segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Dona Olga se foi

Ultimamente ela cismou de implicar com meu costume de chamá-la de Dona Orga. Não sou mãe, não, é? E eu teimava com o Dona Orga. Seu nome é lindo, Olga, mas ela gostava de se apresentar como Dona Orga, bem acaipirado. E eu gostava do Dona, tratamento de respeito meio jocoso.

Se você clicar aí do lado no campo de busca "dona Olga", vai ver o tanto de receita que ela nos deixou. Queria reunir tudo num livrinho virtual - vamos ver se reúno forças.

O coração dela veio fraquejando desde que descobriu que tinha doença de chagas. Colocou marcapasso há pouco tempo mas não adiantou. Era um coração grande como só ela sabia ter. Foi fraquejando, fraquejando e parou de bater de repente enquanto escovava os dentes. Foi como ela gostaria que fosse. Que não precisasse ficar definhando e sofrendo no leito de um hospital, que ninguém precisasse limpá-la, não queria dar trabalho. Eu queria vê-la velhinha, de cabelos bem branquinhos, mas a gente não manda nada neste sopro de vida.  Ela gostava de flores e não tinha medo da morte. Estava no hospital pra fazer uns exames porque estava meio enjoada. Podia ser novamente o fígado prejudicado pelo coração fraco. Mas estava falante. No mesmo dia em que se foi disse para minha irmã que a gente era boba de ter medo da morte, que ela não tinha medo não, estava preparada para quando chegasse a hora. E chegou duas horas depois. Hoje tem sete dias.  Tanto não queria dar trabalho que já tinha escolhido o cemitério-parque onde queria ficar. É lindo, cheio de agapantos floridos e extenso gramado. Visitou o lugar várias vezes neste ano. Ia lá só passear e admirar e tinha plano todo pago já. Não precisamos nos preocupar com nada, apenas com a despedida sofrida.

Está sendo muito difícil, mas vou lidando com a dor como ela lidava - resolvendo coisas, cozinhando, limpando gavetas, podando o jardim, alimentando os bichos, brincando com as crianças.  Trabalhando incansavelmente, enfim, sem dar muito espaço para a auto-piedade. Que fiquem as boas lembranças, a saudade. O desânimo, não.

Lamento apenas não ter aprendido mais com ela com toda sua brejeirice e bondade. Os bichos de casa emudeceram, amuaram. As crianças da rua ficaram tristes e choraram - ela adorava crianças, dava presentes e bolachas com chá. A bisnetinha Isabelle pressentiu e soluçou na hora da morte sem saber o que estava acontecendo a alguns quilômetros de distância. Meu pai, companheiro de 58 anos, ainda não sabe o que é a vida sem ela, mas haverá de descobrir.

O blog, eu sei, fica a partir de agora mais pobre sem sua presença, sem suas receitas. Mas vou procurar cuidar das relações como ela cuidava, ser uma amiga mais dedicada, e cozinhar com todo o amor que ela tinha - cozinhar pra ela era coisa séria que exigia dedicação, capricho, cozinha limpa, avental na cintura, ingredientes frescos. Nunca comi uma comida ruim que ela tenha feito. Começava o almoço logo cedo, tudo planejado, sem pressa - nada de descongelar carne debaixo da água, usar salsinha de geladeira, preciosidades assim.

Teria um livro pra falar dela, mas por enquanto é só o que consigo sem que afogar em lágrimas e ao mesmo tempo informar os leitores que acompanham o Come-se e a conheceram pelo seu arroz doce, pelo porco de lata, pelo frango caipira, o pato, a polenta, a canjiquinha, a salada de quiabo com molho de feijão, o chuchu refogado, o jiquiri, a compota de pêssego verde, as rosquinhas de nata, o bolinho de chuva salgado com pimenta cambuci, as favas, a geleia de mocotó, a gelatina de tangerina e tanta coisa boa.




sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Refrigerante de cruá com kombuchá





Acho que já falei quase tudo o que queria sobre cruá naquele outro post. E em outros tantos.  Mas o que nunca tinha feito ainda era refrigerante ou espumante, como queiram.

Desta vez ganhei o cruá (Sicana odorífera) de minha amiga Silvia Lopes. Pedi pra ela comprar na feira de São Joaquim, que sempre tem, vendida como remédio, para eu usar as sementes para plantar.

A fruta foi ficando, ficando, perfumando, até que esta semana resolvi abrir, crente que estaria já podre, pouco me importando já que estava só pensando nas sementes. Mas que nada. Estava surpreendentemente doce e fresco, com sabor de melão caipira.

Claro que fui logo separando a semente - um pouco, torrei e comi, deliciosas. Outro tanto guardei pra plantar. A parte mais externa, junto à casca, cortei em pedaços, cozinhei e guardei para fazer purê - veja no post linkado aí em cima. Já a polpa onde estão inseridas as sementes, bati e coei. Foi este suco que usei para fazer refrigerante. Coloquei num vidro de boca larga uma parte de suco, uma parte de kombucha pronto, uma parte de kefir de água pronto. Coloquei por cima uma luva cirurgica com os dedos furados com águlha - assim, enquanto a mistura fermenta, o gás carbônico sai e o oxigênio não sai. Produz até um pouco de álcool. Deixei apenas 24 horas assim. Coei em voal para tirar a polpa que, com a fermentação, subiu à superfície. O líquido coado engarrafei e deixei 12 horas em temperatura ambiente. Se quiser, coloque em garrafa pet, aperte um pouco para o líquido chegar ao gargalo e deixe em repouso. Quando a garrafa estufar é porque já tem gás aprisionado. Pode então (deve) guardar na geladeira sob o risco de explodir - transporte com muito gelo em volta.

O sabor ficou docinho e com bastante sabor de melão. Gostei muito! Experimente se tiver oportunidade.


O suco feito com a polpa central . Dá pra tomar puro
bem gelado ou usar para fazer o fermentado 



As garrafas de coca cola vazias são ótimas! 
As de leite de coco também 
A polpa da fruta fermentada sobe à superfície

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Fermentando as ervilhas. Ou bolinhos veganos de ervilhas fermentadas com molho de tomate


Deixei as ervilhas partidas de molho por uma noite e no dia seguinte não sabia muito bem o que fazer com elas. Depois de muito pensar, resolvi escorrer a água e triturar no liquidificador com o mínimo de água possível. Coloquei a massa num vidro, fechei com filme plástico e deixei ali por mais 12 horas (deixe mais se a massa não fermentou). Quando a massa estava fermentada, temperei com sal, cebola ralada, alho ralado, pitada de de grãos de cominho tostado e menta picada. Tempero a gosto e com moderação.

Retirei porções com duas colheres de sopa, modelei bolinhas e cozinhei no vapor por 15 minutos sobre folhas de cúrcuma - é claro que eu sempre uso o que tenho por perto; se não tiver, não use e tudo bem. Depois de cozidas, dourei os bolinhos em um pouco de ghee - use manteiga, manteiga clarificada, azeite ou a gordura que tiver por perto.  Fiz, por último, um molho de tomate bem temperado (com manjericão zathar, mas use o tempero que tiver) e coloquei os bolinhos sobre o molho.  Decorei com folhas de salsa-do-líbano e nhac!  Boa opção vegana ou pra variar o cardápio de carnívoros, dar um tempo da carne.

Cozidos no vapor 
Podem ser fritos também - como um acarajé 
Fritos são crocantes, deliciosos


Com molho de tomate e Nhac! (com arroz branco, por exemplo) 


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Pancnacity de 03 de dezembro de 2016



Taioba, flor de hibisco, jambo amarelo, tansagem, sabugueiro, aipo silvestre, macaúba, almeirão silvestre, alho silvestre, major-gomes, bredo, mentruz, cúrcuma, beldroega etc. foram algumas das espécies que encontramos pelo caminho no bairro City Lapa.

Na volta, um almoço com outras pancs da casa - que ao longo da semana colhi, ganhei, comprei. Seguem algumas fotos.

Cúrcuma tirada da terra antes do tempo, só pra mostrar 

Um campo minado de cúrcumas e um turma boa de minas e minos 
O pão de abóbora de sempre - com passas e castanhas de pequi 



Ora-pro-nobis branqueada e refogada na cebola com uva passa, sal e
pimenta-do-reino. 

Salada de manga verde com castanha de caju, coentro, menta, molho
de peixe, alho, limão, açúcar 

Panqueca com massa de polvilho e ora-pro-nobis e recheio de ora-pro-nobis
(o mesmo refogado acima misturado com ricota), coberta com manteiga
derretida e castanhas de pequi  

Arroz integral com hemerocallis refogada em azeite com cebola caramelada 


















As flores de hemerocallis abertas ou em botões são deliciosas, cremosas,
lembram o lado bom do alho 

As tortas de manga verde foram feitas com massa de farinha de raspa de
mandioca que eu fiz - sem glúten, portanto 

E tim tim para mais esta turma, a última do ano. Espumante de kombucha
com flores de sabugueiro o

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Pêssego verde em calda. Coluna do Paladar, edição de 01 de dezembro de 2016

Hoje tem coluna do Paladar, no jornal O Estado de São Paulo, no blog do caderno e também aqui. 




Está aqui uma das iguarias que poderia figurar naquelas lojas japonesas que vendem frutas a preço de joia.  Aposto que muita gente pensou num doce fino, brilhante, com calda transparente, em pote de cristal e tal.  Pensou certo, pode ser tudo isto, mas este doce caipira ainda não conquistou a fama fora da roça.

A simples palavra roça ou caipira já faz descer alguns degraus tudo o que temos de melhor no campo.  Aliás, campo, campanha, camponês, campestre só soam melhor porque nos remete ao ambiente europeu. Mas, quando nos livrarmos dos preconceitos e  principalmente das jequices,  vamos descobrir que alguns de nossos pitéus caipiras não perdem em nada pra especialidades europeias.  Está certo que ganham em açúcar, mas isto dá pra corrigir.

Mesmo porque muito do que temos hoje na culinária caipira tem mãos imigrantes por trás.  Caso do pêssego, a começar pela planta (Prunus persica, L.) originária da Ásia e trazida pra cá pelos colonizadores, finalizando pelos preparos - afinal não consta de nosso arsenal indígena conservar frutas em caldas de açúcar. 

Só quem já passou por guerras e frios infrutuosos pensaria em conservar frutas assim, ainda mais sendo verdes.  Comer o que tem e depois o que vem, este é o lema em terras de fartura de frutas e clima generoso.   Nas cidades grandes, sim, vamos encontrar frutas de todos os lugares em todas as épocas, mas na roça frutas passaram a ser conservadas em caldas para os períodos de entressafra e também porque é um jeito de aproveitar frutas em estágios não apreciados para o consumo in natura, ampliando a duração da safra e evitando desperdício quando todas as frutas parecem combinar de amadurecer ao mesmo tempo. Assim, figo, pêssego, manga e mamão, principalmente, costumam ser usados para doces em calda, pastosos ou de corte.

E a técnica ficou não só por necessidade de conservação mas também pelo resultado desejado. Podemos preparar e comer a sobremesa imediatamente só pelo prazer de ter na boca o doce ácido, algo amargo, suculento e perfumado com a própria semente.  Eu sou muito mais por uma compota de pêssego verde que do maduro.

No interior do Paraná,  no sítio dos meus avós e na casa de vários parentes e conhecidos, os vidros cheios de pêssego verde coincidiam com as férias em época de Natal.  A  intenção de ampliar a safra, de chegar antes dos passarinhos e ainda dispor de sobremesa deliciosa sempre foi muito clara mas também pode ter surgido para evitar o desperdício dos pêssegos pequenos que às vezes são colhidos e descartados ainda verdes para melhorar a qualidade das frutas mais promissoras.  É isto que acontece com pequenos pêssegos japoneses, estes sim vendidos atualmente como raridade.  Só começou recentemente a gourmetização desses pesseguinhos chamados de wakamomo,  antes descartados durante a primavera nos pomares em torno de Fukushima e Kyoto para aprimorar as frutas que seriam colhidas no verão.  Colhidos ainda mais miúdos do que de costume por aqui, eles hoje são cozidos em xarope de açúcar e servidos como iguaria.

Os nossos ainda são privilégios dos que têm um pé de pêssego por perto.  Estes meus foram pura sorte.  Claro que todos os anos eu colho uma pequena quantidade deles numa praça perto de casa – imagino que já tenha se acostumado com esta notícia -,  porém desta vez  a colheita foi mais farta. Para falar a verdade, colhi todas as frutas do pé.  Não se assuste com a ruindade de não ter deixado nada para os passarinhos ou transeuntes que gostam da fruta madura.  Ao meu favor tenho a dizer que o pequeno pessegueiro foi atropelado por uma figueira que se esborrachou no chão depois de uma tempestade. Colhi todos os pêssegos dos galhos mutilados no dia seguinte e aqui estão eles sãos, gostosos e salvos. 

O preparo tem poucos segredos e um deles é que a película tem que ser retirada para que a calda encharque bem a polpa. O outro é que não deve levar nem cravo nem canela e isto aprendi com Dona Olga, minha mãe. É que o tempero vem da própria semente que não é descartada – nem engolida, claro, é só tirar da boca de modo não muito elegante.  É que, como outras frutas da família das Rosáceas, as sementes do pêssego têm a mesma substância aromática que dá sabor às amêndoas amargas, às cerejas e às sementes da nêspera, por exemplo. E é aí que está a grande atração deste doce.  

Então, agora é só ir atrás de produtores  a quem possa encomendar frutas ainda verdes - a polpa deve estar bem verde e dura.  Com o doce pronto,  basta servir puro com a calda ou com uma colherada de sorvete, nata, creme batido, iogurte ou usar para fazer receitas que faria com a compota de pêssego maduro.  E nhac!

COMPOTA DE PÊSSEGO VERDE

1 kg de pêssego verde
1 colher (chá) de sal amoníaco (opcional, para tirar a pele)
500 g de açúcar

Lave bem os pêssegos e coloque numa panela. Cubra com água e junte o sal amoníaco. Assim quer ferver, escorra, espere esfriar e guarde no freezer. No dia seguinte, com os pêssegos ainda congelados, vá puxando a pele debaixo da água e ela sairá facilmente. Se não quiser fazer isto, descasque as frutas uma a uma com faca de legumes bem afiada, mantendo os biquinhos – vá deixando as frutas numa bacia com água para não escurecer.  

Coloque as frutas sem pele numa panela de aço inoxidável, cubra com água e cozinhe por cerca de 25 minutos ou até que fiquem macios mas não moles. Descarte uma parte da água, mantendo cerca de meio litro. Junte o açúcar e deixe cozinhar até que ele derreta e forme uma calda como xarope. Se quiser cobrir com mais calda, junte mais açúcar e mantenha quantidade maior do líquido de cozimento.  Depois de frio, conserve na geladeira.

Não coloque nem cravo nem canela que podem mascarar o sabor amendoado das sementes.

Rende: 12 porções