sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Frito do vaqueiro



Yes, nós temos nosso confit. A primeira coisa que pensei quando conheci o confit de canard foi na carne de lata que minha avó trazia do Paraná. Conforme ela ia desfazendo as malas, ficávamos, meus irmãos e eu, especulando sobre o que poderia aparecer a qualquer momento naquela profusão de roupas cheirando a fumaça do fogão de lenha, a café, a sabão de pedra, ao sítio todo. Aos poucos, as iguarias iam sendo desembrulhadas de trapos de algodão cru defumados. A lata com carne de porco na gordura branca era uma atração. Na hora do almoço uns nacos de lombo iam para a panela em fogo branco até a gordura derreter e a carne ficar bem quente, suculenta, brilhante. Durava dias a farra. No ano passado no Revelando São Paulo, um expositor vendia a carne de lata num recipiente de plástico, destes de Catupiry. Fiquei feliz pela produção, mas, por saudade da lata e da vó Zefa, deu uma tristeza. Sorte é que ainda posso comer uma versão parecida na Ilha do Marajó, na casa da minha amiga, Dona Jerônima. Sorte de vocês também que podem passar uns tempos lá comendo delícias, já que o lugar é um hotel fazenda, com búfalos, guarás, manguezais, praia particular, peixe fresco, turu e tudo o que têm de melhor em Soure.
Confit, carne de lata e frito do vaqueiro são do tempo em que não havia geladeira. E mesmo com o surgimento dela, o preparo sobreviveu não pela intenção mas pelo resultado - carne macia, suculenta, perfumada com a gordura e às vezes com a fumaça da lenha. Mudam as carnes, mas os motivos e o modo de preparo- cozinhar lentamente a carne na própria gordura - são os mesmos. Só é pena que muitos de nós temos mais oportunidades de comer no Brasil um confit francês que uma autêntica carne de lata colonial ou um frito de vaqueiro marajoara. Mas, vá lá, uma vez colônia, pra sempre colonizado.
Na Ilha do Marajó o frito é tradicionalmente servido no café da manhã. Conta Dona Jerônima que era comida dos vaqueiros que andavam pelos campos levando apenas algumas provisões. Antes da partida, as mulheres preparavam o prato com a carne fresca do búfalo. Tiravam-lhe a fraldinha e, sem lavar, enxugavam o sangue com um pano limpo, picavam e cozinhavam, no calor fraco da lenha, por longas horas, usando como tempero apenas o sal. Ela fica pronta quando a água seca e só resta na panela o óleo que se solta da carne e serve agora para dourá-la. Os vaqueiros levavam a preparação em lata, mergulhada na própria gordura endurecida depois de fria – ela envolve todos os pedaços, protegendo-os da oxidação e do apodrecimento. Na hora de comer, bastava aquecer e juntar um bocado de farinha para tornar o prato algo substancioso.

Frito do vaqueiro marajoara

Ingredientes
3 kg de fraldinha de búfalo em temperatura ambiente
1 colher (sopa) rasa de sal ou a gosto

Modo de fazer
Com um pano bem limpo, enxugue a carne sem lavar. E sem tirar a gordura aparente, corte-a em cubos. Coloque a carne numa panela grande de ferro e polvilhe o sal. Mexa, tampe a panela e leve ao fogo bem baixo. Sem acrescentar água ou gordura, vá cozinhando a carne no próprio vapor, mexendo de vez em quando, até que toda a umidade seque e a carne comece a dourar na própria gordura. Em fogão de lenha, com a chama bem fraca, isso deve levar de 5 a 6 horas. Em fogão doméstico, de 2 a 3 horas. De qualquer forma, estará pronta quando os cubos estiverem macios, dourados, mas não ressequidos. Passe para um recipiente de vidro, cerâmica ou guarde na própria panela. Tampe bem e conserve por até 5 dias. Vá retirando pequenas porções e aquecendo na medida em que for necessário. Aqueça em frigideira tampada, em fogo baixo, para não ressecar. Sirva com farinha de mandioca amarela torrada levemente e ainda quente.
Rendimento
: 10 porções
Para conhecer a Fazenda São Jerônimo, clique aqui.

15 comentários:

Agdah disse...

Minha avó também era "Zefinha" e cozinhava dessas carnes como ninguém.

Karen disse...

Ouvi minha mãe contar como era boa essa carne durante toda a minha infância. A família dela morava no interior de SP, sem geladeira, sem eletricidade, e quando um porco era morto, ele era conservado assim. Mesmo sem nunca ter provado, é como se pudesse sentir o gostinho...
Abraços!

Anônimo disse...

Só passo para agradecer, o delicioso momento passado lendo algumas crônicas do seu excelente blog, momento de puro deleite, o que mais dizer ?
Sou uma brasileira expatriada no « Velho Continente » há quase vinte anos mas de coração e orgulho inabaláveis nordestinos…
Apaixonada por culinária, colecionadora assídua, ou melhor, devoradora e viciada irrecuperável em livros e cursos de gastronomia, utensílios culinários, especiarias e quase tudo que toca de longe ou de perto os mistérios dos prazeres da mesa, nada me encanta mais que a tradição e a riqueza culinária do nosso Brasil, tão bem contadas em seu blog, parabéns ! Para quando um livro ?
E haja saudade da terrinha…
Carla

Carlos Alberto de Lima disse...

Neide, eu acho que essa coisa do lento cozinhar, nos dias de hoje ficam mais difíceis de voltar na sua plenitude.
Mas isso, entendo, não impedem de se produzir belos pratos usando essa técnica.
Meu molho feito à base de ossobuco leva aproximadamente 4 horas em fogo quase apagado. Meu pão leva 24 horas para nascer...
Enfim, é o sabor realçando nossa alma.

Anônimo disse...

Neide, eu nem sei como expressar a admiração que tenho pelo seu blog. Sou verdadeiramente uma fã. Além de apresentar coisas que nos dão água na boca, você tem um respeito e uma paixão admiráveis pelos alimentos.

Obrigada. Simplesmente por existir. :-)

Beijos.

Ana Canuto disse...

Olá Neide.
Bem, acho que não existe família de imigrantes que não tenha conhecido a carne de lata.
E acho que somos sortudas por termos experimentado.
Na casa dos meus avós maternos, a lida começava desde a morte do porco feita pelo meu avô, no sítio. Eu ainda criança me lembro de lavar as tripas num córrego, para depois minha avó aferventá-as várias vezes com água e suco de limão a fim de fazer deliciosas linguiças e chouriços que depois iam para um varal sobre o fogão a lenha para defumar. Passava-se o dia todo em volta disso, pois sem a tal geladeira, as carnes tinham de ter o destino. Sem contar que os "rebotalhos" iam para o tacho misturados com soda e cinzas para fazer sabão. Quanto mexer aquele tacho.
E que saudade do arroz e do feijão temperados com a gordura da carne de lata.
Muita saudade.

AGRY disse...

Criei, há dois dias, um blog virado para a cozinha das ex-colónias portuguesas. Busco a representatividade e a autenticidade das várias regiões.É uma tentativa de levantamento das preciosidades guardadas no baú da memória dos sabores daquelas regiões.
Foi esta a razão que me trouxe até ao seu blog.Felizmente!
Entretanto optei por a adicionar aos meus elos

Natural Naturalmente disse...

Neide, em 1988 ou 89 eu dei uma volta com o meu marido pelo meu Brasil, foram 2 meses de pais profundo, alem de namorar muito comi muita coisa boa, é o frito do vaqueiro foi uma delas, mas só lendo o seu post é que lembrei-me, senti o cheiro, quase(?) que babei.
Amei, obrigada pela partilha.
Boa Semana
Márcia

Eli disse...

Quando era criança morava com meus avós em uma fazenda e a forma de se conservar a carne era essa, meu Deus é uma delícia!

Letrícia disse...

Eu comi recentemente essa carne conservada na banha numa fazenda do interior de Goiás. O sabor é inesquecível.

Jane Malaquias disse...

Eu comi uma carne de lata que por aqui chamam de matula perto da cidade de Chapada a caminho de São Jorge. O dono do restaurante é um senhor que abastecia o planalto central a lombo de mula, se não me engano é Valdomiro o nome dele, também especialista em licores.

PANELAS DE FERRO SAUDE DE FERRO disse...

Muito bom seu texto, para matar sua saudade veja esse site

www.carnenalata.com.br

PANELAS DE FERRO SAUDE DE FERRO disse...

para matar sua saudade entre no site www.carnenalata.com.br

Neide Rigo disse...

Douglas,
que ótimo saber disso.
Um abraço,
N

Unknown disse...

Eu aqui em São Paulo querendo comer o frito do vaqueiro brevemente irei conhecer a fazenda são Gerônimo.