sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Senegal - a água

Claro, já tinha consciência da importância da água, mas foi mesmo naquela manhãzinha em que acordei numa cabana da pequena aldeia no interior do Senegal que me dei conta do artigo luxuoso que ela é.


Passava pouco das seis da manhã e, como chegamos no lugar à noite, não tinha visto nada do lugar. E também poucas crianças haviam me visto (se bem que eles enxergam no escuro, é incrível).  Por isto, acordei assim que clareou e fui andar, seguida por crianças curiosas me perguntando coisas em wolof e risonhas das minhas respostas ininteligíveis.  Começaram a me mostrar tudo o que achavam interessante. Esta é minha vaca. Quer ver as mulheres tirando água?  Veja este fruto, a gente come a semente. Olha lá o pessoal socando o milhete para o cuscuz. Venha ver o rebanho de cabras. Aqui é nossa mesquita. E coisas assim. Sem entender uma palavra em wolof (um cumprimento e resposta e alguns nomes de espécies vegetais, vá lá), tenho certeza que me disseram tudo isto.


De tudo, de tudo mesmo o que vi, o que mais me impressionou foram aquelas mulheres tirando água do poço. Um poço fundo, com mais de cinquenta metros, todo revestido de cimento, com suporte para umas quatro carretilhas rodeado de mulheres puxando baldes remendados a seis mãos que se alternavam para dar ritmo contínuo às cordas. Simpáticas, ao me verem interessada, ofereceram a corda para que eu ajudasse.  Bem que tentei. Puxei um pouco, mas me atrapalhei no ritmo, achei pesado demais e logo fui meio que expulsa aos risos de chacota. O movimento ao redor do poço era intenso, o trabalho era pesado, num ir e vir com bacias cheias na cabeça para abastecer os potes das casas, mas a alegria era contagiante, com ânimo para palmas durante a coreografia das mãos.


Toda gente leva ao banheiro as chaleiras de plástico com um pouco d´água 
Ninguém ali é só, todo trabalho individual se junta para o bem coletivo e a alegria é pra ser dividida. Mas, voltando à água, vou me lembrar daquela cena a cada banho prolongado que porventura vier a acontecer por distração ou toda a vez que vir alguém empurrando um folha de acácia mimosa com um jato forte de água limpa na calçada. Ou lavando carro com a mangueira aberta abandonada no chão.


O Sahel, a faixa de terra ao sul do Saara onde fica o Senegal, tem pouca chuva. A maior parte do ano é de seca, com aquela vegetação cor de fogo se misturando com o chão de areia fina da mesma cor.  E é raro ver uma poça d´água doce à medida que se afasta da costa. Dakar tem uma praia linda, com água cristalinas. De qualquer forma, o que se quer é água doce. Para conseguir água boa, os poços tem que ser profundos e nas aldeias é difícil ter energia elétrica para bombas. Então, aqueles braços fortes são conquistados na base de muita puxação de corda. E o equilíbrio e a coluna ereta, graças ao peso do carregamento, que não é só de água.


Depois, gasta-se pouco nos banhos, para lavar roupas, lavar louça, para beber e pra levar ao banheiro, em chaleiras de plástico chinesas. Tudo com moderação, sem desperdícios. Antes das refeições sempre aparecem duas pequenas bacias para se lavar as mãos, uma com produto, como costumam dizer, que é uma água com detergente. E outra, limpa, para enxaguar.  Todos lavam ali suas mãos. No fim das refeições, a mesma coisa, porque a gente vai estar com a mão melecada de ter comido cabrito, arroz, peixe. E depois, circula entre todos uma grande canela com água fresca para beber. Não vi ninguém passar sede, mas nas aldeias não há hortas, que precisam ser regadas. E os animais, sempre que podem, também bebem água limpa. O que seria de nós sem água? Hoje, no mundo, muita gente já sabe.


Mais fotos no álbum:





E agora, dando uma de colegial, uma divagação, que água tem poesia:


Água dos miseráveis minguados,
da face suada e roupa encharcada
Terra rachada sob sol escaldante
O vento melado, o açude vazio
Água funda, turva, barrenta
Água da poça, lama seca
Salobramente contaminada
Lençol freático, roupa suja
Aguas passadas, roubadas 
Água rasa, rara, cara

Água farta, furtada
Sombra da brisa do bosque
Toda água é fresca
Som da queda fabricada
Sertão fingido Éden
E jorra o poço artesiano
Água corrente, límpida
Insípida, que irriga, que intriga
Dinheiro, marca d´água

Água paga
Tratada, mineral, bicarbonatada
Potável,  corrente
Água morna e água quente
Gelada e transparente
Que lava, refresca
Água de rosas, pras flores
Água que limpa, sanitária
Água pro gato
Azul turquesa, piscina
Pra descarga e gargarejo
A que faz colorido jardim
Que escorre no banho sem fim
A que varre imitando vassoura
Água vã

Água benta
Água de cheiro, chuvisco sereno
Grama orvalhada, poeira molhada
Água da bica, goteja, repica
Água que mina, a semente germina
Agua-vida, musgo, bolor
Água que nutre, que hidrata, que passa
Roçando pedras roliças
Verdejantes felpudas roças
Moinho, monjolo, roda d´água
Fino pó de grão macerado
Polenta ensopada na seca do dia
Abóbora d´água doce, macia
Água de batata, café ralo, aguardente
Água de graça

Água pra lá e pra cá
Água de lastro do porão do navio
Água má de Lisboa, boa do Porto
Água de noz dos padres cartuchos
Mãe d´água das Amoreiras
Aqueduto das Águas Livres
Água alta, revolta ou mansa
Inunda a bela Veneza
Diques no Mar do Norte,
Inventa  impermeável Holanda
A mesma sagrada de Alá
Goteja agora turva em Bagdá
Água pra viagem

9 comentários:

Mariangela disse...

que coisa Neide,este sentimento com relação a água(de uma possível falta,da escassez,etc)ficou muito mais forte em mim desde que chegamos aqui.É de arrepiar passar por pontes sobre rios secos,sem falar na falta de chuva,que passamos uns bons 4 meses sem enxergar uma gota dágua caindo do céu.E já falavam sobre um possível racionamento para o próximo ano em Barcelona caso não chovesse urgentemente.Parece que S Pedro escutou pois caiu tanta água(por poucos dias,claro)...e te confesso que sinto uma raiva imensa quando vejo pessoas lavando calçadas e carros também,e a mangueira aberta proporcionando um show de desperdício e ignorancia(hábitos bem brasileiros,o horror..).Beijos querida,teus relatos estão apaixonantes,um melhor que outro!!

Maria Paz disse...

Nem damos o devido valor a esse bem precioso que corre das torneiras. É só abrir e já está. Há uns anos fiquei sem água potável durante 5 dias. Inimaginável.

Hilário Bichels disse...

Neide, tudo bem?
Terminei de ler um livro “ O menino que descobriu o vento “ que conta a história de um jovem que vive no Malaui e que cria um catavento com dínamo de bicicleta e leva energia elétrica para sua casa. Mas o que me chamou atenção foi que a base da alimentação é o milho, diferentemente do trigo que referiste no Senegal. Como consta...
“comemos milho em todas as refeições, a maioria das famílias o utiliza e m forma de polenta, chamada nsima. É feita adicionando-se fubá em água não fervente até que fique bem grosso, então como se fosse um bolo, corta-se em pedaço do tamanha de pães de hambúrgueres. Tirando um pedaço você o enrola como uma bola, e a molha no seu tempero, normalmente feijões ou folhas verdes, como mostarda, canola ou folhas de abóboras. Se a família for afortunada, talvez você tenha uma galinha ou cabra.” A população pobre caça pássaros para ter alguma proteína animal.
Comunidades inteiras dependem de sementes e fertilizantes vendidos a peso de ouro, e quando o clima não ajuda e a safra de milho é perdida milhões de pessoas passam fome, e saem a caminhar pelas estradas em busca de trabalho e comida. A bolsa de Chicago e a indústria do tabaco também define sobre a vida e morte deste povo. Se o preço do milho não cobrir o custo, não há como se pagar os trabalhadores, com as plantações de tabaco a mesma coisa. ( Os subsídios americanos e europeus aos produtos agrícolas fazem com que um fardo de algodão produzido em uma grande fazenda americana custe mais barato que um produzido por camponeses em uma fazenda africana.)

Precisamos abordar estas questões e valorizar a cultura deste povo maravilhoso que tanto nos ensina! !Belo trabalho!
Abços

Leticia Cinto disse...

Quanta informação! Realmente, não dá mais para lavar calçada com água (limpa, clorada!) e desperdiçar ao léu. Hoje deu um pé d'água aqui em SP e eu fiquei imaginando como a gente poderia aproveitar melhor essa água que cai do céu! A gente é tão abençoado que nem dá o valor que ela merece. Pensar em tudo isso desperta mesmo a poesia na gente, gostei muito da sua :)

Unknown disse...

Neide minha querida, eu sai de f;erias e fiquei sem internet... Agora que recuperei o acesso entrei no seu blog, para ver como andava sua viagem ao Senegal e estou maravilhada com os textos, me senti viajando junto com você.
Amei principalmente o texto sobre as crianças senegalesas, cheguei a chorar, mas eu sou assim mesmo, me emociono fácil... Obrigada por compartilhar suas experiencias conosco e enriquecer um pouquinho nossas vidas com cultura e informações que as vezes não teríamos acesso se não fosse dessa forma. Beijos carinhosos!

Neide Rigo disse...

Mariângela e Maria Paz, é verdade. A gente só vai se dar conta da seriedade deste item quando a torneira secar.

Hilário, obrigadíssima pelo trecho do livro. A dependência de sementes e insumos para a agricultura é também um mal geral, um grande entrave para a soberania alimentar.

Letícia, também pensei o mesmo quando vi a chuvarada de domingo.

Carolina, que bom que está gostando.

Um abraço, N

Margot Carone disse...

Neide querida! Que bom ter voce de volta!!! Vou colocar o Come-se em dia agora mesmo. Mas pela breve leitura desse seu post, tenho certeza que aqui nao caberia "ir com com muita ao pote". God bless Africa! Bjs

Anônimo disse...

Se todos nós, da aldeia chamada cidade, parássemos por um instante, para voltar a perceber, como uma menina, talvez a água não tivesse ficado tão esquecida,no cano da casa, da rua, largada na represa.
Ana

Anônimo disse...

Estou em Lougue Nodi, interiorzão do Senegal perto das fronteiras com o Mali e com a Mauritânia. A minha pick-up traz um súbito, ilustre e fugaz visitante. A vastidão quase desabitada é nivelada, solo pobre, vegetação parca, mas altiva sobrevivente à inclemência do semi-deserto. Assim são as pessoas que vieram ao meu encontro. Crianças, umas 30, todas como todos negros sorridentes e surpresos. Uma mesquita é maior que a vila desolada na imensidão. Tudo simplíssimo ligado às coisas diretas da terra e do meio martirizado em solo batido quase desnudo. Eu poderia escrever um livro na erupção do meu coração ao vagar por aquelas ermas e quase ignotas regiões do mundo. Mas este mesmo meu coração me leva a olhar para o cosmos e confirmar mais uma vez que o céu de Lougue Nodi é igualzinho ao céu de Paris!...:)