massa já ralada e espremida se encontrar quem venda assim.
Tempere a massa com 1 colher (chá) de sal e peneire sobre uma frigideira sem untar, fazendo uma camada de 1 centímetro, mais ou menos. Leve ao fogo baixo e deixe cozinhar por cerca de 3 minutos. Vire e cozinhe do outro lado. Se quiser, pode tampar a frigideira para o beiju cozinhar por igual e ficar mais flexível.  Uma omeleteira também serve.
Para variar o sabor , junte amendoim torrado e triturado ou castanhas picadas na proporção de mais ou menos 1 xícara para 500 g de massa.

Para os beijus coloridos,  divida a massa em 4 partes.  Junte 2 colheres (sopa) de beterraba ralada e espremida para o beiju vermelho; a mesma quantidade de cenoura ralada e espremida para o laranja; 2 colheres (sopa) de coco ralado para o branco e 4 colheres (sopa) de ora-pro-nobis finamente picado para o verde. 

Em todos os casos, passe por peneira grossa deixando cair diretamente sobre a frigideira  para que os beijus fiquem mais fofos.