quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O miojo da dona Vera, que planta flores, feijões e melancia

Já conhecia dona Vera de vista, mas sempre passei por sua calçada apressada pra tomar o trem e também nunca quis atrapalhar a conversa dela com ela mesma, já que fala o tempo todo, atormentada. O único contato que tinha tido foi quando um dia ela me mostrou um vaso de plantas que havia ganhado. Mas há três semanas a amiga Nana veio aqui e, assim que desceu do trem, percebeu que tinha tempo antes de nossa reunião. Como é de seu caráter olhar com carinho e atenção a todo cenário dos lugares por onde anda, parou para conversar longamente com dona Vera. E fotografou. O relato lindo está no blog da Nana, Calunga Cor de Rosa.  

Nana pediu para eu levar uma panela caso tivesse, que ela estava precisando, e fiquei de passar lá. Na correria, acabei esquecendo. Só me lembrei há poucos dias quando passei pela sua calçada para ir ao supermercado. Nem estava com tempo, mas acabei me demorando. Uma  moça que conversava com ela antes de mim disse que traria a panela, já que cheguei com a desculpa de que não tenho mais panelas sobressalentes que foram todas para o sítio e que poderia comprar no supermercado caso ainda precisasse. 

Mas primeiro quis saber o porque de ela estar morando na rua. E aí a história é confusa, longa, recheada de fatos como expulsões, carro da prefeitura que roubou suas coisas, ida para um abrigo com muito "maconheiro, macumbeiro e muambeiro", que ali não era lugar pra ela, que nunca mais quer ir para um abrigo, que prefere a rua, que está bem ali, que costura pra fora, que o sobrinho é maconheiro e o expulsou da casa da irmã, que um taxista quis namorar com ela, mas deusmelivre, que o Kassab e o Haddad (e soletra direitinho h a dois ds, a, d) tem nomes feios do diabo, que são ladrões, tomaram tudo dela, que onde já se viu que eles nem precisam de dinheiro e pagam uma perua pra sair pela cidade roubando tudo das pessoas, que levaram embora suas plantas nos vasos, que quebraram o abacateiro que ela plantou na praça, que pode até ser que ela não aproveite o abacateiro que plantou, mas que outras pessoas podem comer as frutas, que plantou um abacateiro no corpo de bombeiros na Lapa (e tem mesmo), que os guardas aproveitam, que costura jaquetas, que ganha um dinheirinho, que gosta de plantar, gosta muito de plantas, que são a alegria dela, e que o bom deus ainda lhe reserva um pedaço de terra pra plantar lá no seu Pìauí, que um dia volta pra lá. E fala, fala sem parar.  Aí aprendi que precisa interromper para  interagir. E comecei a perguntar um pouco. E porque então a senhora não volta pra sua terra se tem lá seus parentes? Não é só pegar um ônibus? Dinheiro a gente arruma. Mas não, ela está "esperando o irmão, que tem carro, e vão todos num carro, com todas as coisas, porque o ônibus não leva as coisas, mas precisa esperar o outro, um carro maior, que eu dirijo,  mas não tenho carta, então vou tirar carta antes para revesar a direção com meu  irmão e por enquanto quero ficar aqui mesmo, que eu gosto daqui, já tem 2 meses e 28 dias que cheguei". Quando fiz cara de espanto com a precisão, ela respondeu "ué, se eu cheguei no 2 de novembro...".  E quando lhe perguntei da Nana ela se lembrou na hora "ah, a moça bonita que me deu um espelhinho, né? tão bonita". 


Mostrando as sementes de melancia

Mostrando o pezinho de feijão 
Quis aprofundar um pouco o assunto plantas e seus olhos brilharam. Ela me mostrou as sementes de melancia secando para plantar, me mostrou os pezinhos da fruta que havia plantado junto ao poste, os de tomate, junto ao muro e um de feijão numa falha da grama, ao alcance de suas mãos.  Mostrou ainda vasinhos improvisados com caixa de leite, galhos de quaresmeira enraizando em água dentro de garrafa pet, potinhos com sementes. Não liga de comer o que planta, só quer mesmo plantar, comida ou flores. Quando perguntei se queria alguma coisa do supermercado, pediu para eu comprar uma pinha para ela tirar sementes. Podia ser até podre, pois só queria as sementes para plantar. Cismou que quer plantar pinhas. 

E do que mais a senhora precisa? "Ah, traz também uns miojos, mas só pode ser da turma da mônica porque os outros viram mingau, são ruins, o da mônica é o único que não se desmancha todo, o macarrão fica durinho, gostoso de mastigar, e tem tempero bom. E também, se puder, traz umas cenouras e umas batatas. Ah, e também uns pedaços de frango ou ovo, você escolhe. E se não for pesar a mão, traz também uma dúzia de banana, mas tem que ser da maçã, pois as outras não me caem bem. E é só, vou te dar o dinheiro". Ela enfiou a mão no bolso do avental para tirar uns trocados e eu rejeitei, claro. Fui saindo e ela reforçando: "não esquece da pinha pra plantar". 


Pés de melancia junto ao poste

Pés de tomate junto ao muro

Sementes e mudas
Logo a pinha, não tinha, mas comprei os miojos turma da mônica sabor galinha. Foi estranho empurrar um carrinho com miojos, mas coloquei tudo numa caixa e passei lá com o taxi antes de voltar pra casa. O taxista estranhou o destino, mas quando parou o carro reconheceu Dona Vera, que por um tempo ficou morando no quintal do supermercado que funciona 24 horas. Disse que a irmã já tinha ido buscá-la várias vezes mas ela não quis ir. Ele desceu, cumprimentou, ah, a senhora por aqui, dona Vera?,  ela ofereceu bananas maçãs e ele aceitou. Deu logo duas e o repreendeu quando quis pegar as frutas com a mão esquerda. "Não, não, com a direita, pra não faltar banana nem pra mim nem pra você".


20 comentários:

Guilherme Ranieri disse...

Que encontro, que encontro!

maria lucia disse...

:D
vim procurar como se faz jiló e adorei a história.

Leticia Cinto disse...

Que história legal! Que nunca falte banana (ou comida de modo geral) nem pra ela nem pra ninguém e que nunca falte pessoas boas no caminho da dona Vera!

Prof. Paulo Antonini disse...

É uma satisfação frequente ler seus posts, Neide. E constatar que realmente aprendemos e ensinamos o tempo todo no mundo e com os outros.
Quando você conta sobre seus encontros e o ensino/aprendizagem que desenvolve com pessoas, você emociona sem apelar. Isso é poiésis.
(também pude conhecer o blog da Nana)
Obrigado e Parabéns!

Jan disse...

Adoro ler o que você escreve, Neidoca. E o olhar que tem pra vida, pras pessoas!
Beijo

marta disse...

Oi Neide,
D.Vera plantando e cuidando das plantas em calçadas públicas... fazendo umas costuras para ganhar um dinheirinho...etc...etc...
Quantas Veras mais? esta aparentemente diz ser "feliz",vive na rua por escolha propria e não por falta de achar um teto para morar....será? tem amigos de passagem que volta e meia fazem seu dia a dia mais alegre, recebendo doações de comida e etc... A maneira de como vc.descreve o cenário, parece até poético!!! estória triste!!!...

Mariza Praun disse...

Adorei essa história!

Anônimo disse...

me emocionei de verdade ao ler esse relato...
quantas pessoas vemos na rua todos os dias, mudamos de calçada, fechamos os olhos a suas necessidades... comovente a historia de dona Vera.
fico feliz por ela e triste por mim, ja explico: ela tem tanto jeito com as plantas, tudo brotando ao redor dela... ja eu... as unicas ervas q consegui cultivar ate hj e um pezinho de hortelã, aquela da folha peluda. tirando isso ja matei varios pes de manjericão, salsa, cebolinha, coentro. nao sei onde erro,mas minhas mudinhas sempre morrem.
de qqr forma, viva dona Vera e q vivam para sempre os abacateiros pelas praças do nosso pais.
um grande abraço, Neide.
Sabrina Abreu. RJ

André Coelho disse...

Sem deixar de lado a bela história, te elogio pela forma do texto! Adoro o jeito como você escreve, Neide!

Abraço!

Kefir Alimento Probiótico disse...

Adorei, Neide, e parabéns pelo artigo! Yuki

eduengler disse...

o brasileiro, necessita apenas da possibilidades eficazes.
no Brasil, as possibilidades eficazes inexistem, em forma real.
somo enganados com possibilidades irreais.
ha pessoas que querem ir para o rural, e tem competencia e amor para isso, mas onde esta a possibilidade?

carlos disse...

Que delicia de blog!!
Parabéns, ja esta no meus favoritos.
abçs

Amarilda J. T. da Silva disse...

Mais uma postagem "deliciosa". História interessante da D. Vera e sua paixão assim podemos dizer pelas plants.

Anônimo disse...

Neide voçe é uma iluminada,por isto encontra dona Vera pelo seu caminho. (Diulza)

Dricka disse...

Fiquei com dó Neide, a achei tão linda, e lucida em sua loucura. Não tem jeito, há mentes que só a plena liberdade é capaz de satisfazer!
Bjs

Anônimo disse...

Neide

Já que você esta precisando de alguem

para cuidar teu sìtio em Piracaia, por

que você nao leva a Dona Vera para viver

lá???

Abraços e que Deus te ilumine

Maria

Reji Sausen disse...

É a primeira vez que passo por aqui. Adorei a história! Quando tiver com mais tempo, volto, e vou ler os outros posts do seu blog. Bjo!

Neide Rigo disse...

Maria, dona Vera enlouqueceria ainda mais ficando a 17 km da cidade, sem ninguém por perto. A questão não é tão simples assim. Infelizmente.

Obrigada a todos pelos comentários.

Um abraço, N

Juliana Valentini disse...

Ne, que delícia de post.
E a melhor frase, de todas todas, não é sobre ela, mas sobre você: "foi estranho empurrar um carrinho com miojos"!
Demais! Só você mesmo!
Um beijo grande, (firme nos planos de nos vermos no carnaval),
Ju.

Geisa Mariana disse...

QUe Figura!! o mais incrível é ela gostar de plantar e plantar!!